Comunidades de apoio mútuo em educação — Um estudo de caso

Tarik Fraig
Masters of Learning
10 min readOct 22, 2020
09/07/2020

Ahoy!

Em 04 de Junho desse ano, co-criei junto de algumas amigas e um amigo uma Comunidade de Aprendizagem em Educação. A motivação veio da formação Aprender em Comunidade, oferecida pela EcoHabitare, na qual tínhamos de criar um Núcleo de Projeto. O contexto de pandemia facilitou a decisão de fazer uma comunidade à distância. O chamado foi simples: vamos conversar sobre as nossas práticas, compartilhar nossos problemas, partilhar o que sentimos sobre o que significa ser educador(a) nessa época e nessa sociedade que são nossas.

Desde esse dia começamos a nos encontrar às quintas-feiras. Passamos do Skype ao Jitsi e depois ao Discord. Essa humilde experiência acabou por ter uma grande repercussão em todas as pessoas que participam da comunidade. Gostaria de compartilhar alguns processos e reflexões coletivas sobre esses processos. Essa é também uma maneira minha de aprender um pouco mais sobre o que é apoio mútuo.

Já aviso que este será um texto mais longo do que o de costume. Não por capricho pessoal, mas por respeito a essa experiência.

Pois vamos!

O CHAMADO — O QUE É QUE NOS UNE?

Cada uma das integrantes da comunidade foi chamada particularmente. Na mensagem de convite, esbocei apenas a vontade de constituir uma comunidade de educação com pessoas que já conhecia. Nessa “escolha” das pessoas, não pensei na experiência nem no tipo de pensamento que tinham sobre educação. Observando retrospectivamente, penso que me guiei por 2 critérios: 1) se as pessoas me pareciam vivas (o critério do José Pacheco: um educador que ainda não morreu); 2) se essas pessoas estariam abertas e dispostas a dedicarem um pouco de seu tempo a construir essa comunidade comigo.

Ao todo, somos sete. Uma comunidade nem tão grande que ficássemos naquela defensiva inicial, mas nem tão pequena que fosse apenas uma conversa informal entre amigos.

O nosso primeiro ciclo foi uma partilha de experiência. A cada semana, uma de nossas integrantes “subia no palco” e contava às outras pessoas a sua história com educação. Aqui entraram também os sonhos, as frustrações (principalmente as frustrações!), os momentos em que nos sentíamos sozinhos, quando estávamos felizes, o que pensávamos da formação que tínhamos recebido na universidade, o que ficou a desejar, o que tínhamos aprendido, o que não tínhamos aprendido e o que queríamos aprender.

É preciso também dizer que entraram aqui partilhas de afetos bem íntimos e pessoais, coisas que geralmente ficariam de fora num ambiente mais “formal”, uma vez que não se encaixariam na gaveta da Educação. Uma coisa surpreendente foi a emergência — quase que espontânea — de um conceito coletivo de educação — como algo que estaria para além da sala de aula, além da escola e da universidade, e que seria mais da ordem de um fenômeno existencial. Como diz a Viviane, integrante da nossa comunidade: “Se a gente descarta a sensibilidade enquanto parte da profissão, acho que é difícil nos chamar de educadores”.

Durante essas semanas iniciais, fui também coletando algumas conversações individuais com as integrantes da comunidade:

Ana Beatriz [Bibi] — “Acho que misturou um pessoal bem firmeza e diverso de experiências, mas dentro do mesmo fio condutor mais ou menos. Achei que pode rolar muito intercâmbio da hora de brisas”

Roberta — “Eu gostei, me senti um pouco mais leve porque senti que tinham pessoas inseguras também, achei que eu ia ser meio largada lá como te falei hahah. Mas pro fim fiquei até meio emocionada, senti um alívio de poder saber que tem tantos que partilham das mesmas angústias e querem fazer algo sobre. Acho que inicialmente vou ficar mais travada, mas sinto que vai rolando com o processo em si, ir construindo afeto né”

Viviane — “Achei muito massa. Estou bem entusiasmada com o grupo. Vai ser um local que vou aprender muita coisa. E me acalentar também. Baita projetão”

De uma certa maneira, podemos dizer que a comunidade nos serviu também como um lugar de descarrego, ou, para usar uma expressão de uma das membras, a Bibi: desafogamento.

Bibi — “desafogar […] tá meio que afogado várias coisas e você trocando ideia com certas pessoas,e não clica né, não é a mesma brisa, não é a mesma preocupação, e é uma desafogada mesmo, que eu dava, quando a gente trocava ideia”

Viviane — “A Pâmella traz frases que me deixam mais matutando. A crueza que ela traz, junto com as inseguranças, com a ideia de não ser pertencente àquilo — me leva a um senso de realidade. Ela traz um desespero numa fala acelerada que me parece um grito que aparentemente parece solitário, mas que quando ela encontra esse espaço, por exemplo, torna-se não um desespero, mas uma fala que a gente escuta, e quando a gente escuta aquilo que é grito, diminui a tormenta […] Escutar é algo que entra na gente. E como é que sai depois? Eu acho que essa comunidade faz sair. Sem doer. Quase sempre”

Pâmella — “Eu tava pirando de ficar sem trocar com as pessoas. E quando surge um grupo pra trocar sobre educação — que eu não trocava com ninguém — , realmente me salvou do caos. Que eu tava sozinha nisso. Eu trocava com alguns professores, mas não era nunca igual. A gente só reclamava. Aqui é um respiro. Um respiro da loucura da semana. Vê que as pessoas ainda são pessoas, que as pessoas ainda sentem. E você volta pra sua semana”

SOBRE SER VISTO — PRODUÇÃO DE VISIBILIDADE E VALOR

Aprendizado que tive: comunidades de apoio mútuo são espaços de produção de valor. Em que sentido? Quando nos juntamos num espaço em que se instaura um campo de afecção e percepção amplo o suficiente, em que há confiança, em que nos sentimos confortáveis para falar com o coração, algo acontece. Algo que aconteceu com todas as pessoas da comunidade.

As pessoas sentem que importam.

Pâmella — “Fico muito feliz que tenha pensado em mim para compor esse grupo […] Me senti importante por compor um grupo de discussão sobre educação com essa galera.

[…]

O que é verdadeiro na nossa vida. Eu vejo essa nossa troca como algo real. Como algo que foge dessa superficialidade do mundo. Porque tudo é muito desimportante. Eu acho que o nosso grupo dá importância pras coisas que são realmente importantes. Mas me fez muito bem, assim”

Roberta — “Tô muito muito feliz. Nossa não sei como agradecer de você ter pensado em mim pra essas partilhas. Foi muito especial isso […] Meu deus, quanta coisa e quanta força”

Após a primeira roda de partilha de nossas histórias com a educação, começamos um novo ciclo. A proposta era que pudéssemos fazer circular o saber interno do grupo; fazer aparecer a nossa sabedoria coletiva. A cada semana passamos a oferecer oficinas uns para os outros. Não havia necessidade de ser mestre no tema: bastava um interesse em saber alguma coisa, uma dúvida inquietante. Alguns exemplos: discutimos sobre autonomia, sobre dependência, sobre os afetos na educação, sobre a realidade da escola pública, sobre a postura no “palco” da sala de aula, literatura, emancipação, arte… ufa!

Essa atmosfera de compartilhamento acabou por produzir uma esfera de visibilidade. Ter com quem compartilhar tem como efeito colateral a afirmação de nossos pensamentos e afetos considerados “dissonantes”. Aqueles pensamentos subversivos deixam de ser “loucura minha” e passa a ser cultura de comunidade. Pessoalmente, isso acabou sendo para mim um estímulo para estudar mais sobre educação.

EU SOU PORQUE NÓS SOMOS — SENSO DE “NÓS”

Pâmella — “Eu nunca vivi isso. Nunca tive essa experiência antes. Sabe, deu até vontade, eu tava na reunião de professores, e eles falando de texto. Me veio assim na cabeça: “o que o Tarik, a Viviane, a Bibi, a Elaine, o que eles falariam?”. Eu tive vontade assim, de falar a real, o que a gente pensa. Mas não falei. Da próxima eu vou falar: meu, o que vocês tão falando de gênero de opinião, se vocês nem dão espaço pros alunos pensarem?”

Bibi — “Acredito que necessariamente qualquer prática pedagógica minha será permeada, de distintas formas e intensidades, pelo encontro com essas pessoas, que compartilham de vontades, desejos, frustrações, alegrias e didáticas, por vezes semelhantes e por vezes opostas a mim”

Lembro das palavras de Rodrigo Hübner, em seus Versos a um jovem educador:

“Mestres que o rodearam

Falam dentro de você

Consulte-os pelo caminho

Conte-lhes tudo o que vê”

De alguma maneira, nesse processo de compartilhamento, acabamos por nos tornar mestres uns dos outros. E umas das outras. A minha prática passou a dar lugar à nossa prática. As minhas ideias ganharam a sustentação de um nós. Cada um de nós leva todos os outros para os ambientes educativos pelos quais passa. Como disse a Bibi, “você sabe até onde você pode ir a partir das experiências dos outros”. O compartilhamento de nossa prática nos permitiu criar uma noção comum — co-produzimos um senso de possível. Nesse sentido, considero muito importante a variação das idades das pessoas da comunidade. A Elaine e o Alexandre, já pela casa dos 30, foram também importantes transmissores de experiência. Tivemos também a oportunidade de ter como convidada especial a educadora Rosangela Ludovico, nos possibilitando grandes momentos de troca intergeracional.

Para mim, isso tudo significa uma só coisa, pura e simples: produção de conhecimento. Não um conhecimento teórico, erudito e abstrato. Não um conhecimento de um tal disse, mas um conhecimento prático e íntimo. Não que tenhamos deixado de falar de teóricos ou que tínhamos repulsa aos livros. A diferença era que estavam livros, teóricas e pensadoras conectados com a nossa experiência efetiva, com aquilo que víamos e sentíamos em nossas práticas cotidianas. Conhecimento-mapa, conhecimento-bússola, conhecimento das brechas, dos buracos e dos espaços vacantes dos rígidos sistemas escolares. Uma espécie de saber vital do qual nos apropriamos e incorporamos.

Penso que isso poderia ser chamado também de “construção de uma cultura dissidente”. Sair da frustração individual e compor com ela um campo de problemas coletivos transforma a nossa percepção de nós mesmos em uma instituição. Ganhamos um novo olhar, uma nova atenção, um novo senso de realidade criado a partir dessa dissidência compartilhada. Não é apenas uma questão de “ganhar força” (embora isso aconteça e seja muito importante), mas de construir um novo ponto de percepção, um de onde ver as instituições e espaços “duros”. Não entro mais em uma escola pública do jeito que entraria antes.

A Pâmella resumiu tudo isso em uma só frase: “Vá caçar tua turma”.

EXPANSÃO DA VITALIDADE

Gostaria de terminar esse longo texto com um comentário sobre espaços de apoio mútuo como espaços de vitalização dos corpos e das mentes. Isso é um assunto que já explorei em outro texto. Queria apenas compartilhar dois relatos:

Bibi — “A partir da comunidade, me deu muito mais tesão de vida. Como a Vivi disse, dá um gás de vida. A gente fala de educação aqui, mas a gente tá falando de coisas sensíveis a nós. Educação não é só o dar aula. É a gente. Quando você deixa de dar aula, você não deixa de existir. Você continua sendo”

Viviane — “Não descartar aquilo que mantém a minha vivacidade. Acho que essa comunidade alimenta a minha vivacidade. E é muito importante se sentir viva no processo. A gente não se sente viva num processo que a gente não pertence”

Quando nos sentimos escutados — realmente escutados –, algo se passa em nós. Nos sentimos mais vivos, mais dispostos, mais alegres. Não nos sentimos mais tão vítimas dos maus encontros quanto antes. O nosso corpo fica mais leve, mais flexível, mais dobrável. Sacudimos os impedimentos, esgueiramos as passagens, brincamos com o que pensam de nós, damos risada de nós mesmos. Aprendemos que podemos criar todo um oceano de um único copo d’água. Temos a intuição de que às vezes é preciso apenas uma brecha. A distância entre imaginação e realidade diminui.

É também interessante notar como nasceu em todos nós o desejo de levar essa experiência para mais pessoas.

Pâmella — “E aí eu fico me perguntando, né. Por que que a gente não faz isso? Por que que a gente não se junta com o povo que faz a mesma coisa que a gente? Pra falar de frustrações, de experiências, de aspirações em comum? É tão fácil, tão simples, né”

Viviane — “Penso que essa comunidade poderia ser facilmente a coordenação de uma escola. Num ambiente de escola tradicional. Se a gente tivesse essas conversas numa escola pública… A filosofia é possível na escola?”

Bibi — “Não só perante o grupo, mas também na classe. Abrir o peito, porque todo mundo é frágil”

Quando nos sentimos gratos a uma experiência, a uma pessoa, a um grupo de pessoas, queremos levar isso para o mundo. A veia evangélica de todo mundo: queremos espalhar as boas novas! Expandir, alongar, continuar, transbordar.

Para mim, a participação nessa comunidade têm sido uma grande aprendizagem sobre a potência de estar juntos.

CONCLUSÃO NEM TÃO CONCLUSIVA

Queria terminar com uma pequena provocação amigável que faço a mim mesmo. Às vezes queremos buscar conhecimento tão longe: em cursos tão caros, com especialistas tão inatingíveis, com gurus tão super-humanos. E tudo bem tudo isso. Mas não deixaria passar: e quem está aqui ao lado? Não vale nada? O que é um espaço de aprendizagem significativo? O que é e pra que serve o conhecimento? Onde está? Com quem se faz? O que acontece quando compartilhamos sinceramente um ato de conhecer?

Só pra arrematar mesmo, algumas fotinhas nossas. Ciao!

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Tarik Fraig
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