Estudos autodirigidos compartilhados

Su Verri
Masters of Learning
12 min readDec 13, 2020

Inspirada pelo Cap.05 do livro Mulheres que correm com os lobos na comunidade: Molheres Autodirigidas

Momento de conexão -ALF Nature 2019

Sinto a polaridade que há em mim. Aos poucos me compreendo cíclica, lunar, transitória. Percebo que a minha busca, como Clarissa descreve, se deu como exploradora de uma mata selvagem que nada mais era do que eu mesma, a minha psique, o meu interior.

Essa busca desenfreada, em que me vi por muitos momentos descabelada, desesperada, desamparada, descalça em trilhas solitárias, gélidas e escuras e em outros momentos no paraíso do amor e do gozo maternal ou em furor sensual (mais nas trilhas gélidas e solitárias do que no gozo, confesso). Percebo que sou todas essas, sou muitas e sou única e só posso ser assim porque assim é a complexidade de ser mulher, de ser humana.

A busca pelo autoconhecimento não tem currículo pré estabelecido e muitas vezes os saberes brotam como uma certeza absoluta sem referência para citar. Ou melhor, a referência seria eu mesma nesta jornada terrena, que eu não sei como sei, mas apenas sei que por aqui já passei por muitas vidas. É importante lembrar que os nossos conhecimentos podem ser acessados no inconsciente, na psique como diz a Clarissa.

E neste caminho que hoje eu denomino autodirigido, mas que também é um caminho como unschooler, como gosto também de me referir pois faz parte da minha trajetória, fui desvelando, escavando, desvendando e descobrindo que na verdade nós vivemos uma vida superficial como marionetes de um sistema que nem existe, pois ele é uma ilusão.

Meus estudos começaram quando eu ainda era uma criança, quando me pegava sem dormir a noite refletindo sobre como poderia ser a sociedade sem o dinheiro, depois na adolescência eu me revoltei com o colégio convencional católico em que estudava e rompi com as tradições da família pela primeira vez indo terminar o Ensino Médio em uma Escola Alternativa. Aos 18, tranquei a faculdade, casei e fui morar numa comunidade intencional do Santo Daime onde tive dois filhos. Continuo casada, há 18 anos, com a mesma pessoa, acreditem!! E ainda moro no meio do mato. Em 2016 eu resolvi tomar mais uma decisão impactante na vida e tirei os meus dois filhos da escola e decidi me responsabilizar pelo desenvolvimento e aprendizagem deles. Em 2019 eu abri um Centro de Aprendizagem Ágil que se chama ALC Nature.

Em algum momento eu me enganei feio achando que já havia explorado o suficiente e agora aos 37 anos me vejo novamente recomeçando quando descubro em mim novos saberes e novos sentires que me vieram com muita intensidade junto com uma deliciosa sensação de amadurecimento. Percebo a minha ciclicidade mensal, menstrual, consigo me conectar com a lua, percebo meus longos ciclos de vida. Busco desenfreadamente faz tempo, mas me sinto começando agora, nascendo de novo, vivendo uma nova vida e nessa nova vida tem leveza, tem mais relva suave do que trilha solitária porque eu descobri que a grande beleza da vida, a grande alegria da vida é compartilhar.

Compartilhar significa que podemos confiar umas nas outras, que é possível atravessar as trilhas sombrias e que não é preciso atravessá-las sozinhas. Às vezes é preciso enfrentar nossos vales de forma autônoma, mas saber que temos apoio, amparo, muda bastante a perspectiva das coisas. Com o tempo vamos aprendendo a caminhar sozinhas e sermos a nossa própria lamparina, mas como é bom e como é importante as irmãs no caminho quando não acreditamos em nós mesmas, quando nos encantamos pelo Barba Azul ou quando temos uma madrasta em nossas vidas. E assim seguimos com estes estudos que têm me atravessado de maneira tão profunda e intensa e conectam as multiplicidades do meu ser.

Percebo o quanto fomos podadas nesse mundo e quantas foram podadas e dilaceradas antes de nós. Por que tanto sofrimento e tanta castração?? Essa dor ancestral que eu carrego, que nós carregamos é o que me faz seguir trilhando essa busca, essa cura, pelos vales sombrios e trilhas gélidas do caminho.

Eis que o tema que me chega é o encontro com o masculino, a percepção sobre o equilíbrio e o desequilíbrio da dualidade Yin e Yang que há em mim. Estudar este livro de maneira dedicada e aplicada tem sido como resgatar a minha própria vida, minha própria história, compartilhar destes estudos com outras mulheres tem sido uma dádiva.

A história da mulher esqueleto traz essa reflexão profunda sobre permitir que o masculino e o feminino façam as pazes e se equilibrem, mas o mais impactante dessa reflexão é perceber o quanto que a vida-morte-vida quando não considerada na relação entre o feminino e o masculino, entre o positivo e o negativo, quando a morte entra apenas como fim, como ela gera dor, escassez e a sensação de incompletude e vazio. É preciso aceitar a morte como uma porta para o nascimento, para poder fazer a integração entre o feminino e o masculino.

Uma referência importante que me veio com o estudo do capítulo 5 foi também a reflexão sobre essa busca desenfreada sobre a qual eu venho falando desde o início do texto e me deparo com o seguinte trecho: “Diz-se que tudo o que procuramos também está à nossa procura; que, se ficarmos bem quietos, o que procuramos nos encontrará. Ele está esperando por nós há muito tempo…”

A sociedade vem há gerações e gerações mutilando o feminino, considerando a morte como fim e podando a mulher selvagem e até mesmo a minha busca espiritual estava direcionada pela energia do masculino, quando considero a busca desenfreada ao invés da espera atenta e compassiva, confiante. Quando considero a morte como um fim e tenho medo dela. Se a morte é um portal, uma passagem, eu preciso reconhecê-la e reverenciá-la pois ela também é quem é a porteira da psique, essa tal psique da qual eu tanto fugi. Tentei fugir até da leitura do capítulo, corri, corri, ao redor de mim mesma, revirei, reneguei, recusei, até que, não pude mais fugir e precisei ler o capítulo e me colocar defronte com os arquétipos, memórias, sensações e crenças que este capítulo me fez refletir.

Comecei contando sobre ser autodirigida, eis que, neste processo de desvelar as ilusões, compreender o que há por trás do que nos impõem, compreender quem sou eu e a que vim, de que gosto, como quero viver a minha vida, o que faz bem ou não a mim, eis que, neste momento, mesmo tentando fugir da mulher esqueleto, como tentou o pescador, não foi possível fugir deste capítulo e nem de vomitar esse texto como uma expressão autêntica e sincera que reflete com muita transparência o que tem sido este grupo em minha vida, sem que eu escolhesse. A própria temática do feminino me encontrou, mas eu nem sabia que estava procurando. O Alex Bretas diz que é serendipidade, mas acontece que este estudo e este trabalho com mulheres não me encontrou, me atropelou de um jeito que revirou a minha vida, mudou as direções e me mostrou um novo mundo, uma nova eu dentro de mim mesma.

E ao mesmo tempo que é muito gostoso começar de novo, renascer, também vem com um pouquinho de ansiedade, de frio na barriga, onde é que essa história vai dar? Estamos apenas no capítulo 5 minha Deusa, o que mais me pode acontecer?

Mesmo sendo cíclica, mesmo já tendo começado de novo algumas vezes, mesmo tendo passado por mortes profundas e dolorosas e renascimentos resplandecentes, ainda assim, não me acostumei com o novo, ainda sinto frio na barriga, ainda sinto curiosidade e ainda de vez em quando aparece uma tirana interna pra me dizer que sou uma fraude e que dessa vez eu vou cair e me arrebentar toda sem recuperação.

A primeira vez que eu li o conto da mulher esqueleto também pensei o seguinte… Mesmo que a gente esteja toda quebrada, destruída, esquecida no fundo do oceano, ainda assim, com uma gota de lágrima e um pouco de amor podemos nos refazer e começar de novo e a melhor parte é que a cada renascimento estamos maiores, estamos melhores.

E veja mais essa frase da Clarissa: “Os picos e os vales simplesmente existem e os lobos passeiam por eles com máxima eficácia e facilidade possível.”( …) é preciso que se enfrente aquilo que mais se teme. Não há meio de escapar, como veremos. Teremos de dormir com a morte.”

E a Clarissa ainda continua dizendo sobre a morte que a Morte não é um mal, mas sim uma divindade, é um oráculo que sabe quando chegou a hora de um ciclo começar e terminar. “A incapacidade de encarar a mulher esqueleto e de desenredá-la é o que provoca o fracasso de muitos relacionamentos de amor”. Indo um pouco além com esta reflexão, o relacionamento não seria apenas entre um casal, ou entre pessoas, mas podemos considerar também essa relação entre feminino e masculino interna.

E assim meio desajeitadamente, como o pescador desajeitado de nossa história, vou encerrando este texto que saiu num ímpeto, num jorro, após alguns dias lidando com o gosto amargo da morte, tentando estabelecer essa conexão entre as polaridades e compreender um pouco melhor sobre essa coisa disforme que me achou, que me encontrou neste momento e esta coisa é o estudo deste livro e a relação de harmonia que estou buscando restabelecer é a minha comigo mesma.

Estive hesitante em compartilhar publicamente este texto por fazer parte de um processo muito íntimo e pessoal restrito a um grupo de mulheres que co-facilito com a querida Isadora Martins e também pela temática estar relacionada aos estudos do livro: Mulheres que Correm com os Lobos na comunidade de aprendizagem para mulheres que intitulamos: “Molheres Selvagens”, comunidade esta que nasceu dentro do Masters of Learning (carinhosamente chamado de MoL).

Por outro lado, sei que muitas mulheres há quase três décadas vêm se descobrindo e se curando através deste livro maravilhoso chamado por muitas de bíblia das mulheres e este texto nasceu de um processo tão bonito de ressignificação de mim mesma que eu penso que pode contribuir para outras leitoras da bíblia das mulheres.

Este texto refere-se aos estudos do capítulo 5 cujo conto é A mulher-esqueleto: Encarando a natureza da vida-morte-vida. Abaixo uma transcrição do conto…

A Mulher-Esqueleto

Ela havia feito alguma coisa que seu pai não aprovava, embora ninguém mais se lembrasse do que havia sido. Seu pai, no entanto, a havia arrastado até os penhascos, atirando-a ao mar. Lá, os peixes devoraram sua carne e arrancaram seus olhos. Enquanto jazia no fundo do mar, seu esqueleto rolou muitas vezes com as correntes.

Um dia um pescador veio pescar. Bem, na verdade, em outros tempos muitos costumavam vir a essa baía pescar. Esse pescador, porém, estava afastado da sua colônia e não sabia que os pescadores da região não trabalhavam ali sob a alegação de que a enseada era mal-assombrada.

O anzol do pescador foi descendo pela água abaixo e se prendeu — logo em quê! — nos ossos das costelas da Mulher-esqueleto. O pescador pensou: “Oba, agora peguei um grande de verdade! Agora peguei um mesmo!” Na sua imaginação, elejá via quantas pessoas esse peixe enorme iria alimentar, quanto tempo sua carne duraria, quanto tempo ele se veria livre da obrigação de pescar. E enquanto ele lutava com esse enorme peso na ponta do anzol, o mar se encapelou com uma espuma agitada, e o caiaque empinava e sacudia porque aquela que estava lá embaixo lutava para se soltar. E quanto mais ela lutava, tanto mais ela se enredava na linha. Não importa o que fizesse, ela estava sendo inexoravelmente arrastada para a superfície, puxada pelos ossos das próprias costelas.

O pescador havia se voltado para recolher a rede e, por isso, não viu a cabeça calva surgir acima das ondas; não viu os pequenos corais que brilhavam nas órbitas do crânio; não viu os crustáceos nos velhos dentes de marfim. Quando ele se voltou com a rede nas mãos, o esqueleto inteiro, no estado em que estava, já havia chegado à superfície e caía suspenso da extremidade do caiaque pelos dentes incisivos.

— Agh! — gritou o homem, e seu coração afundou até os joelhos, seus olhos se esconderam apavorados no fundo da cabeça e suas orelhas arderam num vermelho forte. — Agh! — berrou ele, soltando-a da proa com o remo e começando a remar loucamente na direção da terra. Sem perceber que ela estava emaranhada na sua linha, ele ficou inda mais assustado pois ela parecia estar em pé, a persegui-lo o tempo todo até a praia. Não importava de que jeito ele desviasse o caiaque, ela continuava ali atrás. Sua respiração formava nuvens de vapor sobre a água, e seus braços se agitavam como se quisessem agarrá-lo para levá-lo para as profundezas.

— Aaagggggghhhh! — uivava ele, quando o caiaque encalhou na praia. De um salto ele estava fora da embarcação e saía correndo agarrado à vara de pescar. E o cadáver branco da Mulher-esqueleto, ainda preso à linha de pescar, vinha aos solavancos bem atrás dele. Ele correu pelas pedras, e ela o acompanhou. Ele atravessou a tundra gelada, e ela não se distanciou. Ele passou por cima da carne que havia deixado a secar, rachando-a em pedaços com as passadas dos seus mukluks. O tempo todo ela continuou atrás dele, na verdade até pegou um pedaço do peixe congelado enquanto era arrastada. E logo começou a comer, porque há muito, muito tempo não se saciava. Finalmente, o homem chegou ao seu iglu, enfiou-se direto no túnel e, de quatro, engatinhou de qualquer jeito para dentro. Ofegante e soluçante, ele ficou ali deitado no escuro, com o coração parecendo um tambor, um tambor enorme. Afinal, estava seguro, ah, tão seguro, é, seguro, graças aos deuses, Raven, é, graças a Raven, é, e também à todo-generosa Sedna, em segurança, afinal.

Imaginem quando ele acendeu sua lamparina de óleo de baleia, ali estava ela — aquilo — jogada num monte no chão de neve, com um calcanhar sobre um ombro, um joelho preso nas costelas, um pé por cima do cotovelo. Mais tarde ele não saberia dizer o que realmente aconteceu. Talvez a luz tivesse suavizado suas feições; talvez fosse o fato de ele ser um homem solitário. Mas sua respiração ganhou um quê de delicadeza, bem devagar ele estendeu as mãos encardidas e, falando baixinho como a mãe fala com o filho, começou a soltá-la da linha de pescar.

— Oh, na, na, na. — Ele primeiro soltou os dedos dos pés, depois os tornozelos. — Oh, na, na, na. — Trabalhou sem parar noite adentro, até cobri-la de peles para aquecê-la, já que os ossos da Mulher-esqueleto eram iguaizinhos aos de um ser humano.

Ele procurou sua pederneira na bainha de couro e usou um pouco do próprio cabelo para acender mais um foguinho. Ficou olhando para ela de vez em quando enquanto passava óleo na preciosa madeira da sua vara de pescar e enrolava novamente sua linha de seda. E ela, no meio das peles, não pronunciava palavra — não tinha coragem — para que o caçador não a levasse lá para fora e a jogasse lá embaixo nas pedras, quebrando totalmente seus ossos.

O homem começou a sentir sono, enfiou-se nas peles de dormir e logo estava sonhando. Às vezes, quando os seres humanos dormem, acontece de uma lágrima escapar do olho de quem sonha. Nunca sabemos que tipo de sonho provoca isso, mas sabemos que ou é um sonho de tristeza ou de anseio. E foi isso o que aconteceu com o homem.

A Mulher-esqueleto viu o brilho da lágrima à luz do fogo, e de repente ela sentiu uma sede daquelas. Ela se aproximou do homem que dormia, rangendo e retinindo, e pôs a boca junto à lágrima. Aquela única lágrima foi como um rio, que ela bebeu, bebeu e bebeu até saciar sua sede de tantos anos.

Enquanto estava deitada ao seu lado, ela estendeu a mão para dentro do homem que dormia e retirou seu coração, aquele tambor forte. Sentou-se e começou a batucar dos dois lados do coração: Bom, Bomm!… Bom, Bomm!

Enquanto marcava o ritmo, ela começou a cantar em voz alta.

— Carne, carne, carne! Carne, carne, carne! — E quanto mais cantava, mais seu corpo se revestia de carne. Ela cantou para ter cabelo, olhos saudáveis e mãos boas e gordas. Ela cantou para ter a divisão entre as pernas e seios compridos o suficiente para se enrolarem e dar calor, e todas as coisas de que as mulheres precisam.

Quando estava pronta, ela também cantou para despir o homem que dormia e se enfiou na cama com ele, a pele de um tocando a do outro. Ela devolveu o grande tambor, o coração, ao corpo dele, e foi assim que acordaram, abraçados um ao outro, enredados da noite juntos, agora de outro jeito, de um jeito bom e duradouro.

As pessoas que não conseguem se lembrar de como aconteceu sua primeira desgraça dizem que ela e o pescador foram embora e sempre foram bem alimentados pelas criaturas que ela conheceu na sua vida debaixo d’água. As pessoas garantem que é verdade e que é só isso o que sabem.

Referência: Mulheres Que Correm Com Os Lobos: Mitos e Histórias do Arquétipos da Mulher Selvagem. Clarissa Pinkola Estés. Editora Rocco.

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Su Verri
Masters of Learning

Mentoria em Educação Autodirigida; Facilitadora Ágil (ALF); Comunidade de Aprendizagem Autodirigida; Desescolarização/Unschooling;Fundadora do ALC Nature