Marielle Semente: Talita Victor

Na semana que completa um ano do brutal assassinato de Marielle e Anderson a Mídia NINJA apresenta mulheres incríveis que carregam o legado de uma mulher negra, favelada, bissexual e ELEITA.

Mídia NINJA
Marielle Franco
10 min readMar 13, 2019

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Talita Victor é de Brasília mas cresceu na cidade mineira de Montalvânia, onde pensou em ser feira, se fascinou por política e chegou até a pensar em ser prefeita. Filha de mãe solteira, sempre foi vista como uma "agitadora" na escola, até ir para uma outro colégio, um ambiente de classe alta, onde se aquietou.

Filiada ao PSOL desde 2006, Talita acredita que é na base que se fará a revolução. “Achando que Marielle era uma formiga matável, mal sabiam que atiçaram um formigueiro”, ela segue em luta para que mais mulheres, lésbicas e periféricas ocupem lugares de destaque e não permitir que elas sejam desestimuladas a isso.

"Todas as suas lutas também são nossas. Eles não vão ter arrego, nega."

Confira a entrevista completa de Talita para o projeto Marielle Semente:

O que queria ser quando criança?

Eu queria ser muita coisa, mas o teatro e o cristianismo me encantavam muito. Passei a infância e o começo da adolescência montando peças de teatro e, na maioria das vezes, o palco principal era o salão da minha paróquia. Por um tempo, pensei até em ser freira. Quando veio a ideia de estudar em Brasília, pensei em escolher algo que me possibilitasse ir, estudar, e voltar para ser prefeita de Montalvânia. Acabei cursando Ciência Política. Em visita à escola, conheci Arruda e Luis Estêvão, mas não gostei deles.

Como e quando se encontrou com o ativismo?

Primeiro, na Igreja Católica, desde os grupos infantis até a pastoral da juventude.

Foi o cristianismo que primeiro me cativou e me fez engajar em movimentos na cidade, querer lutar contra as injustiças e desigualdades.

No ensino fundamental, fui líder de turma vários anos, mas não era muito disciplinada. Muitos professores me viam como uma agitadora, em todos os sentidos que isso pode ter, mas me dava bem com a maioria mesmo assim.

Já no ensino médio, entrei para o grêmio estudantil de uma escola particular em que estudei. Num episódio em que confrontamos a direção, eu fui “convidada a me retirar” da escola. Passei numa prova de bolsa de uma outra escola muito conceituada — aliás, todos os bolsistas estudavam numa única turma e em horário diferente do restante. Passei um ano quieta nesse ambiente de classe alta e, de lá, fui aprovada na UnB. Ali, participei do Centro Acadêmico, Diretório Central dos Estudantes, movimento extensionista e acabei entrando de vez no movimento estudantil, sobretudo quando me encontrei e me organizei com outras estudantes de “baixa renda” ou “grupo 1” — assim éramos chamadas as estudantes que dependiam da assistência estudantil para permanecer na UnB.

O que te fez ir para o caminho institucional da política?

Durante um tempo, construí coletivos que negavam a ingerência partidária no movimento social e, consequentemente, negavam até os próprios partidos. Nós nos autodeclarávamos “apartidários”. Mas a dissidência do PT que culminou na criação do PSOL, além dos estudos acadêmicos, despertaram em mim interesse em conhecer melhor essa aposta. No ano em que me formei (2006), também me filiei ao PSOL. Eu gostava da radicalidade, da coerência que o partido representava, apesar das fortes críticas dos setores hegemônicos da esquerda.

Quem e o que mais te incentivou e te desestimulou nessa trajetória?

Desde criança eu gostava de acompanhar as eleições, os comícios, carreatas, jingles. Gostava de tentar entender o que aqueles homens diziam. Em Montalvânia, havia apenas PMDB (Gambá) e PFL (Teiú) e minha família era gambá. A cidade vivia polarizada, era impossível não se envolver e se posicionar.

A curiosidade me movia e, até por isso, não demorei muito a perceber que aqueles dois grupos políticos eram bem parecidos, apesar da rivalidade tão acirrada.

A minha família em Brasília era petista e meus tios me estimulavam bastante. Eu gostava de conversar com eles. Em 2002, conheci Brena (minha atual companheira), que também era petista. Naquele ano, participei do Comitê Lula Presidente na UnB e gastei muita sola de sapato em passeatas no campus e na rodoviária, mas também batendo de porta em porta pra conquistar votos pra Lula em Montalvânia. No ano seguinte, estive na posse presidencial, ainda com muita esperança. Foi emocionante. Eu gostava muito daquele sujeito com cara de povo, que se fazia entender facilmente e falava das dores que o meu povo sentia. Daí, rapidamente eles fizeram a primeira reforma da previdência, seguiram mantendo a dominação das elites e os esquemas de corrupção. Vieram também a decepção e o ceticismo.

Quando decidi militar no PSOL, meus tios não gostaram muito da divergência. Meus colegas anarquistas (ou “autonomistas”) afastaram a mim e outros filiados do coletivo independente que construíamos. Meus avós, mesmo pobres e desalojados de suas terras, tinham medo e censuravam meu envolvimento com movimentos de trabalhadoras e trabalhadores desempregados, sem terra, sem teto, por exemplo. Por eles, eu ficaria só na Igreja. O censo comum e a mídia de massas criminaliza muito esses movimentos. Até hoje eles pedem pra eu parar. Minha avó já me fez prometer, pelo amor que sinto por ela, que eu iria parar. Eu não prometi e a amo incondicionalmente mesmo assim.

Já pensou em desistir?

Já pensei em desistir do PSOL, não da luta. Porque é a luta que dá sentido à vida. Tive algumas decepções no partido, mas foram todas superadas ou transformadas em outros sentimentos. Eu não me acostumo com o mal feito e não tenho problema algum em denunciar, ainda que seja dentro do meu partido. O fato é que a dinâmica do PSOL, às vezes surpreendentemente, tem conseguido expurgar as mais graves defecções. Ainda temos muitos problemas, somos uma ferramenta em permanente construção. Mas enquanto não perdermos a capacidade de autocrítica, permanecerei no PSOL.

O que a Marielle significou e significa pra você?

Além de uma incrível aliada dentro do partido, Marielle é uma expoente extraordinária de um projeto político de futuro, que tem na luta feminista, anticapitalista, antirracista e popular as suas raízes mais profundas.

Minha maior referência no PSOL, que me fez assinar a ficha de filiação em 2006, foi Plínio de Arruda Sampaio. Um homem branco, católico respeitado pela Igreja, professor, promotor de justiça, de idade avançada. Um mestre.

Já Marielle é uma pessoa absolutamente fora dos padrões da política tradicional. Negra, mãe adolescente, lésbica, chegou a ser feirante, filha de nordestinos, como tantas de nós. Muito mais próxima em seu corpo e existência daquilo que eu sou. Ela também tinha um relacionamento amoroso de doze anos. Tinha a seu lado uma parceirona, que punha alguns limites mas que também ajudava a organizar tudo pra que ambas estivessem bem, das finanças até a combinação das roupas.

Ouvindo Marielle falar da Mônica, me lembrava muito a Brena. São coisas da vida cotidiana (e o cotidiano é político), mas que provocam empatia, identidade. Quando a gente diz que essa mulher é gigante, não é apenas em referência à sua estatura.

Onde Marielle está tem junto uma energia transformadora muito forte, muito sorriso e afeto.

E tudo isso começou a ganhar o país a partir de 2016, que foi uma virada pra gente. A eleição das nossas mulheres deu uma sinalização importantíssima pra todo mundo. Admiro muito o Tarcísio, mas a votação estrondosa da Mari foi um combustível que eu não consigo sequer descrever. Também amo o Henrique, mas a eleição da Talíria em Niterói segue a mesma tônica. Assim como Áurea e Cida em BH, um sopro de novidade na nossa cultura política. Sâmia e Isa em São Paulo, Mari em Campinas. Entre as eleitas, acho que só Fernanda (POA) e Marinor (Belém) figuravam como prioridades do PSOL. Começava o curso de uma mudança extremamente significativa e que muita gente queria interromper.

Estávamos colhendo com mais intensidade as flores da primavera das mulheres brasileiras e as esquerdas precisavam entender isso.

Pouco tempo depois do resultado das urnas, essas vereadoras e outras feministas dentro e fora do partido puxaram um movimento pra estimular outras pessoas como nós a ocuparem a política (o Ocupa Política) e, nessa toada, também pautaram o PSOL a impetrar no STF uma ação que pedia a descriminalização do aborto no Brasil. Foi uma articulação histórica e me orgulha muito ter feito parte dela. Em março de 2017, entramos com a ADPF 442.

Marielle e Aurea eram também muito atuantes e referências no movimento PartidA feminista, que eu acompanhava aqui em Brasília. Entre 2016 e 2018, conversei bastante com a Mari sobre o papel das mulheres no PSOL e na disputa eleitoral de 2018, além da agenda legislativa que ela dominava bem em razão da experiência de dez anos no mandato do Freixo. Eu participei da reunião da Executiva Nacional do partido quando Chico Alencar declinou da proposta de ser candidato à presidência. Naquele momento, aventei o nome de um dos nossos mais lindos destaques eleitorais pra ser nossa primeira mulher negra candidata a Presidente da República. Já sabia que ela não se candidataria à ALERJ nem à Câmara dos Deputados, porque desejava terminar o mandato de vereadora e generosamente preferia se dedicar a impulsionar candidaturas de outras mulheres, mas toparia uma disputa majoritária — e o que ela mais queria era o Senado. A gente se falou no mesmo dia e ela curtiu muito a ideia, até tirou onda.

Eu sei da importância que teria (e teve) a candidatura do Boulos, mas a Marielle seria minha candidata à presidência dos sonhos. Não nos deram tempo.

Quem são seus aliados e quem são seus inimigos?

Minha aliada é a maioria do povo, mesmo que ainda não tenha tomado consciência do seu lugar na sociedade. E é essa maioria que precisamos compreender, não é tarefa fácil. Na verdade, eu é que busco me aliar aos que mais sofrem. Caminho ao lado da trabalhadora massacrada, na roça e na cidade (não interessa se é crente ou não). Ao lado do jovem negro, que sem emprego e sem perspectivas de futuro e vida digna tem de se manter vivo (ainda que ele reproduza lesbofobia). Ao lado das LGBTI e seus corpos vigiados e punidos (ainda que elas não compreendam a luta de classes). Minha aliada (ainda) é a Igreja de base, é quem consegue enxergar as injustiças e desigualdades, quem persegue a verdade e o amor que liberta, aqui mesmo nesta vida.

De outro modo, meus inimigos são a minoria que impõe sofrimento, que usurpa toda riqueza, que explora o semelhante e a natureza em favor dos lucros e da usura. A minoria que manipula e aliena consciências em seu próprio benefício. Meus inimigos são aqueles que nada produzem, mas cercaram e tomaram para si o que é de todos. É o patriarcado, racista, lgbtfóbico, misógino. São os mercadores da fé, e esses são especialmente perigosos.

Do que você tem medo?

Medo de não dar tempo de parar a barbárie, de fazer retroceder a destruição em curso. Medo de não dar tempo.

Você já recuou por medo?

Hoje eu tenho alguns privilégios. Um bom emprego no serviço público, uma posição social destacada. Por vezes, tenho que saber recuar para não pôr em risco vidas mais vulneráveis que lutam comigo. Talvez não seja por medo, mas por responsabilidade e prudência. De outro modo, também recuo porque os privilégios nos fazem acomodar muitas vezes. Ter carro, casa própria, pele clara e uma cama confortável me fazem não ter de dormir numa ocupação, por exemplo.

O que te motiva a seguir em frente?

A certeza de que ela virá. Eu tenho fé e posso chama-la de revolução, mas outras pessoas podem dar outro nome. Aliás, nem precisa ser socialista pra partilhar dessa perspectiva. Fato é que ela trará libertação e liberdade, a superação das opressões, a felicidade… Trará poesia e contradições também. Tem gente que só acredita num mundo melhor após a morte ou quando o fim dos tempos chegar, no reino dos céus, etc. Eu prefiro acreditar que a gente começa concreta e materialmente a construir esse mundo melhor agora. Mas dá trabalho.

E precisa de muita organização e muita fé.

Se você pudesse mandar um recado pra Marielle hoje, o que você falaria?

Difícil dizer uma coisa apenas, difícil dizer qualquer coisa ou pouca coisa. Nesse último ano, não há um só dia em que não pense nela, no que aconteceu e no que poderia ter acontecido.

A memória que eu tenho do dia 15 de março, daquele túmulo no cemitério do Caju, o tempo todo me provoca e causa dor. Eu sei que os assassinos odiosos, a “Casa Grande” que não suportava te ver onde você estava, eles mataram seu corpo físico. Mas sei também que não conseguirão jamais trancar naquele túmulo a sua vida, seus sonhos, porque eles se multiplicaram incrivelmente em muitas Marielles.

Somos milhares, milhões de mentes, ombros e corações, em vários lugares do mundo, sintonizados numa luta árdua por justiça. E não só pra que os verdadeiros culpados dessa brutalidade sejam punidos, mas pra que a guerra acabe, como você mesma pedia.

Hoje eu quero te dizer, companheira, que se os homens que atiraram contra o seu corpo imaginaram um dia que você era uma formiga, matável, hoje eles sabem que atiçaram um formigueiro enorme que não conseguirão deter. Todas as suas lutas também são nossas. Eles não vão ter arrego, nega.

Perto do 8 de março do ano passado, você me disse que viria a Brasília em breve. Eu queria muito ter te contado sobre nossa candidatura aqui. Queria trocar uma ideia, apresentar o samba candango que fiquei te devendo, meio que “pedir a bênção”, sabe? A Mônica veio dar uma força e foi muito bom conhecê-la mais de perto.

Aqui na Câmara nossa bancada do PSOL cresceu. Além dos guerreiros e guerreira Erundina, estão Talíria, Aurea, David (porque Jean é hoje um exilado político, vítima do mesmo ódio político que te tirou de nós), Samia e Fernanda. As meninas da sua Mandata hoje ocupam três cadeiras na ALERJ. Você entrou também na ALESP, ALEPE, ALMG.

Em todo canto, várias pretas, lésbicas, faveladas, mulheres trans tomaram partido e conquistaram muitos votos, Mari.

Não vai ter ameaça, intimidação ou flores arrancadas que poderá deter a primavera. Eles são fortes, e nós somos incansáveis e inevitáveis.

Ah! Você viu que a sua mulher acabou vindo pra Brasília passar um tempo? Saiba que nós aqui vamos fazer o possível pra que ela tenha uma estadia cercada de afeto nesse Cerrado. É o mínimo que a gente pode fazer. Vamo que vamo!

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