Marielle Semente: Tainá de Paula

Na semana que completa um ano do brutal assassinato de Marielle e Anderson a Mídia NINJA apresenta mulheres incríveis que carregam o legado de uma mulher negra, favelada, bissexual e ELEITA.

Mídia NINJA
Marielle Franco
6 min readMar 13, 2019

--

De riso fácil e opiniões certeiras, Tainá de Paula é mulher negra, de 36 anos, mãe de Aurora. Arquiteta nascida no pé do Morro do Telégrafo no Rio de Janeiro, sonhou em ser bailarina. A partir da maternidade e do impeachement de uma mulher eleita presidente da República, percebeu que era urgente um banho de pretitude e feminismo nas esquerdas e resolveu entrar pra disputa institucional de poder.

Candidata à Deputada Estadual pelo PCdoB, teve o apoio de Marielle para entrar na política e se orgulha de ter ouvido e falado muito com a vereadora assassinada durante sua trajetória, eram amigas. Com palavras fortes e emocionais, lembra de cenas que viveu e lições que aprendeu com a Mari.

Confira a entrevista completa de Tainá:

Como e quando se encontrou com o ativismo?

Bem, em dois momentos. A primeira vez quando montei uma chapa no meu grêmio do meu colégio, o Pedro II, e me interessei pela política institucional pela primeira vez, me aproximando do PT e de outros estudantes petistas. O outro momento foi o meu ativismo na maternidade, que me mergulhou na luta feminista.

O que te fez ir para o caminho institucional da política?

Em 2013, durante as manifestações de junho e, logo depois, o processo de impeachment e a maternidade, me deram a clareza da necessidade de renovação de quadros no campo da esquerda. Me sentia segura para me constituir numa figura público política.

Quem e o que mais te incentivou e te desestimulou nessa trajetória?

Eu sempre me senti estimulada por me sentir muito preparada do ponto de vista técnico tanto para assumir um cargo eletivo legislativo ou majoritário, quanto pra assumir o compromisso com as pessoas. Eu gosto de gente, em primeiro lugar. Eu brinco dizendo que sou acumuladora de gente. Mas nunca me falaram isso até eu conhecer, fora de qualquer partido inclusive, Márcia Tiburi. O ambiente partidário e o fazer político sempre foram muito difíceis pra mim, mas sem dúvida foi Márcia que me mostrou que seria possível fazer uma política feminista que fosse mais ampla e mais agregadora que os partidos.

Até hoje me sinto muito desestimulada em realizar a tal “disputa partidária”, confesso e sei que as dinâmicas de escolhas e preferências dos quadros passam por debates muitas vezes rasos, ligados à situação econômica, rede de relações pessoais ou outros aspectos.

Já pensou em desistir?

Diariamente, rs. Uma das mulheres que me estimulava muito era Marielle. Ela tinha muito medo porque me achava pior do que ela no quesito “boca grande”. Eu de fato pra política tradicional sou uma tragédia de transparência (risos). Eu sou direta demais. Isso incomoda, principalmente os homens no cotidiano e no trato político. Mas sempre penso em seus conselhos.

Sempre vou lembrar de uma conversa que tivemos meses antes de eu me filiar ao PCdoB na escadaria da Câmara de Vereadores. Um grupo de pessoas me desencorajaram a me filiar e candidatar. Voltei pra casa pensando em desistir. Ela mesma brincou demais com minha opção comunista, que odiava. Horas depois ela mandou um áudio me chamando de vereadora e pedindo ajuda em alguma coisa. Lembro de responder brincando com ela, questionando se ela tinha mudado de ideia. Respondeu na lata, “se não formos nós a acreditarmos na gente, quem vai?”.

O que a Marielle significou e significa pra você?

Marielle foi a primeira mulher negra que eu conheci de modo próximo que era efusivamente admirada em vida. Não por um debate intelectual, não por ser uma figura temida, mas admirada por uma pacote de afeto e simbologias que até hoje me esforço muito pra descrever e sempre me escapam palavras. Ela era muito atenta às pessoas e num mundo de preocupações efêmeras e individuais isso tornou uma proporção enorme ao seu redor. Tinha responsabilidade afetiva, fidelíssima.

Ela pra mim significou uma virada de chave. A primeira mulher negra favelada que falava em construir sua própria história para além de nossas dores e cartazes com nomes de pessoas mortas.

Me mostrou que poderia ter alegria nas coisas duras do cotidiano da militância. Um dia a encontrei num ato de vítimas da violência do Estado e ela resmungou que estava cansada de fazer aquilo. Me irrita ver cartazes com o nome dela. Vou me esforçar pra ajudar a construir mais meninas Marielle. Aliás, que ninguém precise passar por dores pra ser uma Marielle. E que não seja interrompida.

Quem são seus aliados e quem são seus inimigos?

Meus aliados são os antirracistas e antifascistas, que na verdade são quase sinônimos. Acho que hoje a esquerda brasileira ainda não tem a dimensão que a maioria dos nossos problemas sociais tem origens no escravagismo e no capitalismo primitivo brasileiro. A execução de Marielle deveria ter ampliado esse debate, mas a onda conservadora contaminou a centralidade das nossas ações à atuação de Bolsonaro, sem brecha para reflexões mais aprofundadas e qualificadas, onde o debate sobre o racismo entre nós se colocaria.

Do que você tem medo?

Tenho medo de não chegarmos aos consensos e articulações necessárias para alcançarmos as mudanças e políticas que evitariam que mais uma Marielle seja assassinada. Um exemplo do que falo foi a incapacidade do campo da esquerda de não lançar uma candidata negra e de esquerda para o governo de Estado do Rio de Janeiro. Acho que teria sido a única coisa capaz de barrar a avalanche que foi a eleição de Witzel. Se juntarmos todas as parlamentares negras proporcionais e os votos dos governadores do nosso campo, seríamos uma ameaça real ao resultado.

A esquerda peca por pragmatismos descontextualizados da realidade. Eu queria estar debatendo a segurança pública do Rio com o chefe de segurança indicado pelo nosso campo, que deveria de fato se preocupar com a vida das pessoas. Eu queria indicar o chefe do Estado e reestabelecer a confiança nas instituições policiais.

Eu queria deixar de temer o Estado.

Você já recuou por medo?

Ainda não. Mas acredito que seja parte da fuga da realidade que as mulheres negras do Rio de Janeiro estão fazendo (risos). Não temos segurança alguma e continuamos tocando a vida como se nada fosse acontecer. Eu subo e desço morro, entro em territórios de milícia pra falar com as pessoas.

Existe algo de perigoso em criar falsas normalidades. Não está normal.

Mas eu também não quero me paralisar pelo medo. Que eles tenham medo do que somos capazes de fazer não é mesmo?

O que te motiva a seguir em frente?

Num primeiro momento foi o impulso da raiva. Agora é o olhar de carinho e admiração que recebo. Todo o agradecimento que recebo pela minha simples existência. Há esse clima no Rio de Janeiro. As pessoas, mesmo as mais afastadas do cotidiano de Marielle falam com uma certa reverência sobre ela e o que ela representa hoje. Pra uma mulher negra isso é de certa forma uma janela pra seguir na luta. Para que essa luta não seja apenas uma abstração.

Se você pudesse mandar um recado pra Marielle hoje, o que você falaria?

Nossa… Tenho muita sorte de ter falado muito tudo pra ela — eu falo demais e há vantagens nisso (risos) — ,mas sinto que nos cobrávamos demais. Ela era exigente com ela mesma e eu sou muito exigente. Traços do racismo que nos abate. Não discutíamos isso. Falávamos do quanto tínhamos que ser melhores, mas não do que éramos. Ela queria fazer doutorado, vinha falando sobre isso…

Eu gostaria de dizer que não somos obrigadas a nada, que ela era incrível naquele instante. Eu poderia ter dito isso em muitos momentos e não disse… Gostaria de dizer.

--

--