A Natureza do Cálculo Econômico em Mises
Este texto é um resumo sobre a natureza do cálculo econômico e a importância do artigo "Cálculo Econômico sob Socialismo" de Ludwig Von Mises (1920) para entendimento do problema. Nosso trabalho serviu de apoio para preparação de uma apresentação que realizada em 2013 na sede do Corecon de Goiás.
Introdução Geral
Por que o artigo de Ludwig Von Mises (1920) poderia estar presente entre as maiores contribuições para o desenvolvimento da teoria econômica do século 20? Para Joseph Salerno seria possível identificar três motivos principalmente. [1]
Em primeiro lugar neste artigo Von Mises contesta veemente as maiores fundações intelectuais para o socialismo. Depois dos questionamentos levantados por Von Mises o socialismo não poderia mais ser considerado como um sistema que promoveria forçosamente maior racionalidade econômica e maior eficiência na alocação dos recursos escassos, uma linha de argumentação que era, portanto, defendida incessantemente pelos socialistas da época.
Até então para a maioria de seus defensores o socialismo colocaria um fim às crises de superprodução e racionamento (subprodução), aos problemas de desemprego, aumentaria a riqueza, diminuiria a concentração de renda e o "poder da finança internacional", regularia problemas monetários, organizaria melhor os processos produtivos e engendraria uma sociedade mais justa e pacífica, enfim, traria ordem e daria um basta ao funcionamento anárquico intrinsecamente característico da produção capitalista e sociedade de mercado.
Em segundo lugar o trabalho de Mises relevou a importância do mecanismo de preços para a alocação racional dos recursos econômicos: os preços de mercado são referências fundamentais para que os agentes econômicos tenham uma orientação adequada em suas ações e tomadas de decisão econômicas.
O cálculo monetário, a estimação adequada dos custos, as perdas e os lucros são elementos referenciais indispensáveis para o bom funcionamento de uma economia de mercado e manutenção de um nível minimamente satisfatório de eficiência econômica.
Em seguida, além de ter apresentado as fundações do cálculo econômica a partir de uma teoria do valor subjetivo, Mises mostrou que o empreendedor tem um papel fundamental no sistema econômico e na harmonização da ordem de mercado.
Seu artigo ajudou a dar sequência nos desenvolvimentos da teoria econômica genuinamente austríaca, completando um quadro teórico que havia sido inaugurado durante a revolução marginalista por Carl Menger.
O empreendedor foi apresentado como pivô do funcionamento da economia de mercado, um agente central que, quando dispõe das informações trazidas pelos preços genuínos de mercado, pode utilizá-las para estimar adequadamente custos de produção e a viabilidade financeira dos processos produtivos concebíveis.
Em uma economia de mercado o empreendedor tem acesso às informações (preços) relativas aos bens de consumo, fatores de produção e recursos disponíveis. Ele pode assim comparar esses preços presentes com as antecipações que faz dos preços futuros, ou expectativas e antecipações dos preços futuros e então melhor decidir quando, onde, o quê e por que deve produzir.
A essência da ação empreendedora — e da competência empreendedora — é observar os preços e o que acontece no presente nos mercados e antecipar o que poderia acontecer com esses preços presentes e com a conjuntura econômica no futuro, quando seu produto terá então chegado ao mercado. Ele sempre produz para os mercados futuros. Ele deve estimar como se comportarão as forças de mercado (oferta e procura), como mudarão os gostos dos consumidores, como os valores que os consumidores atribuem aos bens mudarão, qual a evolução da disponibilidade dos recursos, quais inovações podem trazer resultado em termos de venda e, sobretudo, como estas mudanças serão transmitidas nos preços no futuro.
Eu descreveria o empreendedor como o pivô do ajuste intertemporal dos processos produtivos.
A Teoria de Mises
A questão levantada por Von Mises procura compreender como uma sociedade poderia racionalmente e eficientemente alocar os recursos disponíveis e os processos produtivos.
Sua resposta é que a alocação racional dos recursos é impossível sem o cálculo econômico decorrendo da utilização dos preços de mercado. Em teoria o socialismo não somente promoverá um sistema econômico irracional mas uma economia socialista é simplesmente inviável ou duravelmente insustentável.
Na prática uma agência ou administração se encarregará da gestão e alocação dos fatores de produção: esta agência sozinha escolhe, arbitra, decide, dá ordens e age. A marca distintiva do socialismo é a indivisibilidade da vontade dirigindo todas as atividades econômicas do sistema social.
A essência do socialismo é que somente um agente age por mais imaterial que ele seja: um grupo de indivíduos incarna os anseios de um agente representativo ou seja o povo, a revolução, a luta contra o imperialismo, o socialismo, o partido, etc. Geralmente este agente está incorporado no Estado.
O socialismo aboliu a propriedade privada sobre os bens de capital e recursos naturais e como em uma sociedade socialista estes bens econômicos são de exclusiva propriedade do Estado eles não podem ser trocados ou comercializados livremente, logo não podem engendrar o processo de precificação.
Sob socialismo o estado não pode calcular adequadamente os custos da produção para os bens que produz. Na ausência de cálculo econômico de lucros e perdas uma economia socialista não pode conhecer a melhor e mais eficiente maneira de utilizar os recursos econômicos disponíveis.
Existiriam então pré-condições institucionais para o cálculo econômico: a propriedade privada sobre todos os bens, a liberdade de troca de todos os bens e serviços e uma moeda cujo valor é independente da influência política (inflação).
A Natureza do Cálculo Econômico
O ponto de partida para a compreensão da natureza do cálculo econômico é assimilar a distinção entre bens de ordem inferior e bens de ordem superior e absorver que esta distinção tem implicações e consequências significativas no que diz respeito ao problema levantado pelo cálculo econômico.
Os bens de ordem inferior são os bens mais próximos dos bens de consumo e os bens de ordem superior são bens de produção e mais distantes da etapa de destruição ou consumo.
Os processos de produção em uma economia capitalista ou de mercado envolvem grande número de bens de ordem superior e inferior e montantes elevados de capital, eles envolvem processos produtivos mais longos e que se estendem sobre diversos setores de produção: eles são indiretos e podem durar muito mais tempo.
Quando a alocação de recursos mobiliza apenas alguns bens de ordem inferior ou ordem superior ela é mais simples, ela é realizável sem grandes dificuldades por pequenas unidades produtivas ou em escala individual. No entanto quando a alocação de recursos mobiliza inúmeros bens de ordem superior e inferior a tarefa é bem mais complexa devido ao número de etapas do processo de decisão e de produção ser muito maior e cada vez mais indireto.
São necessários sinais fiáveis, métodos mais sutis para obter uma avaliação mais justa dos meios e recursos envolvidos no processo produtivo. Se torna necessário um critério de julgamento mais preciso para alocação dos recursos económicos envolvendo os fatores de produção.
É necessário um instrumento permitindo o cálculo racional. De acordo com Von Mises (1920, p. 28):
“Somente sob condições muito simples é que a economia pode dispensar o cálculo econômico (…) nesses casos, todo o processo se desenvolve sob um uso relativamente limitado do capital. Os processos indiretos de produção, típicos do capitalismo, que se encaixam neste modelo são muito poucos: nesses casos, o que estaria sendo manufaturando seriam bens de consumo, ou, no máximo, bens de uma ordem mais alta que estão muito próximos dos bens de consumo. A divisão do trabalho está em seus estágios mais rudimentares.
Decorre que a própria estrutura e quantidade de bens manipulados sugere a necessidade de instrumentos permitindo o cálculo.
Um agente procurando se orientar ao longo do processo de produção e buscando decidir de maneira sensata as afetações alocativas referentes aos recursos disponíveis deve então dispor de uma unidade de mensura permitindo que realize avaliações minimamente satisfatórias dos meios acessíveis.
Qualquer espécie de valoração só pode ser realizada mediante alguma unidade: e aí entra o caráter fundamental da economia de mercado e da possibilidade de emergência dos preços. Os preços de mercado exprimem um valor objetivo garantindo em primeiro lugar que o cálculo econômico se fundamente em valorações que levam em consideração todos os agentes participando às trocas. Todos participam do processo de valoração enquanto consumidores — determinando uma escala de valoração para os bens de consumo — e enquanto produtores — arranjando os bens de produção de modo a gerar o maior retorno possível.
Em seguida este valor objetivo permite de maneira aproximativa que seja possível comparar as valorações individuais subjetivas, o mercado desencadeia um processo de valoração no qual o valor objetivo é transmitido pelo dinheiro.
Disto tudo segue que estes preços representando os valores de troca tornam realizável o cálculo a partir de uma unidade de conta definida.
O dinheiro e o cálculo monetário auxiliam o empreendedor na racionalização dos processos produtivos e permitem uma alocação mais eficiente dos meios de produção. Como explicou Von Mises:
“É exatamente nas transações de mercado que os preços de mercado — a serem tomados como base para todos os cálculos — são formados para todos os tipos de bens e mão-de-obra empregados. Onde não há um livre mercado, não há mecanismo de preços; e sem um mecanismo de preços, é impossível haver cálculo econômico (…) Relações de troca entre bens de produção somente podem ser estabelecidas se estiverem baseadas na propriedade privada dos meios de produção.” (p. 35–36)
Encontramos então o quarteto edificando a regra para o cálculo econômico racional: propriedade, mercado, preços, cálculo monetário.
A interação dos processos de valoração dos consumidores e dos produtores rege ao melhor a dinâmica de ajustamento produtivo, harmonizando o sistema econômico e garantindo a racionalidade do processo de alocação e consumo dos recursos.
O Processo Social de Apreciação e Empreendedorismo
Em um universo onde encontramos basicamente consumidores, empreendedores e proprietários dos meios de produção, o empreendedor realiza essencialmente duas coisas: em primeiro lugar antecipa e imagina qual será a estrutura de preços dos bens no futuro, muitas vezes bens que sequer existem ainda.
Fundamentado nesta antecipação dos preços futuros dos bens o empreendedor vai começar a ofertar e negociar para obter os recursos e fatores de produção (trabalho, terra, capital) necessários à execução do processo produtivo.
Como todos os empreendedores fazem isto ao mesmo tempo, continuamente e em diversos setores de produção existe uma concorrência entre os empreendedores para aquisição dos bens e fatores de produção. Eles realizam estas antecipações fundamentados justamente nos preços presentes de mercado e a concorrência que exercem sobre o mercado dos meios de produção faz com que naturalmente estes preços se modifiquem ao passar do tempo.
Notem que o empreendedor faz antecipações que em grande parte levam em conta análises subjetivas e que, portanto, se fundamentam muitas vezes em critérios objetivos como a oscilação dos preços presentes, variações da rentabilidade dos ativos e desenvolvimentos de setores de mercados, ou ainda tendências concretas relativas aos anseios dos consumidores.
Notemos também que se trata de um processo contínuo que funciona de forma anárquica em constante mudança e inovação. Em um período mais distante os preços mudarão e servirão de referencia para que este processo aconteça incessantemente. Desta forma as valorações presentes refletirão ao longo do tempo as avaliações e valorações subjetivas futuras dos consumidores que foram antecipadas pelos empreendedores.
O empreendedor é então o agente garantindo esta eficiência alocativa intertemporal.
O processo de mercado garante a transmissão intertemporal de informações qualitativas representando valorações subjetivas de milhões de indivíduos.
A economia de mercado permite que as valorações subjetivas de milhões de indivíduos possam ser alinhadas e comparadas através de um index, um valor objetivo expresso nos preços de mercado.
O mundo subjetivo se alinha o mais adequadamente possível do mundo objetivo e vice-versa, em um processo dinâmico que chamaria de ajustamento produtivo intertemporal em ambiente competitivo.
A livre negociação e o livre mercado dos bens de capital são portanto essenciais à realização do cálculo monetário dos bens de produção. Eles fornecem um parâmetro e critério racional de cálculo econômico em uma economia de mercado.
Quando a mesma entidade é proprietária dos bens de produção não existe possibilidade que ela negocie com outra entidade, eis que surge então o cerne do problema distributivo em uma economia socialista, como lembra Von Mises (p.17) “quem irá consumir e o que deverá ser consumido por cada um.”
O Cálculo Econômico Sob Socialismo
No capitalismo a distribuição dos bens de consumo e a alocação dos recursos segue uma atribuição econômica, um critério econômico fundamental.
Este critério é a rentabilidade do processo produtivo e rentabilidade dos fatores de produção. A rentabilidade permite determinar racionalmente do ponto de vista econômico o que será produzido e em qual escala e em quais condições, mas ainda, qual o critério de distribuição dos bens produzidos.
A idéia é que sob economia socialista a distribuição dos bens de consumo é de certa forma independente da produção e das condições econômicas.
Não existe um elo econômico racional entre o critério de atribuição e distribuição dos bens de consumo e as decisões relativas ao processo produtivo.
Sob propriedade comunal dos bens de produção a distribuição dos bens de consumo e remuneração dos fatores não depende do rendimento. Sabendo que os mecanismos de mercado não se exercem nos meios de produção, uma contradição fundamental aparece no socialismo: nele não se remunerará adequadamente os factores de produção.
Caso sejam remunerados segundo um critério de igualdade, na verdade o que se pode garantir é que estes fatores não serão remunerados segundo a respectiva contribuição no processo produtivo.
Além disso uma vez que os bens de produção não farão objeto de troca será impossível determinar seu valor monetário, ou valor objetivo. O processo de valoração dos bens de produção será forçosamente inadequado.
No socialismo portanto o cálculo em termos monetários será impossível.
Outra crítica de Von Mises diz respeito aos incentivos e não transferibilidade da mentalidade comercial.
Muitos destes aspectos serão também abordados em sua obra Bureaucracy (1944), onde Mises explica que em nenhuma hipótese uma administração pública pode funcionar sob o mesmo nível de eficiência que uma empresa privada.
Um dos motivos é que a eliminação do retorno sobre a propriedade modifica o quadro de incentivos econômicos e a motivação intrínseca ao empreendedorismo desaparece. Ele lembra que:
“Os administradores de grandes empresas estão ligados aos interesses das empresas que eles administram de uma maneira totalmente diferente daquela que impera em empresas estatais. Eles ou já são proprietários de uma considerável fatia das ações da empresa ou esperam se tornar no devido tempo (…) tal administrador é necessariamente um gerente profissional, um empreendedor e homem de negócios que está ele próprio, na condição de acionista, interessado no bem da empresa (…) A ‘mentalidade comercial’ não é algo externo, algo que pode ser arbitrariamente transferido (…) A atitude e a vivacidade comercial de um empreendedor surge de sua posição no processo econômico; porém, ela é perdida quando ele sai desse ramo.” (p. 43- 44)
Ausência de Livre Iniciativa e Responsabilidade
Não é possível que homens de negócios, comerciantes ou industriais se comportem como tal se fazem parte de um corpo burocrático.
Um dos motivos é justamente a impossibilidade de liberdade de ação.
Se por um lado a liberdade de ação é garantia de autonomia de gestão, por outro lado é ela quem garante a legítima responsabilização das ações empreendidas.
A liberdade de ação e a autonomia de gestão incentivam que as consequências das decisões alocativas incidam sobre os devidos responsáveis.
Encontramos então o trio referencial dentro da perspectiva liberal de sociedade: propriedade, liberdade e responsabilidade.
A apropriação dos ganhos obtidos com as novas técnicas, descobertas e oportunidades de negócios é um incomparável motor do aperfeiçoamento produtivo: seja do ponto de vista tecnológico e organizacional, seja do ponto de vista dos próprios bens de produção.
A responsabilidade e a responsabilização são por consequência elementos indissociáveis do funcionamento de uma economia de mercado.
Estes mecanismos não podem ser transpostos em uma economia socialista. A propriedade garante a liberdade, a autonomia e a responsabilidade e responsabilização.
Se no capitalismo verdadeiro os proprietários são penalizados, no socialismo sobretudo a população.
É impossível que os burocratas não utilizem-se do poder e da posição que ocupam dentro da máquina pública para adquirir bens ou oferecer vantagens privadas.
A eficiência alocativa em universo socialista é simplesmente impossível.
Aperfeiçoamento Técnico e Subestimação da Importância da Finança e do Sistema Bancário
Von Mises lembra que a estatização dos bancos e organização em torno de um Banco Central é o objetivo último para a implementação do socialismo. Segundo o autor isto permitiria racionalizar a alocação dos recursos de acordo com os interesses do Plano.
Mas isto se trata sobretudo de uma alteração da natureza dos bancos, tal evento implicaria simplesmente que os bancos deixarão de ser bancos. Antes de qualquer aspecto técnico ou puramente econômico, parece evidente o surgimento de um problema de moral hazard: quando a mesma entidade é proprietária dos meios de financiamento bancário e conjunto de meios de produção é evidente que nenhuma restrição ou acordo relativo ao crédito se isente de questões meramente políticas. Segundo Mises (p. 48):
“assim que os bancos se fundirem em um único banco, toda a sua essência será inteiramente transformada; eles passarão a poder emitir crédito sem qualquer restrição (…) Mas ele não mais é um banco, ele não cumpre nenhuma daquelas funções que um banco realiza em um sistema econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção e no uso de um meio geral de troca — o dinheiro. Ele não mais distribui qualquer tipo de crédito, pois uma sociedade socialista faz com que o crédito inevitavelmente se torne impossível.”
Os socialistas subestimam o papel da concorrência no setor bancário e financeiro. A noção de liberdade de crédito desaparece na sociedade socialista pois a realização de investimentos em bens de capital é delegada unicamente às instâncias burocráticas. O socialismo subestima o papel do sistema financeiro e sistema bancário para a eficiência e funcionamento de uma economia de mercado: dos bens e serviços financeiros, do mercado de ações, do mercado obrigações, do mercado de opções e derivativos, das linhas de crédito, das bancarrotas, da rentabilidade dos investimentos em ativos, ou ainda, o papel do risco enquanto sinal para o racionalização alocativa dos recursos.
Para Von Mises que pôde constatar os resultados da experiência socialista na Rússia a economia socialista além de ser irracional e duravelmente insustentável ou inviável, tem por princípio primordial a destruição das instituições da sociedade de mercado, eu diria, a dissolução de uma ordem que portanto emerge de maneira espontânea e cujo desenvolvimento é o fruto de um processo evolutivo de milhares de anos.
Objeções na Academia e a História do Debate do Cálculo Econômico Socialista
Muitos trabalhos consagraram suas atenções ao desafio proposto por Von Mises em seu artigo original. O próprio Von Mises dedicou ulteriormente alguns de seus escritos ao tratamento de eventuais respostas que teriam sido dado ao desafio do cálculo.
O debate em torno do cálculo econômico é um marco importante permitindo emergir mais claramente algumas das principais diferenças de caráter metodológico entre a escola austríaca e as demais correntes de pensamento ou mainstream neoclássico.
Quem pretenda conhecer melhor sobre o assunto em língua portuguesa deve se reportar ao excelente trabalho realizado pelo professor Fabio Barbieri (2004) onde são abordadas com maior precisão e detalhes todas as questões levantadas dentro do debate, as ferramentas analíticas e dilemas metodológicos e os detalhes das críticas e objeções levantadas pelos participantes do debate.
No entanto aproveitaremos para expor alguns dos embates mais elementares e relativos às objeções e respostas propostas ao desafio de Von Mises, algumas foram respondidas pelo próprio autor no seu artigo seminal.
É possível reagrupar as 6 objeções ou respostas ao desafio de Von Mises:
- a não necessidade do dinheiro (cálculo in natura);
- o cálculo através do valor utilidade;
- cálculo em número de horas de trabalho;
- soluções matemáticas;
- quase mercados (socialismo de mercado);
- método de tentativas e erros;
As três primeiras respostas podem ser consideradas mais inocentes e foram rejeitadas por Mises em seu artigo original. As três últimas respostas podem ser classificadas como respostas mais sofisticadas. Elas utilizam frequentemente o quadro e arcabouço teórico neoclássico.
A primeira objeção antecede as ideias originais ao problema do cálculo, ela resulta do raciocínio: “bom, se a união soviética existiu durante tantos anos, logo o socialismo não é impossível.”
Fabio Barbieri no alertou em seu trabalho sobre o limite de utilizarmos exclusivamente de fenômenos empíricos para entender problemas teóricos, na medida que os fenômenos sociais dificilmente reproduzem com exatidão o que é apresentado por modelos teóricos.
Lembremos também que Von Mises mostrou que o socialismo em apenas um país ou região é como uma empresa estatal como os Correios em um país institucionalmente capitalista. Obviamente a estatal é ineficiente, custosa etc., mas pelo menos ela pode se fundamentar nos preços de mercado de outros setores de mercado ou nos preços de seus fornecedores, ou nos preços que existem em outros países, no mercado negro, ou nas trocas ao nível internacional e por mais que esses preços não expressem a mesma escala de escassez ou mesmos dilemas de produção presentes no país em questão. Isso na verdade apenas dá sobrevida a um arranjo ineficiente.
Isto não coloca em questão efetivamente o problema avançado pelo cálculo econômico porque o fato da União Soviética ter existido durante um número X de anos não quer dizer que a alocação dos recursos no sistema econômico soviético tenha sido fundamentada em um método de cálculo econômico racional. Seria o mesmo e igualmente problemático afirmar que o colapso soviético serviria de prova cabal para refutar o argumento miseano.
Quanto às verdadeiras objeções em primeiro lugar o cálculo in natura não é uma base fiável para o cálculo: não existe um denominador comum permitindo ajustar os processos de valoração. Não é possível expressar o valor dos bens em termos de quantidades de bens utilizados.
Em segundo lugar a utilidade é uma magnitude intensiva e não extensiva, não é possível mensurar uma quantidade de utilidade: a utilidade marginal não postula qualquer unidade de valor permitindo que seja realizado o cálculo.
Em terceiro lugar o trabalho não é uma unidade homogênea permitindo valoração dos bens, não se trata também de um denominador comum apenas porque se chama “horas de trabalho”. Como valorar os bens de capital ou a terra em termos de “horas de trabalho”? Mesmo que fosse possível determinar uma valoração em “horas de trabalho” isto não resolveria a questão procurando saber como interage o trabalho com os bens de capital (produtividade): uma hora de trabalho de uma pessoa capinando um lote não é a mesma coisa que uma pessoa fazendo isso em cima de um trator. Mesmo que você determine que as “horas de trabalho” tem a mesma valoração continua sendo necessário um mecanismo permitindo a valoração dos bens de capital. Continua havendo o problema do cálculo econômico.
Para as soluções mais sofisticadas, algumas respostas austríacas encontram origem em questões metodológicas e nos problemas relacionados à dispersão da informação na sociedade, aos incentivos e a impossibilidade de lidar precisamente com as questões relativas à atividade empresarial e empreendedorismo.
Muitas das informações que necessitariam os planejadores da administração sequer são conhecíveis e as soluções apresentadas não incorporam tão bem a idéia de que o cálculo decorre de um fenômeno temporal e dinâmico tal qual descrito no processo social de apreciação ainda mais acima.
Segundo o professor Barbieri os socialistas de mercado ao interpretarem o desafio de Mises em termos walrasianos ignoram o problema proposto e transferem a simplicidade do modelo para a teoria, o que permitiu a sua solução no contexto da teoria de equilíbrio.
Não muda que a mera passagem das soluções inocentes às soluções mais sofisticadas denuncia a seriedade e a importância com a qual deve ser tratado o desafio proposto por Von Mises, isto mostra que os teórico interessados passaram de fato a levar em consideração a importância dos preços de mercado para um processo alocativo racional dos recursos disponíveis.
Notas
[1] Além do estudo de boa parte das principais referencias sobre o assunto, a linha geral de introdução ao problema do cálculo que utilizamos aqui retomou algumas das principais exposições e plano de apresentação do professor Salerno, vídeo disponível em linha na plataforma do Instituto Mises.Org.
[2] Imagem ilustrando o processo social de valoração, Joseph Salerno:
Referências
Barbieri, F. História do Debate do Cálculo Econômico Socialista, Tese de Doutorado Universidade de São Paulo (USP), 2004.
Mises, L. V. O Cálculo Econômico Sob Socialismo, Instituto Mises Brasil, tradução de Leandro Augusto Gomes Roque, 2012.
____. Human Action, Yale University Press, 1949.