A Produção Privada de Bens-Públicos

Mateus Bernardino
Economia e Filosofia
45 min readJan 18, 2022

Como são produzidos exclusivamente pela iniciativa privada os bens-econômicos considerados públicos pela teoria econômica ortodoxa? Quais os principais mecanismos e incentivos regendo o funcionamento de um esquema voluntário de organização da produção de ruas, justiça e segurança? Este artigo pretende compartilhar alguns dos principais elementos de argumentação buscando responder a essas questões. Ele procura ajudar a entender os mecanismos sobre os quais fundamentam-se os posicionamentos políticos de alguns teóricos libertários, notadamente Anarcocapitalistas. Trata-se fundamentalmente da tradução de um recolho de trabalhos de Pierre Lemieux acrescentada de considerações pessoais e comentários tirados das contribuições de Murray Rothbard e David Friedman, os principais autores utilizados como referência para o embasamento teórico.

abril 16, 2013 por mateusbernardino

A Privatização do Domínio Público

Os bens-públicos constituem um conjunto de obstáculos teóricos e práticos ao desenvolvimento e organização auto-sustentável da produção. No entanto, várias coisas hoje em dia consideradas como bens-públicos devem esta particularidade ao fato de que o Estado impediu ou não favoreceu a criação de direitos privados de propriedade. Muitas vezes, tudo que compõe o domínio público (estradas, ruas, praças públicas, ou mesmo a pureza do ar) é público unicamente pois foi estatizado, e não raramente sua privatização ajustaria boa parte dos problemas que a gestão do domínio público engendra e que, paradoxalmente, são apresentados como uma justificação definitiva para a intervenção estatal. Na ausência do Estado, as estradas nacionais e as autoestradas — que não correspondem perfeitamente à definição técnica de bem-público (não-rivalidade e não-exclusividade) seriam privadas e financiadas através de pedágios. Vários métodos de arrecadação podem ser concebidos, da guarita usual ao abono periódico passando pelos emissores telemétricos fornecidos aos abonados (Sem-Parar), e que registram automaticamente o trânsito para uma faturação periódica. Quando um componente de bem-público representa um obstáculo importante (não rivalidade ou não exclusividade), associações ou mecenas ou outros mecanismos de produção como o empreendedorismo poderiam tomar a responsabilidade para um eventual fornecimento.

Às ruas e às praças públicas prestam-se diversas fórmulas de produção privada e através dos mecanismos de mercado. Uma construtora de um empreendimento imobiliário poderia construir ruas privadas e vendê-las em copropriedade com as propriedades que as entornam. O comprador de uma casa pagaria um aluguel periódico para o uso da rua, o que seria previsto no contrato de compra exatamente como as outras partes de uma copropriedade financiam atualmente os serviços comuns disponíveis — e o caso mais emblemático é o da gestão das ruas em condomínios. Os coproprietários das ruas administrariam-nas segundo a fórmula e as condições previstas nestes contratos. Algumas ruas poderiam também pertencer a um proprietário não-residente que alugaria o usufruto aos moradores (ou a qualquer locatário interessado e aceitável), da mesma forma que acontece com uma vaga de garagem, por exemplo. Ao construir ou comprar uma casa, o futuro proprietário deveria assegurar-se contratualmente da disponibilidade da rua (ou das ruas) dando então acesso a sua propriedade e à copropriedade. A propriedade de um prédio incluiria normalmente o uso perpétuo e garantido por contrato das ruas do entorno. O aluguel do acesso à rua poderia ser constante, ou variar segundo uma fórmula contratualmente determinada, por exemplo, em função do valor de mercado das propriedades vizinhas, da evolução do poder de compra da moeda, das despesas em manutenção e investimento e etc. Do ponto de vista estritamente econômico, quanto melhor fosse a rua conservada e administrada melhor ela responderia aos desejos da clientela, maior seria o valor dos aluguéis que retirariam os proprietários, maior seria a renda associada às propriedades e à copropriedade. Se os gestores não administrassem a rua de tal forma que não se maximizasse o valor das propriedades que ela desserve, seria então do interesse dos próprios moradores de comprá-la por um preço mais elevado que sua renda actuarial afim de administrá-la eles mesmos ou revendê-la pelo lucro. Seria também praticável que um morador possuísse, em propriedade indivisa, a parte da rua situada nas bordas de sua propriedade. Aliás, este é um caso de figura que ilustraria bem as vantagens da propriedade privada das ruas. Sob reserva das condições e das sujeições contratuais originais, cada proprietário faria atenção a que seu pedaço de rua permitisse a maximização do valor de sua propriedade.

Suponhamos, por exemplo, que tu possuas um comércio, e que prostitutas peçam-te que lhes venda o direito de “esperar clientes” na frente da tua casa ou empreendimento. (Se elas ali encontrassem-se contra tua vontade, tu as xotaria dali como qualquer outro intruso.) Tu aceitarias ou recusarias a oferta desde que o montante que elas ofereçam-te seja ou não superior às perdas comerciais causadas pela deserção de alguns de teus clientes e amigos, e da consequente redução de valor de tua propriedade (teus sentimentos morais e custos psicológicos sendo também levados em consideração no processo de valoração social). Se as profissionais do prazer — em função da natureza de teus clientes e da classe dessas garotas — atraíssem, ao contrário, novos clientes para tua loja ou amigos, e que essa frequentação fosse de tua apreciação, serias tu quem estaria disposto a pagar-lhes um dinheirinho para que elas “rodem a bolsa” na calçada da tua casa. E se teu vizinho não estivesse de acordo com tua decisão, seria ele quem teria de escolher uma propriedade desservida de um direito de contrôle sobre o uso da calçada, ou agravada de regulamentos interditando atividades indesejadas; ou ele poderia simplesmente oferecer um preço mais elevado do que propuseram as garotas para convencer-te de ceder teu direito de acolher este tipo de convidados sobre tua calçada. Se a rua pertence a um proprietário estrangeiro, ele procurará, da mesma maneira, responder às demandas de seus clientes e moradores. Desta forma, a propriedade privada das ruas resolveria forçosamente todos os conflitos que surgissem entre os utilizadores das vias públicas através da livre contractualização. Cada rua seria utilizada como desejam os seus proprietários, sob reserva de contratos ou sujeições que os sobrecarregam e que respondem às demandas dos consumidores. Existiriam várias ruas com um grande número de proprietários diferentes, bairros, condomínios e diversos ambientes novos seriam criados. Esta seria apenas uma das faces da diversidade e da eficácia do urbanismo privado, que poderia vantajosamente substituir a regulamentação pública. A concorrência dos proprietários das ruas ofereceria uma grande possibilidade de escolhas aos usuários, proprietários de imóveis ou pedestres. O proprietário de uma rua poderia evidentemente fixar segundo sua vontade as condições para o uso de sua propriedade, descriminar como ele bem deseje sob reserva dos contratos pelos quais ele está previamente associado.

Para a teoria econômica ortodoxa a segurança pública — polícia, tribunais e prisões, e defesa nacional — representa o bem-público por excelência, e fornece a justificação última ao Estado. Mesmo que seja considerado um estado de natureza lockeano (o que fazem geralmente os Anarcocapitalistas), disputas honestas são inevitáveis; pior ainda, por mais que a maioria das pessoas respeitam o direito natural, algumas violarão e transpassarão além. Para evitar que a anarquia lockeana desestabilizada não degenere em um caos hobbesiano, é necessário que existam mecanismos de proteção contra o ataque aos direitos dos indivíduos. Assim como Gustave Molinari, os Anarcocapitalistas contemporâneos defendem que a segurança seria produzida mais eficientemente pelo mercado ao invés do Estado. O coração da teoria Anarcocapitalista encontra-se nesta demonstração. No estado natural cada indivíduo tem o direito de fazer respeitar seus direitos, de executar ele mesmo a lei da natureza tal qual concebida pelas tradições jusnaturalistas. A sociedade civil difere do estado natural na medida que ela substitui a execução privada do direito por árbitros imparciais e leis universais que impõem-se a todos: “É necessário estar de acordo com isto, afirmou John Locke (1690), a menos que prefiramos dizer que o estado natural e a sociedade civil são uma única e mesma coisa; algo que eu nunca vi, que eu nunca escutei dizer, e que ninguém jamais defendeu, mesmo que fosse um grande defensor da anarquia”. Os teóricos Anarcocapitalistas como Murray Rothbard (1962), David Friedman (1973) e Morris e Linda Tannehill (1970) transpõem esta barreira e defendem que o estado natural forma uma sociedade eficiente.

Árbitros Privados

“A justiça é um bem econômico, exatamente como a educação e a saúde”, escreviam os Tannehill. Para demonstrar isso, os Anarcocapitalistas contemporâneos propõem uma teoria da arbitragem privada que aperfeiçoe as geniais — embora rudimentares — instituições que Gustave de Molinari (1849) havia concebido há pouco mais de um século. A teoria de Murray Rothbard (1982) é a mais completa, a melhor argumentada e a mais influente: são sobretudo às teses rothbardianas que tomamos emprestada a exposição que segue logo mais. A privatização dos tribunais civis é, de fato, concebível e realista. Existem atualmente milhares de árbitros privados aos quais as partes de um contrato podem livremente recorrer para que seja resolvido um litígio, e tal recurso é frequentemente previamente estabelecido no próprio contrato que as partes estabeleceram. Comparadas à ineficiência dos tribunais do Estado, observou Rothbard, as empresas de arbitragem privadas seriam consideradas muito mais prósperas. A American Arbitration Association (Associação americana de arbitragem) reagrupa milhares de árbitros profissionais privados que resolvem a cada ano dezenas de milhares de litígios. A maior parte dos litígios entre os corretores de ações e títulos imobiliários americanos e seus clientes são resolvidos por um tribunal de arbitragem privado e através da Associação Nacional dos Corretores de Títulos [1].

O direito internacional privado funciona sem poder coercitivo supremo, sem um tribunal obrigatório em última instância, sem monopólio último de uso da força. Os Estados-Nação estão, uns relativamente aos outros, e sempre estiveram, em uma situação comparável a de anarquia, como em um estado natural lockeano. Os indivíduos de países diferentes estão uns relativamente aos outros em um estado de anarquia. Ora, mesmo assim, e malgrado as guerras que opuseram seus príncipes e governantes, os cidadãos individuais destes países mantém todavia relações econômicas razoavelmente e racionalmente ordenadas, sem maiores obstáculos legais. Um indivíduo lesado por um estrangeiro poderá, quase sempre, obter justiça diante de um tribunal de outro país. E ainda em diversas dessas ocasiões existem mecanismos privados de arbitragem. Por exemplo, mais de 5 000 casos foram submetidos à Corte de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional desde sua fundação, em 1923. Apenas em 1984, 296 novos casos foram registrados e 137 sentenças foram estabelecidas. A maioria dos litígios compreendia montantes de 200 000 a 10 000 000 de Dólares US; 9% colocaram em causa montantes inferiores a 50 000 dólares US; 14% representariam somas de mais de 10 000 000 de dólares [2]. Visto que a ausência de um monopólio estatal supranacional não impede a harmonia entre indivíduos separados por uma fronteira nacional arbitrária e imaginária, o Estado não é mais necessário para assegurar relações livres e ordenadas entre indivíduos que, tão arbitrariamente, as relações entre os que “pertencem” a um mesmo país. Rothbard escreveu (1970, p. 4): “Se os cidadãos de Montana do Norte e estes de Saskatchewan do outro lado da fronteira podem viver e comerciar em harmonia sem governo comum, assim poderiam os cidadãos de Montana do Norte e Montana do Sul entre eles.” [3]

Não somente a arbitragem privada existe atualmente mas a história demonstra sua eficácia econômica. Se a lei americana torna obrigatória a decisão de um árbitro privado, essa execução é recente: antes do começo do século XX, quando ainda não obrigavam legalmente e oficialmente as partes, a arbitragem privada já tinha feito provas de eficiência e mostrado resultados satisfatórios. Remontando à Idade Média constatamos que o essencial do direito comercial inglês foi elaborado e ajustado por tribunais privados de comerciantes. Da mesma forma, segundo Rothbard, o “direito dos mares” ou normas regendo a conduta em aguas internacionais e mesmo boa parte da Common Law foram “antes de tudo a obra de juízes privados e concorrenciais aos quais as partes de um diferendo recorriam livremente, pois elas reconheciam seu saber-fazer nos domínios jurídicos em questão”. Podemos então facilmente imaginar o que aconteceria se os tribunais civis do Estado não existissem. As partes de um litígio tentariam primeiramente negociar entre elas uma possível solução, como fazem frequentemente os homens de negócio nos dias de hoje. Em caso de desacordo, as partes tentariam se entender para que o diferendo fosse encaminhado diante de um árbitro e um tribunal privado mutualmente aceito. Frequentemente, o contrato original sobre o qual houve o dito diferendo já teria previsto com antecedência as violações incorrendo em pena, os recursos legítimos, até mesmo o grupo de árbitros, o procedimento de apelação e o tribunal responsável pelo processo em Apelo. Recorrer voluntariamente à arbitragem é do interesse das duas partes pois a “opção de uso da força” é arriscada, custosa e ineficaz. Como escreveram Morris e Linda Tannehill, o “princípio do interesse pessoal racional sobre o qual todo o sistema de mercado é fundamentado” levaria naturalmente as partes a submeterem seus diferendos à arbitragem. Respondendo à demanda do mercado, os tribunais privados concorrenciais desenvolveriam-se tentando conquistar e garantir uma clientela através da salvaguarda de uma reputação de eficácia, imparcialidade e integridade.

Morris e Linda Tannehill (1984) imaginaram um mecanismo engenhoso suscetível de institucionalizar o recurso à arbitragem. Com o fim das garantias estatais de execução dos contratos as companhias de seguro, à espera de novas oportunidades de lucro, ofereceriam seguros contra a não-execução dos contratos, o que estenderia ainda mais um mercado que já existe neste domínio. A seguradora tendo indemnizado seu assegurado que foi vítima da quebra de um contrato, tem interesse em fazer-se reembolsar pela parte responsável. O interesse daquela parte, ou de sua seguradora, por outro lado, é o de demonstrar que não existiu tal quebra de contrato, o que incorreria numa redução de seus custos da mesma forma que o pleito por uma pena mais branda do que aquela prevista no contrato privado por uma circunstância atenuante, por exemplo. Decorre disso o interesse contínuo das companhias de seguro de recorrerem aos tribunais de arbitragem e exigirem a inclusão de um procedimento de arbitragem ao qual elas possam se assegurar. Determinadas empresas de seguro estabeleceriam mesmo seu próprio tribunal, para resolver litígios entre assegurados da mesma companhia, por exemplo.

E como seriam executadas (enforce) sentenças de árbitros privados sem a força pública ? No direito comercial da Idade Média (como naquele dos antigos irlandeses), surgiu a constatação de que o medo das sanções sociais, não coercitivas mas fortemente restritivas e constrangedoras como o ostracismo e o boicote comercial seriam suficientes para assegurar o respeito dos julgamentos. Um comerciante que não se submetesse às decisões do árbitro agregado seria colocado a margem da comunidade de comerciantes. Um caloteiro isolado da sociedade mercantil. Essas sanções parecem ter sido bastante eficientes para permitir o desenvolvimento do direito no domínio complexo que é o do comércio. Em nossos dias, uma boa parte das relações humanas e comerciais são fundadas sobre a confiança e sobre a certeza que aquele que trair a confiança de outrem não poderá mais gozar dos benefícios, prestígios e vantagens da cooperação social que decorrem daquela relação.

A teoria de Robert Axelrod (1984) mostrou como a colaboração dos outros indivíduos é importante e necessária para a eficiência da própria ação individual. Em suma, as possibilidades de ostracismo social e de boicote comercial são hoje destacadas pelas cotas de crédito pessoal, pela informática, pela numerização e automatização da informação comercial. Cada vez mais as sociedades modernas encontram meios de controlar os cadastros de cliente, seu perfil socioeconômico e seu histórico de capacidade de honrar com seus compromissos. Na américa do norte, as associações puramente privadas que são os “Better Business Bureaus” ou escritórios de ética comercial já conduzem pesquisas e fornecem a seus membros informações valiosas sobre a solvabilidade e a fiabilidade das empresas. Essas agências combatem também as práticas comerciais suspeitas como a falsa publicidade, e sua influência moral é suficiente para incentivar as empresas infratoras à indemnizar seus clientes que foram lesados [4]. Mais uma vez, apenas os incentivos de mercado os custos atrelados à deterioração da imagem das firmas e pessoas atuam de forma espontânea para autoregular a coordenação das relações interpessoais. Desta forma, os tribunais civis dos Estados atuais seriam vantajosamente substituídos por tribunais privados concorrenciais e não-coercitivos. A intervenção destes tribunais seria demandada pelas partes envolvidas em litígios e seria frequentemente prevista previamente nos próprios contratos privados. Os indivíduos e comunidades teriam interesse em se conformar aos julgamentos, sob pena de perder a confiança ao longo de suas relações contratuais.

A Polícia como Bem Privado

É necessário também proteger-se contra o crime, seja passivamente ou através de cercas, fechaduras, guarda-costas, e dissuasões diversas, seja mais ativamente combatendo os agressores (legítima defesa) e exercendo represálias contra culpados (meios judiciários): perseguição e identificação de suspeitos, julgamentos dos acusados e imposição da restituição e das penas aos culpados sentenciados. Uma proteção e segurança eficaz exigem uma polícia e jurisdições penais. Na doutrina Anarcocapitalista, estes serviços seriam também ofertados por empresas concorrenciais nos mercados. Assim como a justiça, a segurança dos bens e das pessoas é um bem econômico haja visto que ela fornece utilidade e que sua produção consome recursos escassos, o que levanta os mesmos problemas e dilemas que qualquer outra alocação de recursos econômicos. Trata-se de fornecer a cada sujeito uma segurança suficiente e que corresponda ao que cada indivíduo deseja realmente quando ele avalia e coloca na balança os custos e as vantagens dos diversos níveis e formas de segurança. Ora, o mercado é um mecanismo mais eficaz que o Estado em descobrir e satisfazer as preferências dos indivíduos, seus anseios de consumo, suas expectativas em termos de bens e serviços. A separação formal que existe entre o pagamento confiscado e os serviços rendidos dá aos serviços estatais a aparência de gratuidade: aquele sujeito que obtém patrulhas policiais mais regulares na sua rua não vê seus impostos aumentarem na mesma intensidade que os desmunidos de prestações de segurança das periferias. Temos então interesse em exagerar as necessidades de serviços públicos e, por isso, os custos associados à provisão daqueles serviços tendem a ser repartidos entre todos os contribuintes. Decorre dessa situação uma frequente e crônica penúria de serviços estatais de segurança em diversas localidades, ou de forma geral temos uma oferta que não satisfaz à demanda e a consequência usual disso é que o Estado deve impor arbitrariamente o racionamento, e alocar como prefira a oferta segundo as urgências que considerar prioritárias. Certas pessoas estarão bem protegidas, outras mal-defendidas, e poucos indivíduos recebem a segurança que cada um estaria disposto a pagar livremente. Essa penúria e ineficiência explicaria o sucesso da segurança privada e das prestações individualizadas nos mercados privados de segurança particular nos dias de hoje.

No mais, como ocorre em qualquer monopólio, aquele que o Estado exerce sobre a segurança não é eficiente em sua produção. Por esta razão os serviços de segurança privada estendem-se em todos os lugares do mundo onde o Estado permite. Rothbard calcula que mais da metade das despesas de segurança nos Estados Unidos relevam do setor privado, o que cobre não somente os equipamentos de proteção (armas individuais, sistemas de alarme, dispositivos de rastreamento e etc.) mas também serviços de guarda-costas, vigilância, polícia privada, detetives particulares, etc. Nos Estados Unidos, os proprietários de locais “públicos” (que são na verdade lugares privados abertos ao público) como bares, boates, cinemas, centros de compra ou grandes conjuntos residenciais recorrem frequentemente às companhias privadas de polícia (como é o caso dos famosos Pinkerton, por exemplo) e agentes policiais que também estão geralmente armados.

Uma ilustração da possibilidade e eficácia da proteção policial privada vem de São Francisco, onde os agentes privados de polícia, as Patrol Special, dão assistência à polícia oficial há mais de um século. Assim como um agente oficial, um Patrol Special veste uniforme, carrega um revólver, patrulha um setor qualquer da cidade e inicia procedimentos de detenção de suspeitos. Mas os policiais da Patrol Special vendem seus serviços aos clientes em função do setor, na medida em que lhes pagam por uma proteção especial além daquela que os serviços públicos de segurança oferecem mediante recursos dos impostos. Por mais que aqueles policiais privados sejam também solicitados a colaborar com os policiais públicos, suas obrigações primordiais estão direcionadas à satisfação de seus clientes. Por algo entre 10 e 20 Dólares por mês obtém-se uma supervisão particular de sua casa, o que, durante as ausência prolongada dos ocupantes, inclui a retirada das correspondências dos correios e a verificação da iluminação no interior das casas. Por uma mensalidade de 30 Dólares o agente faz regularmente uma ronda nos jardins, e os serviços podem se estender até onde as demandas individuais e os desejos dos consumidores possam ir. Empresas pagam até 1 000 dólares por mês para uma proteção completa e contínua de suas propriedades. No entanto o mercado privado de proteção policial de São Francisco não é verdadeiramente livre pois, desde de 1899, os policiais privados estão sob jurisdições da polícia local, seus setores são delimitados e eles devem, para ter acesso aos mercados, comprar permissões e licenças dos concessionários de algum dos 62 bairros existentes. Existem portanto ao menos 142 policiais privados que patrulham esses setores e que são bem-reconhecidos por sua eficácia [5].

Na Itália, o banditismo, o terrorismo e a ineficiência do Estado provocaram um forte crescimento das despesas com atividades privadas de segurança. As sociedades de vigias privados declararam um volume de negócios de 950 bilhões de libras italianas no ano de 1985. As companhias de seguro exigem a presença de vigias em algumas empresas, sob pena de nulidade do contrato em caso de sinistro [6]. O Anarcocapitalismo apenas estende este já próspero domínio de segurança privada a níveis da comunidade e das sociedades. Segundo a crítica Anarcocapitalista, a polícia e os serviços de segurança não têm nada de um “bem-público”. A não-rivalidade do consumo não se aplica: ninguém pode utilizar ao mesmo tempo os serviços de um comissariado de polícia, nenhum policial pode atender ao mesmo tempo diversas ocorrências, a cada unidade de segurança consumida diminui uma unidade disponível para os demais. Dito de outra forma, quanto mais indivíduos suplementares consomem os serviços, menor o número que resta disponível para seus vizinhos próximos ou distantes. Não existe nada na natureza da polícia que assegure automaticamente o uso de todos os serviços, por todos os habitantes de um bairro. A segurança é um bem passivo de exclusão (exclusivo): a polícia que é paga por mim não seria obrigada a proteger meu vizinho ou um passageiro clandestino (free rider). É verdade que a presença policial exerce um efeito dissuasivo, que integra a noção de bem público. Mas a mesma dissuasão é produzida se os indivíduos se armam para defender suas casas ou deslocam-se armados pelas ruas. As vantagens gerais da sociedade e da cooperação social, as quais nós somos todos naturalmente e legitimamente beneficiários, não justifica a coerção da parte daqueles que gostariam de obter muito mais do que lhes é fornecido como subproduto das ações dos outros. Lembremos que o argumento dos bens públicos é incompatível com a abordagem praxeológica: na medida que não conhecemos as escolhas concretas de um indivíduo (ou quando ele paga uma agência de polícia privada para vigiar sua casa) nós não podemos afirmar nada sobre suas preferências ou disposições a pagar. Não é possível conhecer efetivamente os gostos ou disposições marginais a pagar dos indivíduos se eles não podem se manifestar livremente nos mercados. Se a proteção policial apresenta-se ainda hoje como um bem público é sobretudo devido à estatização de boa parte desta “indústria” de segurança, que impede que o indivíduo reconheça o quanto paga para obter o que ele quer ou o que tem (a segurança), e que faz com que ele seja mais vulnerável às reduções e recaídas abstratas da dissuasão.

Como funcionaria concretamente o regime de segurança inteiramente concorrencial ? Se jamais poderíamos prever exatamente a configuração precisa das instituições e características exatas dos bens que a cooperação livre e espontânea produzirá, nós sabemos todavia que, sobre um livre-mercado, um fornecedor ou produtor sempre manifesta-se para oferecer o que alguém está determinado a pagar por um determinado preço. Na ausência de Estado, como dissemos mais acima, se desenvolverão vantajosamente e ainda mais profundamente agências de proteção, seguradoras, tribunais penais e cortes de julgamento e arbitragem que oferecerão seus bens e serviços nos mercados. Se os ganhos de escala e eficiência nos mercados apontarem para determinados esquemas organizacionais, muitas companhias ofereceriam ao mesmo tempo serviços policiais e serviços judiciários, outras se especializarão em determinados segmentos de mercado. Podemos conjeturar e presumir que as companhias de seguros que têm interesses tangíveis na luta contra o crime se lançariam na luta pela tomada destes mercados. Morris e Linda Tannehill (1984) imaginam que elas comercializariam apólices de seguro contra agressão, o que as incentivaria a perseguir os culpados para que reembolsem os danos e atentados contra direitos contratuais assegurados aos seus clientes. O interesse das companhias de seguro pela segurança privada ou coletiva é ilustrado naquele caso dos vigias italianos citados mais acima, em que os contratos e prestações geralmente envolvem serviços mais extensivos e garantias que os parceiros comerciais solicitam no momento de firmamento de suas relações de cooperação. Rothbard (1973) conjectura que os serviços de segurança ofertados por empresas independentes ou por companhias de seguros se apresentariam geralmente sob a forma de apólices de seguro associando prestações de segurança e proteção, ou seja, uma garantia de serviços por um período de tempo determinado com qualquer antecedência. Outros serviços de segurança específicos poderiam ser comprados separadamente, associados a determinados pacotes e cesta de serviços incluindo seus respectivos preços. Indivíduos formariam também associações mútuas de proteção. Além disso, evidentemente, todo indivíduo poderia decidir assegurar ele mesmo sua própria segurança embora a maior parte deles escolha — sem sombra de dúvidas — aproveitar das vantagens da divisão do trabalho e confiar este trabalho às agências de segurança especializada.

Sobre sua propriedade um indivíduo ou grupo voluntário de indivíduos poderia se proteger da forma como houvesse decidido, normalmente retendo os serviços da agência policial de sua escolha. Sobre a propriedade de outrem, ele é protegido por seu anfitrião ou por sua agência. Na eventualidade de uma agressão da parte deste anfitrião, ele sempre poderá chamar sua própria companhia de segurança. Em lugares “públicos” como as ruas ou os imóveis comerciais o indivíduo estará sob proteção da agência empregada pelo proprietário (privado) do lugar em questão, que aliás tem todo o interesse em garantir isso se ele pretende, de fato, conservar sua clientela e bem proteger seu estabelecimento. Em suma, em sua casa, o indivíduo é coberto por seus próprios arranjos de proteção; alhures, ele é protegido por seu anfitrião. Em certas situações de urgência, a agência de polícia capaz de intervir não será aquela que esteja sob responsabilidade contratual da segurança da vítima de agressão. Os mecanismos de interesse individual continuam a atuar nestes casos, da mesma forma como nos outros. Por exemplo: imagine que em tua ausência um bandido adentra em tua casa por arrombamento. Um agente da polícia “Z”, ao serviço dos proprietários da rua que entorna tua propriedade, é testemunha do arrombamento. Ele intervirá diretamente ou alertará tua agência, pois tal é o seu próprio interesse, haja visto que ele se ocupa da segurança local e poderá ulteriormente reivindicar eventuais custas suplementares associados aos serviços prestados em caráter de urgência. Na verdade, o proprietário da rua procura assegurar um bom serviço de proteção aos moradores pois, caso contrário, o valor das propriedades cairá e a rua será alugada ulteriormente por preços menores. É bem provável que o próprio contrato de uso da rua preveja que esse tipo de assistência seja fornecido. Certamente, nenhum problema intervém se a rua pertence coletivamente aos moradores e proprietários, e a segurança já está sob responsabilidade de uma empresa de seguros ou polícia.

Compliquemos um pouco mais a situação com intuito de assimilar melhor os mecanismos de raciocínio do fornecimento voluntário desses serviços. Se um indivíduo (ou sua propriedade) vítima de agressão não é assegurado por nenhuma agência de proteção, ou sua agência de proteção não seja reconhecida pelo policial que é testemunha do crime, este policial encontrará, ainda assim e da mesma forma um interesse em intervir. Ele pode querer preservar a paz nos bairros pois é para isto que estes serviços de seguro são pagos, e é baseado na excelência dessas prestações que oscilam os valores das cotizações dos serviços de segurança. Além disso, ele fará da mesma forma que os médicos e hospitais em caso de urgência: ele tomará o risco de atender e resolver o problema, enviando em seguida a conta para que os valores sejam reembolsados. Isto é tão provável que o próprio contrato que estabelece com sua agência de segurança vai efetivamente prever o reembolso dos serviços que lhe foram ofertados por outras agências em tais circunstâncias. Quanto aos mais pobres, eles não seriam necessariamente menos bem protegidos em uma anarquia libertária. Pensemos um pouco. Hoje em dia os habitantes dos bairros mais pobres estão verdadeiramente bem protegidos pela policia pública que, ainda por cima, lhes custa caro em impostos? A resposta para isso soa ainda mais óbvia em um país como o Brasil. E se a maior parte dos pobres consegue hoje em dia oferecer a si próprios automóveis e televisores, por quê não poderiam eles pagar privadamente por melhores serviços de polícia com aqueles impostos que lhe são atualmente subtraídos para financiar as despesas com a polícia pública? Não devemos também esquecer que a caridade privada e a publicidade comercial (tal qual uma agência de polícia oferecendo serviços gratuitos em um bairro desfavorecido) teriam papel ainda mais importante em uma sociedade de policiamento privado. Enfim, os próprios habitantes de um bairro pobre poderiam reagrupar-se em associações de proteção e bastaria que o direito natural de autodefesa e o porte de armas não lhes fossem subtraídos.

Uma objeção a tal organização frequente enfatiza que a segurança pública é uma condição de base para a realização do mercado, e que não poderia consequentemente ser assegurada pelo próprio mercado. Sem uma segurança eficiente não temos liberdade e não temos mercados. No entanto, se o argumento for considerado globalmente temos como consequência que todos os tipos de bens produzidos pelo mercado adviriam condições sine qua non, ou seja, o argumento configuraria uma falácia de princípio. A comida é essencial ao mercado: sem comida, não temos a estrutura nutricional, não podemos ter mercados; do mesmo jeito o papel, e hoje em dia, os computadores. A dificuldade aparente vem do fato que se esquece que as divisões de consumo e as decisões em termos de preferência são feitas marginalmente. Um indivíduo não decide consumir 100 kg de pão por ano, ele escolhe tal baguette que ele compra em uma padaria. Da mesma forma ele faz com a segurança. Na medida em que as ações e as escolhas humanas implicam unidades marginais de bens consumidos, seria praxeologicamente absurdo colocar o problema em termos de conjunto de produção ou em estoques de bens. Tal serviço policial comprado por alguém não é mais indispensável ao funcionamento do mercado que tal cesta de comida roubada de um empório.

Ao contrário de Molinari, os Anarcocapitalistas contemporâneos não acreditam que a proteção policial constitua um monopólio natural. Não existe nada que de fato permita supor isto. A segurança é próxima da indústria de seguros, onde nenhum monopólio territorial resiste à competição. Mesmo que uma agência de polícia tenha dominado uma região ou bairro qualquer, nada impediria que outra agência vinda do exterior responda à demanda de indivíduos estimando-se mal desservidos pela agência mais popular. A concorrência entre as agências de polícia conduziria a uma melhora da segurança pública. Contra a objeção segundo a qual as agências de segurança concorrenciais estariam constantemente em guerra, os Anarcocapitalistas propõem duas vias de resposta. De uma parte, as guerras inter-estatais atuais são bem mais ameaçadoras e devastadoras que as possíveis brigas e atritos que existiriam entre agências privadas. De outra parte, como não é do interesse das agências de entrar em batalha por qualquer motivo irrelevante, elas tentarão geralmente se entender e fazer estabelecer seus direitos: seja através dos tribunais civis supracitados, seja através das cortes penais que serão consideradas e estudadas brevemente logo a baixo.

Jurisdições Penais Privadas

A segurança compreende também atividades judiciárias: identificar, perseguir e julgar pessoas suspeitas de crimes, e impor uma pena satisfatoriamente justa aos culpados. Em uma sociedade Anarcocapitalista — como dentro de um estado natural lockeano, todo indivíduo possui ao mesmo tempo o direito de defender-se contra um agressor e também de impor-lhe uma indemnização e puni-lo, ou delegar a alguém a responsabilidade de fazê-lo. Todo indivíduo tem o direito de se fazer justiça (ou fazer justiça contra outrem), ou adquirir serviços de um terceiro que procurará fazê-lo. Apesar disso, o exercício deste direito comporta certos riscos. Somos juízes ruins de nossas próprias causas, e a vítima de um crime de sua própria agência de proteção tem interesse em remeter-se ao juiz de um tribunal independente e imparcial. Aquele que faz justiça ou rende uma justiça precipitada corre o risco de ser convocado a ter que justificar-se por sua vítima, ou àqueles tendo adquirido os direitos desta vítima em outra instância. Se seu veredicto revela-se errôneo, ou a pena aplicada e imposta considerada desproporcional, o justiceiro privado seria ele mesmo acusado de agressão criminal. Para qualquer um que preze e tenha apreço por seus interesses privados, um processo tomado antes do ato é menos arriscado que uma justificação post factum.

A demanda por justiça ou demanda pelos serviços de tribunais judiciários se manifestaria espontaneamente nos mercados, uma procura pela qual responderiam prontamente agências privadas exatamente como no domínio de arbitragem civil e de proteção policial que acabamos de apresentar. Jurisdições penais concorrenciais ofereceriam a seus clientes a possibilidade de instruir processos contra seus agressores: julgariam os suspeitos e pronunciariam penas merecidas aos culpados e nos processos incorreriam sua própria reputação. A concorrência entre tribunais penais imporia a cada um a manutenção de uma reputação de imparcialidade, de justiça e de eficiência. Como toda empresa privada as agências judiciárias seriam, em teoria, financiadas por seus clientes (ou por mecenas). Ela obrigaria os suspeitos reconhecidos culpados a pagarem as despesas das custos judiciais. Os próprios custos relativos ao cumprimento das sentenças requereria o financiamento das agências dos envolvidos, ou das indemnizações versadas pelas próprias seguradoras dos tribunais, que normalmente poderiam resguardar previamente seus clientes do risco de situações onde os envolvidos se encontrariam incapazes de cumprir com a dívida relativa aos processos e aplicação da sentença. Em última instância ele poderia incorrer na obrigação de prestações diretas em caso de insuficiência geral de fundos. Alguns tribunais privados ofereceriam seus serviços aos filiados regulares, dentre os quais figurariam agências de polícia preferindo reportar automaticamente e imediatamente a um tribunal todo conflito implicando algum de seus clientes. Outras Cortes se contentariam de vender seus serviços por unidade.

Façamos um exercício intelectual. Imaginemos um indivíduo vítima de um crime, roubo ou agressão. Depois da investigação sua agência de polícia identifica um suspeito. Temendo os riscos e custos econômicos de uma justiça parcial e precipitada, o acusador executa um processo em um tribunal ao qual ele é associado — afiliado por intermediário ou diretamente, ou a qualquer outro tribunal de sua escolha. Desses tribunais viria a responsabilidade de realização e encaminhamento de eventuais perseguições penais oriundas das próprias vítimas ou agências de polícia, dependendo dos termos dos contratos que estes tribunais têm com os demais agentes. Se a vítima morreu ou encontra-se incapaz de agir, as pessoas tendo adquirido seus direitos ou suas próprias agências a substituirão e poderão reivindicar seus direitos. O acusado é avisado das perseguições judiciárias engajadas contra ele, e é convidado a comparecer e apresentar defesa neste processo. Ele não é, portanto, forçado a comparecer ao processo. Apenas é legítima a coerção contra um indivíduo que é efetivamente culpado de ter cometido um crime. Como o suspeito do crime não foi ainda reconhecido culpado, o acusador que o sequestrasse ou raptasse, ou procurasse exercer qualquer outra coerção contra ele seria ele mesmo passivo de perseguições penais, notadamente se o acusado estivesse finalmente sido declarado inocente ou que o período de detenção tivesse excedido o prazo previsto pela pena a qual ele é condenado. O fato é que os crimes e delitos geram direitos reivindicatórios. Excluídos os casos onde alguém está, de fato, pronto a correr este risco que representa um julgamento antes do processo, ou de não exercer adequadamente seu direito de defesa, o acusado seria realmente presumido inocente até que houvesse a prova do contrário. Dai seguiria evidentemente que nenhum inocente, mesmo testemunha de um crime, não poderia ser forçado a comparecer diante um tribunal nem mesmo ser coagido a testemunhar contra sua vontade. Em decorrência desse primeiro processo, das duas coisas uma. Ou bem o acusado é inocentado, e nenhum problema de execução apresenta-se; como o acusador não pôde obter a condenação diante do tribunal que ele mesmo escolheu, justiça é feita e o acusado é livre. Ou então o acusado é julgado culpado e é condenado a submeter-se a uma pena que (salvo para os Anarcocapitalistas utilitaristas) compreende a reparação do dano cometido e um devido castigo por ter violado os direitos de outrem. Se o condenado aceita o julgamento e a pena imposta, nenhum problema se apresenta. Justiça foi feita.

O que acontece nos casos onde o acusado não aceita o julgamento rendido por este primeiro tribunal, que ele mesmo não escolheu? Para evitar a execução do julgamento, ele levará em Apelo diante de um outro tribunal escolhido por ele mesmo desta vez. Em função do contrato de proteção subscrito pelo acusado, é possível que seja uma agência de polícia específica que ocupe-se exclusivamente de receber o Apelo, ou um tribunal de sua escolha, eventualmente aquele que está associado à sua agência de proteção ou seguradora. Uma outra possibilidade é que a companhia de seguro de vida do acusado — que deve eventualmente pagar uma parte da fatura — apresente e encaminhe o processo de julgamento em Apelo ao invés do próprio acusado. Independentemente disso, portanto, o fato de escolher um juiz implica que o agente com antecedência aceita e reconhece a legitimidade do seu julgamento. Neste caso, ou nessa fase do julgamento, em nossa segunda instância, das duas coisas uma. Ou bem o acusado é condenado uma segunda vez, desta vez pelo tribunal escolhido por ele mesmo (direta ou indiretamente) e mais nada então poderá opor-se à execução da sentença e da pena associada. Ou então, desta vez, a Corte de Apelo escolhe derrubar o julgamento em primeira instância, donde emerge um desacordo entre dois tribunais. A nova sentença pode ser diferente ou oposta ao que foi sugerido na primeira instância. Tal conflito poderia sobrevir de outra maneira: por exemplo, um acusado reconhecido duas vezes culpado — ou n vezes culpado — decide fazer novamente Apelo a uma sentença dada em primeira instância.

Nesse caso, em uma sociedade onde nenhum tribunal de última instância participa a um monopólio estatal de uso da força e coerção, como resolveríamos os conflitos entre tribunais ? A resposta a esta questão é a mesma que esta procurando saber por que nós tivemos recurso aos tribunais ao invés das armas em primeiro lugar: é simplesmente devido ao interesse pessoal. Não é do interesse de nenhum dos protagonistas regular seus conflitos sobre um campo de batalha. A luta armada custa caro a um indivíduo solitário, mas também a uma firma privada que deveria arcar com os custos e pagar seus homens mais caro para lhes incentivar à luta e participação em um combate. Quanto mais seus custos aumentam menor a competitividade em termos de preços e prestações de nossas agências. O combate significa ainda ver recursos e materiais custosos destruídos, ele arriscaria eventualmente a falência da empresa caso o conflito degenerasse indefinidamente e se alongasse demasiadamente, pior ainda, se a batalha fosse perdida. Uma agência de polícia que se engaje frequentemente em operações armadas iria observar o curso e valor de suas ações cair com maior frequência na bolsa de valores, no mínimo, iria ver oscilar mais devido ao maior risco que representa seu comportamento bélico. Seus clientes se inquietariam mais e ela arriscaria de vê-los desertar em benefício de outras agências de polícia mais estáveis. Seguindo os exemplos dos indivíduos e das agências de polícia, os tribunais e sociedades comerciais tendo fins-lucrativos teriam sempre maior interesse em regular seus conflitos pacificamente.

Na falta de um regulamento prévio entre o arguidor e o acusado, podemos prever que os dois tribunais em desacordo se entenderão para que o caso seja encaminhado diante de uma Corte de Apelo, que se transformará, ao fim do conflito em questão, em tribunal de última instância. É mesmo provável que as agências judiciárias estipulem com antecedência tais recursos em seus contratos de serviço, ou seja, elas já tenham um conjunto de juízes ou Cortes que tenderiam a encaminhar seus diferendos em jurisprudência e sentenças. Cada conflito encontraria assim, ao final das contas, sua própria “corte suprema”, que variaria de um conflito a outro e dependeria direta ou indiretamente das escolhas do acusador e do acusado e dos próprios tribunais e juízes envolvidos. O julgamento do tribunal em última instância seria final e executório, porque seria rendido por um tribunal escolhido ou aceito pelas duas partes da causa.

Contudo, o que aconteceria se as duas partes não chegassem a entender-se sobre um tribunal em última instância? Qual seria, em uma sociedade sem Estado, o ponto de ruptura a partir do qual um julgamento rendido é final, executório e sem Apelo? Rothbard resolve o problema através do que pode parecer ser uma brincadeira. O ponto de ruptura racional e lógico, que seria naturalmente adoptado pelo “código libertário fundamental”, é dado pela “regra dos tribunais”: um julgamento se torna executório a partir do momento onde dois tribunais diferentes que fazem concorrência o confirmam, ou em outras palavras, a partir do momento em que um segundo tribunal confirma um julgamento anterior. Como existem duas partes no processo, o acusador e o acusado, cada um dispondo naturalmente do direito de escolher seu tribunal, na eventualidade de um desacordo, um último tribunal é quem decide. No fundo, esta regra vai ao encontro da regra explicitando o direito por um indivíduo de portar sua causa diante de um tribunal ao qual ele mesmo escolheu (diretamente ou via seus contratos anteriores) e então o julgamento, por esta razão mesmo, o associará ao veredicto.

Nós chegamos assim diante da Corte de Apelo escolhida diretamente ou indiretamente pelos dois beligerantes. Agora ou bem o tribunal de Apelo em última instância inocenta o acusado que foi reconhecido culpado uma vez e inocente uma outra, e o veredicto inocente é então final e sem Apelo e o caso está encerrado. Ou então ele rende um veredicto de culpabilidade e impõe uma nova pena, e este julgamento, o segundo no mesmo sentido, se torna final, sem Apelo e executório. Justiça foi feita. Contrariamente aos julgamentos civis, todavia, as decisões das jurisdições penais requerem geralmente uma execução forçada. De fato, os incentivos criados pelo temor do ostracismo atuariam menos eficientemente ao encontro de criminosos contumazes e condenados à pesadas penas redistributivas. As agências de polícia privada seriam necessárias não somente para defender-se contra as agressões mas também para executar os julgamentos dos tribunas contra esses criminosos. A responsabilidade de execução legal de um julgamento penal dependeria dos entendimentos contratuais prévios, e os mercados e prestações se encarregariam de satisfazer as prestações e demandas emanando dos diversos tribunais. A diversidade do mercado atuaria nesses casos da mesma forma. Em certas situações esta responsabilidade incumbiria à polícia de quem faz a queixa, nos outros casos uma agência de polícia afiliada ao tribunal que pronunciou a condenação final se encarregaria. Talvez, como imaginam os Tannehill, as companhias de seguros tendo indemnizado um cliente assegurado contra agressões interviriam nesta altura dos acontecimentos pois seu interesse evidente consiste em recuperar suas despesas ou perdas. Enfim, alguns indivíduos prefeririam executar eles mesmos os julgamentos em seu favor, malgrado os riscos implicados.

Nesta etapa final da aplicação do direito libertário desavenças poderiam emergir entre indivíduos ou entre empresas de segurança adversárias, da mesma forma que conflitos acontecem algumas vezes entre a polícia do Estado e outros grupos armados, entre grupos militares e paramilitares, ou entre as forças armadas de diferentes Estados. No entanto, assim como sustenta a ideia Anarcocapitalista, os afrontamentos entre polícias privadas seriam raros justamente por causa de seus interesses materiais, eles buscariam vantajosamente resolver pacificamente seus conflitos. Os afrontamentos armados seriam necessariamente pontuais, localizados e menos destrutivos que as atuais guerras entre Estados, não tenderiam a durar como guerras mundiais nem mobilizar blocos inteiros de comunidades de nações. Contrariamente ao Estado, uma agência de segurança privada não gozaria de nenhum direito reconhecido permitindo encaminhar seus clientes, ou terceiros inocentes, em um conflito que lhe opõe a uma outra agência concorrente. Sem as demarcações territoriais dos Estados e sem a identificação dos civis às partes beligerantes, a destruição massiva produzida pelas guerras estatais é inconcebível. Quanto às agências de segurança foras-da-lei, elas tenderiam a ser raras e não sobreviveriam muito tempo. Para conservar sua clientela e assegurar a colaboração das testemunhas em suas enquetes e processos uma agência privada deveria manter uma reputação ilibada e acima de toda suspeita. Ninguém reconheceria as decisões de um juiz notoriamente corrupto, isso retiraria toda utilidade que o juiz pode transmitir para seus eventuais clientes. Ninguém aceitaria colaborar com uma agência de polícia fora-da-lei, o que normalmente lhe impediria até de conduzir eficientemente suas investigações e, portanto, de servir apropriadamente seus clientes.

De toda maneira, uma agência de segurança fora-da-lei não poderia se abrigar na sociedade com a mesma facilidade do monopólio estatal. Estando igualmente armados ou tendo capacidade de se defender de uma agência usurpadora, os indivíduos e as outras agências estariam em capacidade de se opor eficientemente a uma tirania dessa natureza. E mesmo que as agências fora-da-lei destruíssem todas as agências legítimas reunidas, ou se várias se reunissem em um consórcio ou cartel de foras-da-lei, este monopólio de uso da força não gozaria da legitimidade que a historia e a propaganda adornaram e deram aos Estados, notadamente em casos de regimes totalitários. Enfim, em uma sociedade Anarcocapitalista, um bando de foras-da-leinão poderia “tomar o poder” como fazem atualmente aqueles que se apropriaram do aparelho estatal: a descentralização do poder policial e judiciário ofereceria um verdadeiro sistema de contrôle e de contrapeso (“checks and balances”). Apenas suponhamos, de toda forma, diz Rothbard, que uma agência de segurança fora-da-lei termine por obter o monopólio de facto da força, e que ela advenha um Estado. Vejamos nós, este cenário considerado a pior das coisas que poderia acontecer é apenas o que temos hoje em dia em nossas sociedades: um retorno do Estado como na situação atual. Nós temos então tudo a ganhar e nada perder em tentar a experiência Anarcocapitalista.

O Direito Privado

O regime privado de segurança idealizado pelo Anarcocapitalismo supõe um sistema de leis que estabelece claramente o que é proibido, e que permite distinguir a agressão da legítima defesa. Mesmo sem Estado, e ainda mais sem o Estado a ordem social e a proteção dos direitos individuais requer leis. Como se estabelecem essas leis? Qual é a natureza do processo de desenvolvimento destas leis? Como se desenvolvem os processos de jurisprudência em uma sociedade onde a organização do sistema judiciário se dá de maneira policêntrica? Como uma lei justa persevera em uma sociedade de leis privadas? Como uma lei injusta desaparece? A grande maioria dos Anarcocapitalistas acredita que um direito natural e objetivo serve de fundamento às leis. (Nós falaremos logo mais abaixo de David Friedman, cuja teoria comporta um forte componente utilitarista.) O direito natural pode ser entendido de duas maneiras. Por um lado se trata de um produto da ordem espontânea, de uma lei natural que é descoberta através de um processo de desenvolvimento espontâneo do direito à maneira da Common Law britânica e do processo racional de tentativas e erros, da experimentação de normas e eliminação das normas insatisfatórias aos olhos da ética natural. Por outro lado, o direito natural Anarcocapitalista faz também referência a um conjunto de princípios fundamentais — os princípios lockeanos para Rothbard — acessíveis à razão e sobre a base dos quais é possível em seguida se desenvolver o processo espontâneo das regras de direito. Dito de outra forma, o desenvolvimento do direito relevaria da jurisprudência dos tribunais privados que descobririam a lei e corrigiriam o direito costumeiro às luzes dos princípios racionalistas do direito libertário, e dos resultados das experimentações em processos legais. A partir daí, segundo Rothbard, resultaria um “código de leis” derivado ao mesmo tempo do direito costumeiro e da ética racionalista libertária.

Para demonstrar a viabilidade do desenvolvimento espontâneo e anárquico de um direito respeitoso dos princípios libertários da propriedade privada e de não-agressão, os Anarcocapitalistas citam o caso da Irlanda celta, uma sociedade que teria se passado de Estado durante mais ou menos mil anos, até a conquista da Inglaterra no século XVII. A idéia do sistema policêntrico se inspira bastante de mecanismos de jurisprudência e resolução de diferendos em períodos específicos de determinadas sociedades. A sociedade irlandesa era dividida em uma centena de Tuathas, associações ou clãs políticos voluntários aos quais os homens livres escolheriam livremente aderir. Era possível, a seu bom grado, separar-se de um clã para reunir-se a um outro. O poder do chefe do clã se limitava a presidir as assembléias e, em tempos de guerra, dirigir os homens em combate. Os princípios de direito incorporados na tradição e nos costumes eram interpretados pelos juristas ou árbitros profissionais chamados Filids que, não pertencendo a nenhum clã, não eram ligados a nenhuma autoridade política. Os indivíduos recorreriam livremente ao árbitro de sua escolha para julgar seus diferendos. As decisões e veredictos dos Filids, tanto em direito penal quanto em matéria civil eram executados pelas próprias pessoas, que interligavam-se ou associavam-se livremente uns aos outros através dos correspondentes que se apresentavam como garantia de suas obrigações. O ostracismo da comunidade sancionaria aqueles que se recusassem a curvar-se diante dos julgamentos rendidos: eles não poderiam mais recorrer aos Filids para encaminhar as injustiças cometidas contra si.

Uma Defesa "Nacional" Privada

Em uma sociedade Anarcocapitalista cada indivíduo é soberano, sua propriedade é inviolável e cada um deve proteger a si próprio: ele é soberano sobre seu território. Dentro deste contexto os problemas não se resolvem da mesma maneira que nos casos onde o Estado pretende ser ele próprio o soberano. Por exemplo, o problema da imigração desaparece pois não existe mais território nacional protegido por algum soberano. O mundo Anarcocapitalista se assemelharia a um aglomerado de co-propriedades ou comunidades relativamente assentadas localmente. Um estrangeiro, se este termo fizer ainda algum sentido, goza tanto quanto um autóctone do direito de ir onde ele quer desde que ele seja aceito pelos co-proprietários do lugar onde ele vai ou tenha autorização. Todo indivíduo convidado a entrar em uma casa tem o direito de ali estar, assim como todo indivíduo empregado por uma empresa tem o direito de ali se apresentar. Se os proprietários de ruas, de praças públicas ou refúgios aceitam a presença de mendigos estrangeiros (ou “nacionais”), eles tem o direito de permanecer ali. Se, e somente se, eles não forem acolhidos voluntariamente por ninguém os estrangeiros serão rechaçados para fora das fronteiras pelas forças locais responsáveis da segurança. Nesse caso como nos outros a propriedade privada regula todos os problemas que cria a vida em comunidade. Assim é tratado também aparentemente o problema da defesa nacional, que seria conveniente rebatizar “defesa territorial” pois trataria-se de defender-se contra agressões ao encontro de seus moradores, ou agressões de Estados estrangeiros. Trata-se da proteção de um território definido e em justaposição espacial, de propriedades privadas pertencendo a indivíduos soberanos. A defesa nacional se inspira na proteção policial operada o nível de co-propriedades: a agência cuja qual alguém tenha adquirido os serviços deverá normalmente protege-lo contra toda agressão, de onde quer que ela venha, aí incluso bandidos internacionais organizados em Estados. Possivelmente as co-propriedades poderiam solicitar os serviços de conglomerados ou empresas “internacionais” especializadas na gestão de conflitos ou ameaças de agressão.

A objeção clássica é que a defesa nacional representa o caso típico de um bem público. Quando defende teu vizinho contra agressão de um estrangeiro, o exército nacional te protege também, sobretudo se essa defesa exerce-se por via de dissuasão. O risco é generalizado e os custos coletivizados pois um ataque estrangeiro pode acontecer em qualquer alvo ou lugar dessa co-propriedade. Contra os bandidos individuais nativos, cuja ameaça é menor e mais precisa a dissuasão pode ser localizada ao nível da co-propriedade, de tal forma que o aspecto bem público da segurança interior pareça menos evidente. A defesa nacional, contudo, configuraria mais nitidamente a natureza característica de bem público. Mesmo assim, Rothbard rejeita essa objeção e apresentação do problema. A supressão do espaço nacional, que é comum simplesmente porque foi estatizado mudaria radicalmente a natureza do problema. Cada proprietário deveria defender ou fazer-defender sua propriedade, sob pena de a encontrar completamente sem defesa. Em um mundo de co-propriedades a defesa de territórios menos extensivos não requereria a mobilização das mesmas proporções de forças militares, o papel da diplomacia e dos contratos por serviços de proteção em escala internacional ou entre as co-propriedades teria papel mais relevante. Em um regime de propriedade privada, um exército privado fará esforços para defender a propriedade de um não-cliente apenas e na medida que isso servir para manter inimigos comuns à distância. Ou seja, a menos que a defesa represente um interesse estratégico particular, nada garante que a propriedade será efetivamente protegida. Sobretudo ninguém garante que ela será protegida da maneira que sirva os interesses do proprietário: a partir do momento que o combate esteja engajado entre o invasor e a agência de proteção do vizinho, um passageiro clandestino (free rider) poderia muito bem constatar que sua propriedade é defendida exclusivamente como campo de batalha servindo para expulsar os inimigos. Cada indivíduo deverá levar em consideração e colocar na balança os riscos de estar mal-protegido ou de não estar protegido, cada co-propriedade estabeleceria suas diretivas de organização da proteção e contrataria os serviços das empresas mais apropriadas para satisfazer sua demanda por defesa, e relativamente ao custo de adesão (talvez por intermediário de sua agência de polícia) a uma associação de defesa “nacional”.

De forma mais estendida, a argumentação que apresenta a defesa nacional como um bem público cai na crítica geral que Rothbard impõe a esse conceito, e que desenvolveremos melhor logo abaixo. O argumento é redutível aos falsos problemas do passageiro clandestino (free rider) e da questão da emergência de um sistema de apropriação para bens perfeitamente apropriáveis. Nós somos todos passageiros clandestinos da civilização, e não existe nada de repreensível nisto. Na medida do possível e do que é eficaz, um regime de propriedade privada assegura a exclusão dos passageiros clandestinos que poderão de fato ser excluídos. Nada nos garante que os passageiros clandestinos beneficiarão, efectivamente, segundo suas próprias preferências, daquela proteção ofertada pela defesa nacional cuja qual eles não escolheram voluntariamente contribuir. Se isto for verdade, nada se opõe a que, como os outros serviços de segurança, a defesa nacional possa ser ofertada pelos mercados. Aqueles que temem as ameaças exteriores comprariam serviços de defesa nacional em função de suas próprias preferências, das necessidades das co-propriedades: seja através de suas agências de polícia seja através de suas agências especializadas.

Na medida em que a defesa territorial contém um elemento de bem público, os mecanismos tradicionais de produção privada de bens públicos atuariam: associações, pressões sociais, cooperação espontânea e empreendedorismo. Morris e Linda Tannehill sustentam, por exemplo, que as companhias de seguros teriam interesse em organizar a proteção dos bens assegurados por eles contra os agressores estrangeiros. Por outro lado, para Murray Rothbard, uma sociedade Anarcocapitalista já estaria por definição menos exposta à agressão de Estados estrangeiros. Na medida que não configura mais um Estado-Nação, ela não ameaçaria a soberania de nenhum outro Estado-Nação, e não se submeteria aos problemas que uma diplomacia não pudesse resolver. No mais, os habitantes soberanos dessa sociedade não se identificariam com nenhum outro Estado. Por consequência, um Estado estrangeiro não teria nenhum interesse em invadir tal sociedade nem ousaria atacar populações pacíficas. Como é o Estado que torna possível e justifica a guerra internacional, sua abolição sistemática conduzirá ao desaparecimento desse tipo de conflito. Enfim, um conquistador hipotético recuaria diante do trabalho de dominar uma sociedade que não gratificasse seu ocupante de nenhuma estrutura estabelecida de governo, e onde se oporiam a ele em uma insustentável e interminável guerrilha um grande número de agências de polícia e indivíduos armados até os dentes, habituados a se defender.

Diversos Sistemas de Direito

Para os Anarcocapitalistas rothbardianos ou randianos (como os Tannehill), o direito natural existe e fixa os parâmetros das decisões judiciárias. Algumas “leis objetivas governando a natureza das relações humanas são necessárias para o mantimento da ordem social”, escreveram Morris e Linda Tannehill. A jurisprudência desenvolve regras legais eficientes a partir de um substrato jurídico meta-econômico. O direito não responde ao mercado e às preferências subjetivas dos indivíduos, ele constitui seu próprio fundamento. Mas por que o direito natural não poderia ser produzido pelo mercado, exatamente como os outros bens em função das demandas diversas dos indivíduos? Por que os tribunais privados, respondendo demandas de seus numerosos clientes, não estabeleceria regras legais diferentes para cada um deles? Por que não criariam eles sistemas jurídicos diferentes em função das preferências individuais?

Em vez de um direito libertário único aplicável a todos vários critérios de jurisprudência poderiam coexistir e satisfazer as demandas variadas de diversos indivíduos. Tal é o Anarcocapitalismo utilitarista que propõe David Friedman. Não é verdade que Friedman não acredita em um direito natural anterior ao mercado. Ele se identifica com a “idéia central do libertarianismo (…) de que deve ser permitido às pessoas viver suas próprias vidas como lhes parece conveniente”, e ele concebe essa liberdade em termos de direitos de propriedade, a começar pela propriedade privada sobre a própria pessoa. Remanesce portanto em The Machinery of Freedom, seu “guia para um capitalismo radical” como diz o subtítulo que ele reserva pouco lugar para os princípios éticos ou jurídicos transcendendo as preferências individuais. Segundo Friedman, “os sistemas de direito poderiam ser produzidos segundo objetivos lucrativos em um livre-mercado”. Ele continua descrevendo que: “Em um regime Anarcocapitalista, desde que seja possível, cada um poderia obter sua própria lei.” Tomemos o exemplo da pena de morte. Aqueles que se opõem comprariam seus serviços de segurança, desde que possível, junto aos tribunais que partilham seu ponto de vista e junto às agências de polícia que fazem negócios com este tipo de tribunal. Inversamente, para os partidários da pena de morte. A menos que uma das duas opiniões seja universal, os dois tipos de agência coexistirão. Se um conflito aparece entre duas agências da mesma opinião, um tribunal compatível será escolhido em comum acordo e sem problemas. Caso contrário, uma escolha deverá ser feita entre as duas opiniões legais. Por definição, uma lei se impõe a terceiros e determinadas normas ou leis excluem outras — contrariamente às marcas de carro ou tipos de escola. Todos os consumidores não poderão obter sempre e exatamente a lei que preferem, mas votando com seu dinheiro eles podem fazer atuar suas preferências e fazer prevalecer a intensidade de suas opiniões no resultado final.

Imaginemos um cenário em que um indivíduo é acusado de assassinato por um outro, os dois subscrevendo agências de polícia entretendo opiniões contrárias sobre a pena de morte. As duas agências negociariam para determinar se elas confiariam a resolução de seu conflito (entre o cliente de uma acusado de assassinato e o cliente da outra sendo a vítima) a um tribunal favorável ou oposto a pena de morte. A agência favorável a pena de morte calcula que ela pode pedir a seus clientes no máximo 1 000 000 moedas de ouro suplementares em honorários caso ela consiga fazer triunfar sua opinião, obtendo a escolha do tribunal favorável a pena de morte. A agência desfavorável à pena de morte avalia que 2 000 000 moedas ouro é o valor que seus clientes aceitariam pagar caso ela obtivesse sucesso na escolha do tribunal desfavorável. A agência contrária à pena de morte pode oferecer então 1 500 000 moedas de ouro à agência favorável para lhe fazer aceitar um tribunal contrário a pena de morte. Todo mundo estaria satisfeito: os clientes contrários que estavam dispostos a desembolsar ainda mais para fazer triunfar sua opinião e os clientes favoráveis que obteriam tarifas reduzidas para os serviços de segurança, por um valor mais elevado do que lhes valia o apoio da corte defendendo a sentença da pena de morte. Cada grupo de indivíduos contribuiu, através de suas escolhas, para influenciar o desenvolvimento de jurisprudência e do direito de determinar sob quais leis eles deveriam viver. Nos domínios onde a jurisdição entre as diversas regras legais não é tão categórico, as preferências legais dos indivíduos seriam ainda mais fáceis de ser satisfeitas. Por exemplo, várias regras de direito comercial podem coexistir (como entre os diferentes estados americanos) provido que saibamos sob qual sistema opera cada empresa.

Para Rothbard e os libertários “ortodoxos”, os negócios privados como o consumo de drogas relevam de decisões puramente pessoais e toda interferência coerciva contra esse comportamento constituiria um abuso criminal dos direitos individuais. Esse já não é necessariamente o caso para David Friedman (1973, p. 127), que considera que “a legalidade da heroína será determinada não pelo número de pessoas que são contra, mas pelo custo que cada lado está disposto a pagar para ter razão”. Se quase todos os habitantes de uma comunidade se opõem ao consumo da heroína por qualquer que seja o preço, eles conseguirão conduzir suas agências de polícia e seus tribunais a proibir esta droga em seu território. Em um outra comunidade, as leis serão mais liberais porque os consumidores de drogas serão mais numerosos ou estarão mais dispostos, dada a intensidade de suas preferências, a encorajar e subscrever as agências de segurança que compartilham seu ponto de visa: as leis são produzidas em função do que o mercado demanda. Mesmo se o direito é produzido no mercado, explica Friedman, os julgamentos injustos não serão vendidos aos maiores ofertadores. Os juízes devem sua clientela à reputação de honestidade, experiência e expertise em matéria jurídica. Se existem leis cuja a aplicação universal é inseparável da natureza do homem e indispensável à cooperação interindividual (“tu não matarás”) e vida comunitária, a concorrência dos tribunais lhes fará descobrir da mesma forma que todos os arquitetos terminam por aceitar as leis da física. Se a uniformidade das leis e a simplicidade do sistema legal é um valor compartilhado pela maior parte dos indivíduos, o mercado jurídico produzirá a estandardização ou padronização desejada. Os criminosos não poderão remeter-se aos tribunais permissivos notadamente porque estas escolhas terão frequentemente sido feitas antes da realização do crime, ou serão feitas pelas agências de polícia implicadas ou pelos tribunais de primeira instância.

Do ponto de vista libertário, a produção do direito pelo mercado coloca sobretudo um problema de tirania da maioria. Friedman responde que mesmo o utilitarismo de mercado, onde as pessoas votam com seus bilhetes de banco, faz que a coerção seja improvável. O assassinato não é viável do ponto de vista econômico simplesmente porque as vítimas estariam dispostas a pagar mais por leis que proibissem o assassinato do que os assassinos por leis que o permitissem e fossem coniventes. Da mesma forma, os consumidores de heroína “estão dispostos a pagar um preço bem mais elevado para que eles sejam deixados em paz do que alguém está disposto a pagar para ter o direito de lhes enxotar. Por esta razão, as leis de uma sociedade Anarcocapitalista seriam fortemente enviesadas em favor da liberdade”. Se não podemos predizer em detalhe o funcionamento e as inovações do mercado, nós podemos fazer conjecturas racionais sobre as grandes características da ordem produzida pela liberdade. A análise dos Anarcocapitalistas mostra que o mercado pode oferecer tudo o que o Estado produz atualmente, incluindo os serviços de polícia e de justiça. Assim, escrevem Morris e Linda Tannehill, “o Estado não é um mal necessário, ele é um mal inútil”.

A Irrealidade dos Bens Públicos segundo Rothbard

A crítica radical de Murray Rothbard, que nega a existência do problema dos bens públicos, prolonga suas interrogações sobre o tema relacionado ao fornecimento da justiça, defesa e estradas. Primeiramente, segundo Rothbard, o conjunto de bens públicos não é definido. Ou os bens públicos são frouxamente definidos, e assim estão por todo lado, desde a civilização até a beleza das paisagens, passando pelos efeitos da educação sobre a civilidade ou o fato de dois irmãos terem uma mesma irmã. Ou eles são definidos estreitamente, e então é difícil encontrar coisas que têm ao mesmo tempo a qualidade de um bem privado — a raridade e utilidade — e a qualidade de um bem público — que consiste no fato de poder ser consumido simultaneamente por todos sem que isto seja inconveniente para ninguém. Nesse caso, mesmo um fogo de artifício não é mais um bem público se os espectadores caminharem uns sobre os pés dos outros para a visualização do espetáculo. “Na verdade, escreveu Rothbard, nós podemos (…) afirmar que nenhum bem satisfaz a categoria samuelsoninana de ‘bens de consumo coletivo’ (…) Na realidade, se um bem é verdadeiramente ‘coletivo’ ao sentido técnico de Samuelson, é por que ele não é de forma alguma um bem, mas uma condição natural do bem estar humano”.

A segunda linha de ataque ao argumento dos bens públicos reside no tratamento do problema das externalidades e dos passageiros clandestinos (free riders). Ora, segundo Rothbard, trata-se de um falso problema. As preferência individuais são essencialmente subjetivas e não podemos conhecer as preferências dos outros sem induzir-lhes em suas ações, em suas escolhas concretas. Entre as preferências e as escolhas, a definição não é circular: são desejos que determinam as ações, as ações são essencialmente definidas em função dos desejos; mas não conhecendo estes desejos e preferências dos outros, nós apenas podemos induzir empiricamente desejos particulares a partir de ações particulares. As escolhas são preferências demonstradas: “as escolhas concretas relevam ou demonstram as preferências de uma pessoa”, escreveu Rothbard.

Em terceiro lugar, na medida em que existem bens públicos e externalidades, eles representam simplesmente um produto inseparável e um efeito benéfico da civilização. Nós somos todos passageiros clandestinos do presente ou do passado. Nós lucramos sem cessar dos esforços de educação e de civilidade de nossos semelhantes. A crítica e o ataque aos passageiros clandestinos releva de postulados éticos indemonstrados e indemonstráveis: que nós tenhamos ou não o direito de receber doações ou vantagens gratuitas, que tenhamos ou não o direito de fornecê-las, ou ainda, que apenas alguns sejam obrigados a fornecê-las aos outros. Na realidade, um grande número de bens, serviços e atividades privadas comportam efeitos públicos e estes que são verdadeiramente ‘bens’ por oposição às coisas abundantes ou condições gerais da natureza humana serão produzidos pela cooperação livre e voluntária de indivíduos agindo em sociedade.

Estendidas ao seu limite, as idéias austríacas de valor subjetivo, desequilíbrio criador e empreendedorismo destroem a noção de bens públicos cuja produção ótima requereria a coerção estatal. As preferências sendo subjetivas e exclusivamente reveladas pelas escolhas concretas dos indivíduos, nada nos permite afirmar que um consumidor está preparado a pagar por um bem que ele não financia efetivamente. O desequilíbrio criador do mercado e a civilização geram todo tipo de externalidades cuja internalização, quando possível, só poderia ser eficientemente realizada por indivíduos no mercado e por empreendedores que apostam sobre as demandas insatisfeitas. Segundo Rothbard, os bens públicos são ou impossíveis ou anódinos.

Notas

[1] Ver por exemplo, Scott McMurray e Bruce Ingersoll, “Arbitration Can Be Better Than Litigation When Investors and Brokers Don’t Agree”, Wall Street Journal, 30 de Abril de 1986. Notemos que os corretores de títulos americanos, chamados “stockbrokers” ou “corretores de valores imobiliários”, são profissionais privados empregados por firmas concorrenciais.

[2] Câmara de Comércio Internacional, Relatório Anual 1984, Paris, 1985, p. 26.

[3] Montana do Norte e Montana do Sul são dois Estados limítrofes dos Estados Unidos. A Saskatchewan é uma província canadense que faz fronteira com a Montana do Norte do outro lado da fronteira canado-americana. A proposito, este trecho é parte do primeiro capitulo de Power and Market (1970):

“Although it is true that the separate nation-States have warred interminably against each other, the private citizens of the various countries, despite widely differing legal systems, have managed to live together in harmony without having a single government over them. If the citizens of northern Montana and of Saskatchewan across the border can live and trade together in harmony without a common government, so can the citizens of northern and of southern Montana. In short, the present-day boundaries of nations are purely historical and arbitrary, and there is no more need for a monopoly government over the citizens of one country than there is for one between the citizens of two different nations.” (Ver website de Lew Rockwell)

[4] Ver, por exemplo, Earl C. Gottschalk, “Some Mail Order Offers Sound Too Good To Be True — These Three, for Example”, Wall Street Journal, 10 de Março de 1987.

[5] Estes dados são de 1977. Ver Time Magazine, 24 de Janeiro de 1977; e San Francisco Chronicle, 11 de Janeiro de 1977.

[6] Jacques Duplouich, “Italie: l’armée de polices privées”, Le Figaro, 23 de Novembro de 1986.

Referências

  1. AXELROD, R., The Evolution of Cooperation, New York, Basic Books, 1984.
  2. FRIEDMAN, D., The Machinery of Freedom. Guide to a Radical Capitalism, New York, Harper & Row, 1973.
  3. MOLINARI, G., “De la production de la sécurité”, Journal des Économistes, vol. 22, n. 95, (Février 1849), p. 277–290.
  4. NOZICK, R., Anarchy, State and Utopia, New York, Basic Books, 1974.
  5. ROTHBARD, M. N., For a New Liberty, New York, Macmillan, 1973.
  6. ____. Man, Economy and the State, Los Angeles, Nash Publishing, 1962.
  7. ____. The Ethics of Liberty, Atlantic Highlands (New Jersey), Humanities Press, 1982.
  8. TANNEHILL, M., TANNEHILL L., The Market for Liberty (1970), New York, Laissez Faire Books, 1984.

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