O que assistir na Semana da Consciência Negra?

Más Feministas Podcast
masfeministas
Published in
7 min readNov 18, 2019
Foto: Comitê da Marcha das Mulheres da Zona Leste de SP

Preparamos uma lista com documentários e curtas sobre negritudes, resistência negra e combate ao racismo.

A construção da Igualdade — História da Resistência Negra no Brasil

Por Vanessa Bittencourt

Este documentário dirigido por José Carlos Asberg e produzido pelo Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP) (ONG com sede no Rio de Janeiro) resgata episódios de resistência negra ainda relativamente negligenciados quando falamos de História do Brasil, como a luta do quilombo de Palmares, a Revolta dos Malês e a Revolta da Chibata. Entre os tipos de resistência negra contra a escravidão, o documentário apresenta a formação de quilombos, a tentativa de preservação das raízes culturais africanas, o banzo (apatia que poderia levar o escravizado à morte por inanição) e as insurreições, tendo como principal exemplo as revoltas organizadas pelos malês (escravizados muçulmanos e letrados) na Bahia ao longo da primeira metade do século XIX. O apagamento desses episódios de luta coletiva também inviabiliza o reconhecimento de líderes negros na história do Brasil, como Zumbi dos Palmares e João Cândido. Enquanto o quilombola Zumbi tem sido celebrado com mais sucesso pelo movimento negro, o principal nome da Revolta da Chibata não é lembrado com frequência. Em novembro de 1910, João Cândido, o Almirante Negro, liderou a rebelião de marinheiros negros contra os castigos violentos aplicados por oficiais brancos. Os marinheiros tomaram navios para pressionar as autoridades e só se renderam após a promessa de anistia. No entanto, João Cândido foi punido severamente, aprisionado primeiramente no presídio da Ilha das Cobras, onde muitos de seus companheiros acabaram morrendo, e depois no Hospital de Alienados, sob alegação de que teria desenvolvido transtornos mentais. Além dos confrontos, o documentário também menciona formas de resistência não-violentas, destacando a complexidade das relações entre diferentes grupos étnicos-raciais dentro dos quilombos e o papel das casas de candomblé (lideradas por mulheres) na conciliação entre grupos de diferentes raízes africanas. Participam do documentário o pedagogo Ivanir dos Santos, o escritor e então senador Abdias do Nascimento e a historiadora Giovana Xavier.

Morena

Por Fran Carneiro

Produzido com alunas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), “Morena” traz depoimentos de mulheres negras sobre a hipersexualização de seus corpos. O documentário questiona a idealização da mulher brasileira enquanto a “mulata cheia de curvas” e a pressão para que a mulher seja “a garota legal” ou a “garota fácil”, “disponível no mercado”, quando ocupa ambientes “masculinos”. As entrevistadas desabafam sobre a sensação de terem seus corpos vistos como públicos e relatam casos de assédio sofridos no âmbito pessoal e profissional. Elas também compartilham o incômodo que sentem ao serem julgadas a partir das roupas que vestem. Algumas das jovens admitem a preferência por roupas mais largas para disfarçar as curvas e tentar escapar da objetificação e do assédio. Por fim, ouvimos algumas falas sobre colorismo, mostrando que mulheres negras com a pele mais clara tendem a ser tratadas de uma forma diferente, “mais amigável”. Ser identificada como “morena” ou “moreninha” indica que sua aparência é considerada “mais aceitável” pela sociedade do que a aparência de mulheres negras retintas.

Esperanças — Eu, Mulher Negra

Por Fran Carneiro

Produzido por Ana Carolina Dias, Tauana Queiroz e Bia Magalhães, o documentário “Esperanças — Eu, mulher negra” aborda trajetórias de mulheres negras de Teresina (PI). As entrevistadas são Halda Regina (professora e secretária estadual de políticas públicas para mulheres), Esther Lima (cantora e estudante de música), Camila Hilário (estudante de jornalismo) e Lara Danuta (estudante de serviço social). As quatro refletem sobre o que é ser uma mulher negra e sobre o momento em que se deram conta de sua identidade racial. Ela trazem memórias sobre episódios de racismo vividos durante a infância ou fase adulta, além de experiências familiares que se conectam e constroem suas histórias.
Para mim, a cena mais emocionante é quando uma das entrevistadas fala sobre ter conseguido cursar uma faculdade e passar no mestrado depois dos 30 anos, com uma filha e tendo trabalhado desde cedo para se sustentar. Outra mulher finaliza seu depoimento relatando as conversas que tinha com sua mãe sobre racismo e militância. No entanto, ela admite que “estar dentro do movimento cria em você uma conscientização, mas não te protege do racismo e não te deixa imune”.

Ninguém nasce assim

Por Fran Carneiro

O documentário “Ninguém nasce assim” foi produzido em 2014 pelo Prof. Cristiano Campos após um episódio de racismo contra um aluno de 14 anos no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Ele traz depoimentos de funcionários e alunos sobre o caso em questão, além de questionamentos sobre o que seria racismo (é só a ofensa?), quais práticas eles consideram racistas e como encaram essa opressão no ambiente escolar. De acordo com os alunos, esse colégio é um ambiente politizado e, por isso, muitos ficaram surpresos com a ocorrência de um episódio de racismo justamente ali, local que preza pela diversidade e que conta inclusive com uma Comissão dos Negros. Para eles, era “o último lugar onde deveria acontecer”. Na opinião de Alessandra Pio, Técnica em Assuntos Educacionais, é fácil que pessoas brancas levantem hashtags como “somos todos macacos” quando em suas vidas não serão discriminadas ou menosprezadas pela cor da pele, assim como é fácil dizer “somos todos iguais” quando essa igualdade existe apenas para uma parcela da sociedade.
É curioso notar que, embora o documentário mostre diversas atividades desenvolvidas pela escola para tentar transformar o caso em aprendizado (ou, segundo um dos professores, “o limão em limonada”), boa parte dos alunos ainda tem dificuldade em chamar racismo pelo nome e acabam adotando “isso” ou “essa atitude” para evitar a palavra. Ponto importante para entender como nós lidamos com racismo e como estamos agindo sobre o assunto.

KBELA- O filme

Por Vanessa Bittencourt

O premiadíssimo curta-metragem KBELA, dirigido por Yasmin Thayná, trata da relação de mulheres negras com os próprios cabelos, reconhecendo que essa relação ainda é fortemente impactada pelo racismo e por pressões estéticas. Desse modo, o curta expressa todos os tons de vergonha, tristeza e sentimentos de inadequação gerados pelos ataques cotidianos ao cabelo crespo e pela imposição da estética branca como referência de perfeição. A cena em que uma mulher lava uma panela com os próprios cabelos, como se fosse uma bucha, simboliza a violência desses ataques, bem como o processo de internalização das mensagens racistas que pessoas negras, especialmente mulheres, recebem ao longo da vida. Em outra cena potente, uma mulher negra pinta a pele de branco e depois livra-se da tinta, representando o momento em que rompe com as expectativas de se encaixar no padrão de beleza branco. Esse tipo de conquista é possível quando entendemos que a luta é coletiva, assim como indica a delicada cena em que uma mulher amarra o turbante da outra (contrastando com a tão recorrente experiência de uma mulher alisando o cabelo da outra). Em outras palavras, a reta final do curta é uma grande celebração dos cabelos crespos de diferentes texturas, da ancestralidade e da vida.

Negritudes brasileiras

Por Vanessa Bittencourt

Negritudes Brasileiras é um documentário idealizado e apresentado pela youtuber Nátaly Neri e produzido pelo coletivo Gleba do Pêssego (composto por jovens LGBTs e periféricos de São Paulo). Reunindo depoimentos e reflexões de personalidades como o escritor Ale Santos, a historiadora Giovana Xavier, a arquiteta e escritora Joice Berth, entre outros, o documentário mergulha no complexo debate sobre identificação racial no Brasil. Logo no início, algumas entrevistadas são convidadas a descrever suas características físicas, lembrando que a tomada de consciência sobre a negritude também passa pela tomada de consciência sobre o próprio corpo. Além disso, os convidados discutem processos históricos e políticos decisivos para a construção das identidades raciais, como a escravidão, a conjuntura pós-abolição, a miscigenação e os esforços para o embranquecimento da população. O racismo que desumaniza, o colorismo que confunde até os espelhos (será que sou negro?), a violência que seleciona alvos negros com tanta precisão e o apagamento cultural, ainda que sejam tópicos dolorosos, são também imprescindíveis para a compreensão da urgência de demolir o mito da democracia racial e de romper com estereótipos como o homem negro vagabundo ou violento e a mulher negra raivosa ou hipersexualizada. Em síntese, o documentário nos convida a pensar em negritudes no plural, reconhecendo diferentes formas de ser negro, bem como diferentes formas de vivenciar o racismo.

GLOSSÁRIO

Racismo: Na definição de Silvio Almeida, “racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam”. Já preconceito racial “é o juízo baseado em estereótipos acerca de indivíduos que pertençam a um determinado grupo racializado”.

Colorismo: processo de diferenciação de pessoas negras tendo como critério o tom da pele. O colorismo se manifesta, por exemplo, em situações em que negros de pele mais clara têm vantagens em comparação com negros retintos, como a disputa por postos no mercado de trabalho. Em outras palavras, quanto mais clara a pele, maior a chance de aprovação social.

Mito da democracia racial: negação da existência do racismo e das consequentes desigualdades entre negros e brancos em nossa sociedade. Fundamentado na relativização da violência branca contra os escravizados negros, esse mito explora a miscigenação como justificativa para defender que as relações entre brancos e negros são sempre harmoniosas, supondo que “somos todos iguais” (ignorando a situação de marginalização e vulnerabilidade de considerável parcela da população negra).

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019, p. 32.

O que já escrevemos sobre o assunto:

Consciência Negra e Representatividade: As Lendas de Dandara
O espelho de uma mulher negra
Colorismo (ou: falando do meu espelho mais uma vez)

--

--