Reflexões de um Liquidificador

Carolina Rodriguez
Matérias Finanças
5 min readJan 9, 2020

--

Análise do Filme

O objeto audiovisual escolhido para análise foi o filme “Reflexões de um liquidificador”, produzido pelo diretor André Klotzel. Lançado em 2010, o filme trás a história de uma dona de casa, Elvira, que de repente começa a conversar com seu liquidificador. No entanto, o marido de Elvira, Onofre, está desaparecido há oito dias.

O filme começa com uma cena em fade out, um “voice over” de um caminhão que passa na rua a vender alimentos e produtos de limpeza com um megafone, dando a informação d que se trata de um bairro bem simples.

A trilha sonora da primeira cena — e do restante do filme — é caracterizada por um assovio que o diretor achou característico para representar o liquidificador. Vagarosamente, a câmera anda em seu trilho fazendo um close up no relógio que tica e na torneira que respinga insistentemente. Ambos os sons entram atrás do assovio como se fossem instrumentos, aumentando o impacto caseiro e original que se trás para a trilha sonora. O barulho dos pingos se converte num leve violão quase inaudível.

Mostrando outras partes da cozinha de modo preciso e bem próximo da lente, fazendo o telespectador achar que está lá, a “voice over” do ator Selton Melo preenche o vazio refletindo sobre como não consegue ficar mais calado como antigamente. Percebe-se logo que quem está narrando a história é o liquidificador focalizado pela câmera num close up mais demorado do que os outros objetos. O assovio para quando ele começa a falar, dando lugar a um suave violino por trás de suas reflexões.

O filme é narrado em primeira pessoa, pelo liquidificador, e possui uma narrativa não linear, colocada em vários flashbacks que confundem um pouco o espectador. Embarcamos numa viagem desde quando o objeto ganhou sua consciência e acompanhamos a evolução de sua filosofia.

Por ser deste posto de vista, já é sabido que Elvira matou seu marido desde os primeiros 10 minutos do filme, mas deve-se debater se foi com um motivo crédulo ou não. Porque com a bela atuação de por Ana Lucia Torres, tudo indica que foi um acidente.

É inusitado pensar que não há nenhum tipo de animação ou efeitos especiais para dar vida ao objeto. Ele ganha vida pela interpretação de Selton Melo, utilizando somente o recurso da voz. O liquidificador está lá, parado, sem qualquer indicação de que escuta, vê ou sente. Nada além de uma voz que paira no ar como se fosse uma consciência, um grilo falante, uma voz dentro da cabeça da personagem Elvira. Mas ele realmente está falando. Porém, manifesta-se somente em sua presença, como se só confiasse nela.

O eletrodoméstico é fundamental para o desenrolar da história e o desenvolver das personagens, assim como o seu próprio. Mostra ao espectador uma nova forma de ver a

vida, fazendo o tempo todo apologias sobre humanos e máquinas, sobre o poder sentir e o mecânico das coisas. Aprendeu a observar o mundo, as pessoas e criou assim uma consciência dentro de seu próprio padrão de máquina cortante, que tenta ser compreendido e compreender sua nova condição.

Muitas vezes, temos o ponto de vista do liquidificador, vendo o que ele vê a partir da câmera. A fotografia também muda quando a narrativa está se tratando do ser humano ou da coisa. Quando o foco é o liquidificador, a imagem se torna mais crua, sem tratamentos de luz. Especialmente quando se trata de lembranças de sua vida ou de sua função: cortar.

O liquidificador se define como cúmplice, além de objeto, dos fatos que mudaram a vida dos moradores da casa em que se encontra. A câmera foca então um copo d’água para introduzir a outra personagem principal, que o bebe, sem sair de um close up. Passa a sensação de que o telespectador é o liquidificador e tem uma visão intimista da dona da casa.

Elvira está de pé em sua cozinha, pensativa. Usa roupas de uma senhora de 60 anos, recatadas e com cores neutras. A câmera está fica e enquadra a geladeira, onde o liquidificador está apoiado, e a mulher, apoiada na pia. O ambiente familiar e simples mostra que não vivem com luxo, apenas o necessário. Elvira avisa que vai sair, como se o liquidificador fosse uma pessoa, um morador de sua casa, mas não é dito para onde. O objeto lhe deseja boa sorte.

Num plano mais aberto, é revelado que ela vai até uma delegacia registrar um boletim de ocorrência pelo desaparecimento de seu marido. É designado um investigador para o caso com um comportamento meio duvidoso. O delegado diz que é possível que seu marido tenha fugido com outra mulher e que Elvira é sempre a primeira suspeita.

A trama é ambientada na cidade de São Paulo e tem ótimos planos abertos em que é possível reconhecer o local específico em que a cena se encontra. O bairro de Elvira é mostrado algumas vezes em plongeé panorâmico e nota-se que é praticamente na periferia da capital. No entanto, a fachada de sua casa é contraditória, o oposto de seu interior: grande, colossal, de um amarelo suave e detalhes em branco, com uma hora na enorme área de concreto que se estende em sua garagem.

Assim como sua casa, Elvira também é um imenso contraste. Uma senhora embarcando na terceira idade, aposentada, extremamente pacata e que zela pela vida dos vizinhos, tem como hobby empalhar animais. Aprendeu desde pequena o ofício com seu pai e tira uma pequena quantia de dinheiro vendendo os bichos.

A taxidermia é uma necessidade de muitos criadores de animais, que tem a intenção de perpetuar a imagem de seu animal de estimação ou algum outro que seja considerado uma relíquia. Empalha-se o bicho para se usar como decoração. No entanto, aplicada no filme, o casal Elvira e Onofre não possuíam um animal.

Num dos flashbacks, Onofre compra um coelho vivo e o mata para que sua esposa possa empalhá-lo e vendê-lo pelo bairro. Algumas semanas depois, é parado pela polícia por estar fazendo tráfico de animais. Mesmo vivos, vender animais é um negócio ilegal. A lei entrou em vigor há alguns anos e foi apoiada por diversas ONGs, mas na capital de São Paulo, ao menos no começo, era bastante regrada.

O filme ainda trás a apologia à impunidade de um crime, pois conhecemos a vítima, conhecemos o assassino e conhecemos o cúmplice. Mas o liquidificador oculta o crime juntamente com Elvira, a culpada, fazendo com que algumas cenas deixem no ar o egoísmo da solução do conflito. A polícia não consegue provas o suficiente para culpar a viúva, apesar de o investigador estar correto sobre sua desconfiança. Faz uma alusão ao fato de que pessoas erradas são presas por crimes que não cometeram e, quem devia estar atrás das grades, ainda está em liberdade.

Também reflete a ideia do avanço da tecnologia e de como não podemos sobreviver sem as máquinas. Estão se tornando parte de nós, como outra consciência ou até mesmo partes do corpo humano. Cúmplices de nossas vidas, preferimos estar perto de uma máquina a outras pessoas. Essa solidão é mostrada no filme, onde a dona Elvira fez de um liquidificador seu único companheiro com quem dividiu segredos de morte.

--

--

Carolina Rodriguez
Matérias Finanças

28 anos, jornalista e técnica de museologia. Música e escritora de ficção nas horas vagas.