Sistema carcerário brasileiro e a impossibilidade de ressocialização

Por Marina Verenicz, Diego Bonetti e Gianna Staniscia

Marina Verenicz
Marina Verenicz
7 min readNov 28, 2018

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Photo by Ye Jinghan on Unsplash

Hoje o Brasil é o terceiro país que mais aprisiona no mundo. Como se não bastasse a desonrosa medalha de bronze, face os nossos três concorrentes diretos nesse pódio autoritário (Estados Unidos, China e Rússia) somos o único país cuja população carcerária segue aumentando.

Em 2016 o Brasil tinha 726.712 presos e apenas 368.049 vagas prisionais. Isso tudo sem contar as pessoas que se encontram em prisão domiciliar e as monitoradas eletronicamente. Os três tipos penais que mais encarcera no Brasil são os crimes contra o patrimônio (45%), seguido de tráfico de drogas (28%) e crimes contra a vida (14%).

O cárcere é o estágio mais gravoso de uma série de etapas, previstas no Código de Processo Penal, nas quais estão suscetíveis pessoas que cometem algum delito na nossa sociedade. A privação de liberdade e a consequente retirada deste indivíduo do convívio social é uma forma de fazer com que se cumpra a sanção relativa ao crime cometido.

No entanto, a lei pátria prevê que a pena tenha, como principal requisito, não só a punição, mas a ressocialização do indivíduo, possibilitando sua posterior reinserção na sociedade. E cabe as unidades prisionais, conforme previsto na Lei de Execuções Penais, proporcionar a ressocialização desses encarcerados.

Rodrigo D., assessor institucional penitenciário do Complexo Prisional de Pedrinhas, no Maranhão, indica que a ideia é clara no papel, no entanto, a prática da ressocialização de presos é bem diferente:

“A questão é complexa, na verdade eu até questiono em que medida a gente pode falar em ressocialização, considerando que muitas dessas pessoas nunca foram socializadas. Grande parte de suas vidas elas estiveram fora da sociedade, elas estiveram sempre do lado de fora desse sistema. Eu questiono muito em como a gente pode falar em ressocialização de uma pessoa que nunca esteve lá dentro. Uma pessoa que nunca teve acesso à educação, acesso à saúde, nunca teve a chance de ascender, ou fazer parte dessa sociedade”, afirma.

Além do desafio de dar um novo sentido a vida das pessoas encarceradas, o sistema ainda luta contra o sério problema da taxa de ocupação nos presídios. Atualmente o país enfrenta um déficit de vagas que passa das 400 mil unidades e possui uma taxa de ocupação de 197%, segundo dados do Infopen — Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias.

Os dados do Infopen de 2016 revelam ainda, que o sistema prisional vive uma das piores crises de sua história e por falta de infraestrutura não consegue atender a demanda que não para de crescer.

Jéssika Aguiar, advogada criminalista, afirma que essa situação compromete qualquer efeito de ressocialização que se pretende promover dentro dos presídios:

“Hoje o sistema penitenciário brasileiro se encontra absolutamente superlotado e não há, ou há muito pouco, em unidades prisionais muito específicas alguma preocupação com essa ressocialização do indivíduo”.

E a perspectiva de um futuro mais promissor ainda é distante. Entre 2000 e 2017, a taxa de aprisionamento aumentou 157% no Brasil. Em 2000 existiam 137 pessoas presas para cada grupo de 100 mil habitantes. Em junho de 2017, a proporção subiu para 352 pessoas presas.

Para ilustrar ainda mais o cenário caótico vivido pelo sistema prisional brasileiro, mais de 40% da população carcerária cumpre pena sem nem sequer ter sido condenada.

Os números estarrecedores podem ser compreendidos pelo fato da pena não atingir os objetivos propostos pela lei de execução penal, conforme explica a advogada criminalista Jéssika Aguiar:

“A pena no Brasil não atinge os objetivos propostos pela lei de execução penal. Na prática, na verdade, a gente pode dizer que ocorre o oposto daquilo que a lei propõe. A começar pelas unidades prisionais que estão absolutamente superlotadas, que já é um desrespeito a LEP. A lei de execução penal fixa alguns parâmetros mínimos para as locações das pessoas nas unidades prisionais. Ela traz uma série de parâmetros desde tamanhos de cela até o que seria recomendado em números de pessoas em cada uma. E isso é absolutamente desrespeitado”.

Odálio Júnior, ex-detento, conta que incialmente uma cela proposta para comportar 12 presos não passa de ficção:

“Deve ser uns três de largura por uns oito de comprimento. Nesse espaço, com o banheiro, deveriam ficar 12 presos, tem 12 camas. Então seria um preso por cama. Como a gente tá falando do sistema penitenciário brasileiro, na minha cela o mais vazio que ficou foi 42 e já chegou a 67, 68, se eu me lembro. Então é dois por cama, o que chama valete, um para lá e um para cá, e o resto no chão. Forra o chão inteiro de colchão e vai se encaixando mesmo, como se fosse um quebra cabeça”.

Diante desta realidade, fica evidente que o ambiente não proporciona uma visão de recuperação social do indivíduo privado de sua liberdade. Em uma realidade onde não se tem os direitos civis respeitados e uma situação precária de higiene, as possibilidades de uma reinserção na sociedade são quase nulas.

Sem as medidas necessárias para recuperação dessas pessoas, o que acontece é uma inversão de papéis. Facções se fortalecem, novos integrantes compõem a comunidade do crime e as pessoas acabam saindo mais violentas do que entraram.

Segundo o assessor Rodrigo D., tudo passa pela infraestrutura. Sem as condições provenientes do Estado, fica impossível gerar segurança e, consequentemente, promover a ressocialização proposta:

“Antigamente a gente tinha uma crise de infraestrutura de segurança, então a partir do momento que a gente consegue melhorar a infraestrutura, consegue melhorar a segurança, a gente consegue ter um ambiente mais favorável a outros tipos de atividade que anteriormente não existiam”.

Para ele, o oferecimento de atividades laborais e educacionais pode ser o caminho para devolver a vida social ao preso, no entanto, devido à superlotação das unidades, o sistema ainda não consegue disponibilizar os serviços para toda população prisional:

“Desde os últimos dois anos basicamente, a gente vem oferecendo essa possibilidade de atividades educacionais e de trabalho para as pessoas lá dentro. No entanto, a gente não consegue oferecer ainda para 100% das pessoas presas esse tipo de atividade”.

Não há, de fato, um padrão no quesito de ressocialização seguido por todas as unidades prisionais brasileiras. A realidade é conflitante por todo o país. Se no complexo de Pedrinhas, no Maranhão, onde Rodrigo D. atua, exista um esforço do Estado a contribuir para a ressocialização, o mesmo não ocorre no Centro de Detenção Provisória de Osasco, onde o ex-detento Odálio Júnior ficou encarcerado por dois anos:

“Cadeia não ressocializa ninguém. A cadeia de hoje em dia, o cara vai entrar, vai sair pior do que entrou, o cara vai sair revoltado. Não tem nada para ressocialização. Não tem uma laborterapia, exercício físico, não tem nada. Eu matava meu tempo fazendo flexão, correndo ao redor da quadra. Tem a rapaziada que gosta de futebol, então essa é a laborterapia que o preso tem, mas é tudo por conta do preso. Da parte do Estado eu nunca vi em nenhuma cadeia”.

Entre todos os estabelecimentos prisionais, apenas 56% estão equipados com salas de aula, 11% têm sala de informática e 41% possui biblioteca. Apenas 10,25% dos presos participam de atividades educacionais.

No que tange atividades laborais, 17% dos presídios oferece sala de produção, 8% têm sala de estocagem e 22% têm oficinas de trabalho. 13,2% dos detentos trabalham durante o cárcere.

Apesar desses dados alarmantes, a ressocialização não depende exclusivamente do Estado. Para o preso estar apto a desenvolver trabalhos que pretendem uma reinserção social, é necessário cumprir alguns requisitos, e claro que nem todos estão dispostos ou interessados a ter sua vida social de volta.

Rodrigo D., assessor penitenciário, explica que o histórico e bom comportamento dentro das unidades prisionais são imprescindíveis para o preso ser selecionado às atividades:

“É feito uma seleção com base em alguns critérios, com base na educação, comportamento, histórica dessa pessoa dentro do sistema, e depende também muito da atividade a ser realizada e isso depende muito do interesse do preso. A gente não pode e nem obriga as pessoas trabalharem, até porque a gente não consegue oferecer vagas para todos, então isso também vai dessa questão, do interesse e perfil de cada um deles dentro do sistema”, conlcui.

Qual seria a solução para diminuição da população carcerária? Números do Infopen mostram que mesmo com as medidas ressocializatórias, os índices de criminalidade aumentam drasticamente no Brasil. Seria este sistema capaz de recuperar socialmente essas pessoas? Para ele fica evidente que não:

“Não vejo esse sistema como capaz de ressocializar todas as pessoas que estão lá dentro, por que a própria ideia de ressocialização é questionável, segundo por que esse sistema basicamente nunca foi pensado para isso. Infelizmente a LEP nunca conseguiu ser aplicada, da forma como ela foi escrita e idealizada, e não parece que no Brasil como um todo, esforços vem sendo tomados no sentido de tornar realidade, pelo contrário”.

O assessor penitenciário ainda afirma que não é construindo novas unidades que o problema será resolvido:

“O que a gente vê, a grosso modo no país, basta você construir novas unidades e colocar gente lá dentro, que a ressocialização vai acontecer num passe de mágica. E acho isso bastante pouco provável de acontecer nesses moldes atualmente”.

Esse cenário evidência que é imprescindível que o número de vagas prisionais seja aumentado de forma exponencial e urgentemente, no entanto, resta claro que, tão necessário quanto, é repensar na politica criminal para que não se utilize a pena privativa de direitos de forma indiscriminada, bem como que as formas de cumprimento sejam dignas e os estabelecimento prisionais cumpram o previsto pela LEP.

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Marina Verenicz
Marina Verenicz

Jornalista formada em Direito. Em um relacionamento sério com a política. Missão: desmistificação.