OBSERVADOR NÃO CONFIÁVEL

Marivaldo Lima
marivaldolima
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3 min readAug 10, 2020
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Eu sempre me interessei pelo ato de olhar, observar; o nosso olho é um dos mais interessantes órgãos da obra prima, criada por Deus, o corpo humano. Responsável por 80% dos estímulos de interação entre nós e mundo, os olhos são um verdadeiro portal por onde entram lindos rostos, paisagens, letras e cores, afetando nossos sentimentos, alegria, tristeza, emoção e gozo. O olhar diz, às vezes ele faz, às vezes ele chora, e às vezes ele simplesmente ignora.

Não sou um exímio observador, um escritor faz isso muito melhor que eu. A confirmação veio quando, um dia, disseram-me que precisaria vestir meus olhos. Eu adorei. Claro que achei que o uso dos óculos seria ocasional, para os momentos em que desejasse ser meu outro eu, ao me olhar ao espelho, mas a primeira vez que o vesti senti algo como se alguém limpara o mundo, uma faxina bem feita, esmera em detalhes; percebi que ele iria me acompanhar constantemente.

Antes, nitidez não fazia parte do meu modo de ver. Por isso, usar óculos tornou-se uma rotina, quase uma necessidade fisiológica. Mas, infelizmente, com o passar dos anos, um incômodo, um fardo. Na verdade eu não enxergava mais com clareza nem usando óculos. Foi-me proposto o uso das lentes rígidas, esclerais. Relutei, mas diante das circunstâncias, aceitei.

Lembro-me do primeiro dia em que eu vesti meus olhos com as lentes. Cheguei em casa e vi um filho de quatro anos que eu nunca tinha visto, a riqueza de detalhes me emocionou. Olhar-me no espelho foi a grande sensação de perceber o quanto o tempo passou. (rs)

Portanto, meu modo de ver o mundo tem sido mediado por um acessório. É como se houvesse uma ponte entre eu e o mundo, de forma que preciso percorrê-la sempre que desejar acessar o outro lado. Usando-a, eu chego até a imagem: o resultado da interação entre o que o olho vê e o que o cérebro aprendeu, em informações, sobre o que foi visto. Surgem as cores, os detalhes, os movimentos, as ações, as reações.

Viver requer observação. Experimente fechar os olhos, escolher qualquer objeto ao seu redor. Agora tente, sem abri-los, adivinhar o que acabou de pegar. A princípio, os seus sentidos não vão falhar, mas conforme você escolhe objetos que não fazem parte da sua vida cotidiana, mais dificuldade e necessidade da certeza da visão você terá para adivinhar o que acabou de escolher. É ela que decide, por exemplo, se tocamos (ou não) em um cacto. Ela nos orienta entre o caminho pedregoso ou o livre de qualquer obstáculo. A forma como vemos molda a forma como respondemos ao mundo.

Nosso mestre Jesus foi além: o modo de observar o mundo molda a forma de como respondemos a nós mesmos (Mt 6:22–24). De certa forma, nesse contexto, meus olhos não são apenas uma fonte de acesso, mas o equilíbrio que me faz perceber o que é bom ou ruim para mim. Assim, eu sou o que eu escolho ver.

Não sou um exímio observador, como disse. Na verdade, estou na classe dos observadores não confiáveis; pois bom seria se não houvesse ponte entre o mundo e eu. Mas por outro lado, eu ainda posso escolher. Ver ou não ver, para mim, ainda é opção e sou muito grato a Deus por isso.

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