A Teoria Econômica Contra o Mito da Progressividade

Sobre os limites do argumento teórico que justificaria a progressividade e uma aplicação ao caso brasileiro

Mateus Bernardino
Economia e Filosofia
12 min readJan 14, 2016

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Entre as extrapolações mais propagadas nas redes sociais, veículos da mídia popular e não raramente em diversos estudos acadêmicos uma chama particularmente atenção pela aparente unanimidade de aceitação de suas conclusões e, paradoxalmente, pelo consenso que desperta mesmo entre pessoas se identificando em lados aparentemente opostos do espectro político. Mesmo entre liberais mais comedidos ou libertários mais radicais os preceitos e conclusões deste raciocínio parecem por vezes não fazer apelo á reflexão: de todas as injustiças eminentes que nossas sociedades vivenciam, e em particular a sociedade brasileira, esta que se apresenta entre as mais detestáveis é a injustiça fiscal.

No Brasil, nos dizem, por aparentemente concentrar boa parte da predação em impostos indiretos e cujo repasse em cascata recai sobre o consumo, o sistema tributário prejudicaria sobretudo os mais pobres. Pior que isso, extrapolam alguns — e é aqui que reside a parte mais periclitante do problema –, em nosso regime tributário os pobres pagam mais impostos que os ricos, isto quer dizer, por contribuírem relativamente com uma parte maior de seus ordenados, nossos trabalhadores mais pobres contribuem comparativamente mais que os mais ricos.

Tendo por ideal de justiça tributária o prejudício equitativo do fardo fiscal, apontam, seria injusto que um sistema tributário desigual como o nosso permaneça sem reformas. Eis o apelo geral e diagnóstico incontestável do sistema tributário brasileiro: é necessário instaurar maior progressividade para não perpetuar um mecanismo perverso onde os pobres financiarão para sempre os ricos através dos serviços públicos.

No entanto, as conclusões deste raciocínio plenamente aceito sem o devido recuo e em quase unanimidade são bastante mitigadas ou verdadeiramente contestáveis, pelo menos quando fazemos uso do raciocínio econômico coerente e temos em vista os dados gerais disponibilizados pelos diferentes órgãos recolhendo as estatísticas nacionais.

A verdade é que a interpretação de que “os mais pobres são esses quem mais contribuem para a arrecadação” é falsa, e este artigo apresentará algumas generalidades da teoria econômica e do caso aplicado brasileiro para ajudar a compreender melhor os limites desse raciocínio.

O Erro por Extrapolação

O erro fundamental do raciocínio consiste em extrapolar a ideia de que uma parte maior da renda individual consagrada ao pagamento dos impostos implica consequentemente uma maior participação comparativa na contribuição para a arrecadação total, o que é manifestadamente um raciocínio errôneo e sobretudo incorrerá numa mentira.

Isto quer dizer que, mesmo que fosse verdade que determinada categoria aleatória ou conjunto de indivíduos reagrupados em função da renda pagasse mais em termos de seus próprios ordenados para os fundos do governo, isto não quer automaticamente dizer que o mesmo grupo contribui efetivamente mais que os outros na parte total arrecadada pelo fisco.

Esse raciocínio é absurdo e decorre da extrapolação e interpretação equivocada dos estudos sobre a fiscalidade. Interpretam e fazem estudos dizerem aquilo que não dizem.

Tomemos um exemplo. Um indivíduo A contribui com 90% de seus ordenados de 100 dinheiros para os fundos do Estado ao passo que o indivíduo B com 10% de seus ordenados remontando a 1.000.000 de dinheiros, independentemente do sistema de repartição operado pelo aparato redistributivo e a matéria fiscal incidindo o imposto. A predação do governo se eleva então á 100 mil e 90 dinheiros nesse universo de 2 “contribuintes”, dos quais 90 dinheiros oriundos dos fundos do indivíduo A.

Podemos dizer que o esforço relativo de A é superior ao esforço de B? Veremos que não. Podemos dizer que A contribui mais que B? Jamais.

E portanto é esse raciocínio que nos tentam vender muitas vezes os defensores da fiscalidade progressiva e todos estes contando anedotas sobre a injustiça de determinados regimes tributários. Desde que nos afastemos do ideal igualitarista de sociedade onde cada qual possui a mesma quantidade de recursos que o outro — o que quer dizer a mais completa injustiça que poderia existir –, e a partir do momento que o financiamento do governo não se dá por um montante fixo e igual para todos — um dos regimes fiscais mais justos –, a tendência natural é que os mais ricos contribuam mais em volume aos fundos do Estado, ao contrário do que propõe a generalização.

Os Esforços e os Argumentos em Favor da Progressividade

É necessário esclarecer que, em microeconomia e segundo a teoria neoclássica padrão sobre a fiscalidade, para todo o conjunto de ordenados angariados pelos agentes econômicos (trabalho, comércio ou renda em aplicações e terras), a predação incidindo sobre cada um desses rendimentos tem por consequência um desestímulo a que se exerça respectivamente cada uma dessas atividades e, de maneira geral, conduz os indivíduos a valorizar relativamente mais o lazer.

Sabendo disto, a justificativa para a progressividade, em primeiro lugar, parte do princípio de que, com intuito de “equalizar o esforço” e o sacrifício diante do pagamento dos impostos, é mais do que justo pedir mais a quem tem mais: 10 dinheiros têm mais utilidade para quem tem 100 do que para quem tem 1.000.000. Em segundo lugar, e buscando atingir um objetivo redistributivo e de solidariedade, é conveniente que o Estado utilize da fiscalidade progressiva com esse intuito pois o mecanismo responde perfeitamente á esse papel de transferências de recursos dos ricos para os pobres: a progressividade é um instrumento de justiça tributária e igualdade social.

O primeiro argumento reveste uma aura de legitimidade por supostamente aplicar corretamente a teoria marginalista em sua versão referente á fiscalidade. No entanto, a verdade é exatamente o inverso: é devido á incompreensão dos preceitos mais elementares da teoria econômica — e da aceitação de uma generalização puramente instrumental da teoria normativa neoclássica — que se chega á ideia errônea de que a progressividade responde um objetivo de eficiência e justiça.

Retomemos o raciocínio fundamental sobre a progressividade. A ideia geral é que, para equalizar os esforços diante do financiamento dos impostos, não basta, por exemplo, subtrair universalmente 1 dinheiro a cada 10 produzidos pois, para quem tem ordenados de 100 dinheiros, o último dinheiro subtraído do intervalo marginal de renda situado entre 90 e 100 tem valor maior do que teria o último dinheiro subtraído do intervalo marginal de renda situado entre 999.990 e 1.000.000 daquele que tem ordenados remontando a esse valor.

Se basear em tal proposição é simplesmente a demonstração e acusação mais perfeita de que quem assim defende a progressividade simplesmente não compreendeu alguns dos preceitos mais elementares da teoria econômica, ou adotou a economia pura e normativa sem o devido recuo que a própria teoria sugere.

A lei da utilidade marginal decrescente é um instrumento de análise fundamental e tem seu fundamento ancorado na ação humana e no comportamento individual. E é por isso que a utilidade só pode ser estimada pelo indivíduo livre e ao passo que toma sua decisão, no momento de sua ação. É um julgamento pessoal. A teoria marginalista não permite e nem fornece unidades precisas de mensura (para a utilidade) e nem abre escopo para a comparação interindividual de utilidades, ou para operações matemáticas buscando manipular quaisquer e diversas escalas de utilidade tomando por referência unidades físicas: não é possível desta sorte realizar uma soma de todas as utilidades individuais ou formar o que se denomina função de bem estar social. Isto é apenas uma abstração da teoria pura para se poder extrapolar raciocínios em ambiente determinado e sob condições bem precisas.

Dizer que a progressividade permitiria a equalização dos esforços não tem qualquer sentido, para aceitar isso seria necessário passar por cima deste pilar fundamental da teoria do valor subjetivo e das leis econômicas regendo a utilidade, algo consistindo em demonstrar que a utilidade não é uma mensura física quantificável, que as respectivas utilidades não são comparáveis e sobretudo que não podemos falar em esforços relativos quando não existe qualquer consentimento! O imposto, como seu nome sugere, é compulsório e sequer permite meios de avaliar ou estudar sistemas pessoais de valoração á seu respeito: não há um “mercado de impostos” fazendo disso emergir jogos de valoração individuais comparáveis em preços de mercado e em função de alíquotas.

O segundo argumento decorre naturalmente do primeiro e é ainda mais artificioso. Primeiro, não existe qualquer possibilidade de se falar em solidariedade para algo que diz respeito ao compulsório. E mesmo que assumíssemos que o Estado tem papel redistributivo, e que julgássemos isto legítimo e desejável, e que se conseguisse efetivamente satisfazer as necessidades básicas dos mais desamparados através da redistribuição, isto não depende necessariamente da progressividade, por mais redistributivo que seja o mecanismo e mais custoso em termos de liberdades. Sequer é possível determinar com precisão se os recursos subtraídos aos mais ricos vão aos mais pobres pois os impostos não remetem qualquer serviço público específico!

A ideia fundamentando o critério de justiça na progressividade repousa na perspectiva de que existiria um bolo, um produto ou uma “renda nacional” que foi repartida de maneira arbitrária pelo livre jogo dos mercados e que caberia aos burocratas do governo corrigir eventuais exageros, seja isso democraticamente ou não. Isso que denominam “renda nacional” não existe enquanto tal, existe o conceito e ideia de renda nacional que tem qualquer utilidade para abstrações e estudos estatísticos sobre a riqueza. A Nação enquanto entidade abstrata não possui, não produz e nem detém efetivamente qualquer coisa. O fato é que o conceito de “renda nacional” por vezes obscurece algo economicamente primordial e apontando que toda riqueza é produzida por alguém e pertence a alguém, ela não está por aí disponível a todos, ela não está disponível para que, segundo julgamentos pessoais ou fatos estilizados de repartição, o governo tome democraticamente ou não o direito de rearranjar conforme considere justo, a menos que os direitos de propriedade tenham um valor estritamente secundário.

Os Efeitos da Progressividade

Além de apresentar limitações em princípios, a progressividade tem efeitos econômicos bastante conhecidos e que não cabe neste breve comentário abordar exaustivamente. Grosso modo, temos efeito sobre os incentivos e em termos de distorções das escolhas individuais. A ideia geral vai em consonância com o que dissemos mais acima: o imposto progressivo torna mais cara a arbitragem em favor da produção relativamente ao lazer, e como consequência direta, quanto mais se penaliza a produção, a renda ou a poupança e o capital, maiores as consequências negativas sobre o ritmo do progresso social, notadamente por enrijecerem-se as engrenagens da acumulação capitalista e por se estimular o consumo em detrimento da parcimônia.

A progressividade impõe restrições severas á criação de valor pois, a verdadeiramente dizer, o efeito nocivo do imposto sobre a produção de valor em uma sociedade é apenas aproximativo quando tomamos sua parte em função da “renda nacional”, seu potencial de prejudício depende sobretudo dos obstáculos que entrepõe á produção de valor segundo as diferentes cadeias e processos produtivos, o que influencia diretamente a criação de valor na sociedade como um todo. E é por este motivo que devemos ter sempre em mente o peso marginal dos esquemas de imposição segundo categorias produtivas, aliás é em decorrência disto que podemos concluir que o fardo da fiscalidade progressiva é particularmente mais prejudicial.

Do ponto de vista da própria arrecadação, em decorrência dos custos marginais crescentes para levantamento de fundos públicos e como grosseiramente explicita a curva de Laffer, não existe qualquer benefício efetivo em estabelecer um sistema ultra progressivo de predação. Aliás, as pessoas que têm uma remuneração acima da média são poucas e justamente pessoas com habilidade particular em direcionar seus esforços e recursos, que têm um gosto pela tomada de risco e empreendimento e que têm talentos acima da média, que têm gosto pelo trabalho dobrado e que apresentam alta produtividade (capital humano) geralmente servindo setores com alta performance e requerendo grande comprometimento. Coibir, através da progressividade, a remuneração dessas ações é tornar ainda mais escassos esses valores e significa coibir ainda mais a tomada de risco por empreendedores.

Observações Conclusivas: O Caso Brasileiro

Para concluir este artigo gostaria de chamar à atenção para o caso brasileiro, sob pena de não ser acusado de mero propagador de generalidades teóricas que na prática não encontram respaldo na realidade. Mais particularmente, olhemos mais de perto o caso da fiscalidade e analisemos a ideia de que “os pobres pagam mais impostos que os ricos”. Lembremos que o imposto é uma cobrança compulsória com intuito de financiar o Estado e não remetendo qualquer serviço específico, logo, contribuições ou cobranças remetendo serviços específicos como o caso dos serviços de Previdência ou Seguros do Trabalho não entram efetivamente nesta definição padrão de imposto. Vejamos então os principais instrumentos fiscais e de arrecadação que encontramos nas esferas municipal, estadual e federal, a saber, o Imposto de Renda, o ICMS (Impostos sobre Circulação de Mercadorias) e o ISS (Imposto sobre Serviços).

Segundo as definições e classificações consagradas entre os diferentes órgãos reunindo dados sobre o patrimônio e a renda, a classe social que denominam “classe pobre” reúne o conjunto de famílias cujos ordenados mensais não ultrapassam o salario mínimo, ou cujos rendimentos em termos de média da renda familiar atingem até pouco mais que mil reais. A análise em termos de famílias nos dá uma visão um pouco desacertada da realidade e em termos de nível de vida. Na verdade, a própria classificação da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência propõe como pertencente á classe pobre individualmente um sujeito cujos rendimentos não ultrapassem mensalmente 291 Reais, como indica a Tabela 1:

Nossa análise é geral e ilustrativa, não deixando portanto de ter uma coerência pertinente para com a realidade tributária brasileira. Tomemos incialmente o caso da arrecadação federal. O Imposto de Renda representa a maior parte das receitas federais, é um instrumento que permanece portanto alheio ás classes pobres: para o que diz respeito a um dos maiores instrumentos de arrecadação, os mais pobres sequer contribuem efetivamente pois para entrar na contribuição é necessário um nível de renda superior á renda da classe pobre.

Ainda na esfera federal, lembremos rapidamente, a segunda maior fonte de renda do governo encontra contrapartida direta em serviços sociais — não entrando então verdadeiramente na definição de imposto. Mesmo assim, colocando a parte o INSS, a maioria dessas contribuições incide sobre pessoas jurídicas, por mais que seja efetivamente um confisco de uma renda que talvez pudesse ir diretamente ao trabalhador. Tal é o caso, por exemplo, da CSLL, do PIS/PASEP e da COFINS. Em conjunto, todos esses instrumentos fiscais federais representam quase 80% da arrecadação federal, e em grande parte não remetem efetivamente ou particularmente os mais pobres. São os mais ricos e as empresas que financiam esses fundos do aparato federal.

Na esfera Estadual não é diferente para as maiores fontes de renda dos Estados, o ICMS e o IPVA, independente de não serem progressivos. Olhemos rapidamente a Tabela 2 logo abaixo. Eu elaborei esta tabela como mero dispositivo ilustrativo e sem qualquer pretensão de investigação científica extremamente rigorosa. O objetivo é apenas tomar um mecanismo de raciocínio permitindo visualizar o princípio regendo a parcela de contribuição para impostos indiretos como o ICMS (ou ISS, na esfera municipal) e segundo classes de renda. No entanto, independente de sua pretensão científica, fique claro, a tabela tem respaldo nos últimos dados da PNAD para 2014 e que podemos encontrar facilmente no site do IBGE:

Façamos a seguinte abstração. Imaginemos que existe apenas uma alíquota de ICMS (ou ISS) incidindo sobre todos os contribuintes e Estados brasileiros, sobre todas as transações. Aceitemos igualmente os dados referentes á repartição de renda disponibilizados pelo IBGE, admitindo ainda que a “classe pobre” envolve as famílias cuja renda não ultrapassa o salário mínimo, ou até algo em torno de mil Reais. Aceitemos também sem contestar os preceitos econômicos e teóricos apontando que na margem quanto menor a renda das famílias ou dos indivíduos menor a propensão a poupar ou mais importante a parte consumida dos ordenados.

Ainda assim, não nos restará margem pra dúvidas, embora representem a parte mais numerosa da população, os pobres não contribuirão com mais do que 25 a 30% das receitas em ICMS (ou ISS), como resume a Tabela 3:

Vale notar que para o ICMS o valor do total arrecadado que apresentei na tabela é bastante próximo do total realmente arrecadado com ICMS que é divulgado pela Fazenda, ou seja, nossa estimação não está demasiadamente distante, e nem poderia, o que é reconfortante.

Vale também notar que para as famílias de renda alta tomei a liberdade de instaurar uma média de renda em torno de 10 a 15 mil reais, entre outras coisas pois a parte superior da distribuição é esta que geralmente apresenta mais ruídos e discrepâncias. Na verdade, depois dos 5 salários mínimos, temos famílias cuja renda mensal pode facilmente atingir o dobro ou até mesmo valores muito superiores a 4.250 reais, o corte então deve se situar, por inconveniência de aproximação, bem mais acima de 7 mil reais. No entanto não há na verdade nenhuma necessidade de se focar no corte dos mais ricos, basta olharmos na tabela os rendimentos das primeiras famílias de classe media e já fica claro que eles já são praticamente iguais ou maiores em contribuição relativa do que o conjunto dos mais pobres. O mesmo resultado encontraríamos na esfera municipal e para o ISS dada a semelhança do sistema fiscal.

Não resta muita dúvida quanto aos resultados práticos. No Brasil, para o que diz respeito efetivamente aos impostos, não são os pobres quem mais contribuem para os fundos do governo. Por saberem disso, os defensores da fiscalidade progressiva recorrem á ideia de contribuição em termos de esforços comparativos e utilidade em função da renda. Infelizmente, para tal, precisam passar por cima de alguns dos princípios mais elementares da teoria econômica, o que é inaceitável.

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