Concorrência Institucional [I]: Lei, Ordem e Ascensão do Capitalismo

Mateus Bernardino
Economia e Filosofia
11 min readJun 25, 2024

Este trabalho é o primeiro de uma série de três artigos em que procuro mostrar de que maneira a concorrência institucional poderia funcionar como mecanismo promotor do desenvolvimento socioeconômico em escala local e mundial.

Abordarei então, sucessivamente, os seguintes tópicos: a concorrência institucional, a farsa do ‘dumping fiscal’ e a farsa do ‘dumping social’, assuntos que estão, como veremos, intimamente relacionados.

O primeiro texto tem por interesse relembrar intuições elementares, onde por intermédio de considerações simples procuramos introduzir a definição e algumas idéias envolvendo o tema da concorrência institucional.

Estátua da Liberdade

Lei, Ordem e Capitalismo

Nossa investigação procurando entender de que forma algumas nações e populações terminam por reconhecer a importância da liberdade e do direito para seu progresso e prosperidade econômica é semelhante a busca por uma teoria e uma explicação para a emergência e desenvolvimento das instituições nas sociedades humanas e nos mercados.

A ênfase tradicional das teorias institucionais se focaliza principalmente na importância dos direitos de propriedade: o advento e o reconhecimento dos direitos privados de propriedade foram motores do desenvolvimento econômico e garantia do respeito das liberdades individuais.

A invenção dos direitos de propriedade explicaria o surgimento e a consolidação das trocas de mercado e o desenvolvimento das técnicas comerciais, as bases sobre as quais foi possível que as relações econômicas evoluíssem até atingir estágios mais avançados na escala capitalista, em outras palavras, bases garantindo o surgimento e ascensão do capitalismo.

Assim como procurou demonstrar Ludwig Von Mises (1920) o funcionamento de uma economia de mercado e a existência do capitalismo repousam sobre pré-condições institucionais: a propriedade privada sobre todos os bens e serviços apropriáveis, a liberdade de trocas e a existência de uma moeda sã que ofereça a possibilidade de uma unidade comum de cálculo e a contabilização fomentam a alocação e a execução racional dos processos produtivos, ou a exploração capitalista dos recursos econômicos, isto quer dizer o conhecimento do real rendimento das ações produtivas dos agentes.

O desenvolvimento do capitalismo não corresponde ao nascimento do comércio: o mercado pré-existe ao regime capitalista de acumulação. Contudo a durabilidade das trocas comerciais também necessita do reconhecimento dos direitos privados e da apropriação legítima dos bens trocados.

Do ponto de vista institucional, o desenvolvimento do comércio é uma primeira fase de generalização da propriedade privada sobre os bens e serviços apropriáveis.

Esta generalização é diretamente dependente do respeito do processo que conduz a que cada parte participando à troca reconheça o direito de apropriação da outra e sobretudo que evolua extensivamente a liberdade das trocas dos bens legitimamente apropriados entre os indivíduos.

Compreender o surgimento do capitalismo é compreender a supremacia das sociedades onde cada um reconhece a legitimidade do direito de apropriação: trata-se de uma sociedade que reconhece o direito que os indivíduos têm de ser livres e de agir independentemente do que pensa sua pequena comunidade relativamente à grande sociedade.

Milton Friedman (2010, p. 74) sugeriu que, além da existência de um quadro monetário facilitando o comércio, a organização da atividade econômica e das trocas voluntárias supõe que seja mantida a lei e a ordem para prevenir a coerção injustificada exercida por um indivíduo contra outro, e também fornecendo uma garantia de execução dos contratos voluntariamente estabelecidos, a definição formal do significado e extensão dos direitos de propriedade envolvidos e sua execução e reconhecimento.

Desta maneira, a lei, a ordem e a instituição da propriedade são elementos fundamentais à generalização do progresso social.

Uma das explicações da emergência e expansão das instituições da liberdade e direitos individuais tão importantes para o desenvolvimento do comércio e advento do capitalismo poderia ser ilustrada pela teoria fundamentada na concorrência institucional.

Bill of Rights

A Concorrência Institucional Externa e Interna

O termo concorrência, para a teoria econômica, opõe com certa frequência a situação de monopólio.

Transplantada à abordagem institucional esta dicotomia permitiria ilustrar o surgimento de impérios e ditaduras ou a descentralização do poder em diversas federações de pequenos Estados.

A ideia de concorrência também fornece pistas para a compreensão da convivência de regiões governadas por instituições diferentes e diferenças em matéria de incentivos dessas instituições sobre as populações governadas por elas.

A concorrência permite entender a evolução e mudanças das instituições ao redor do mundo, a expansão das instituições da liberdade da tirania, a explicação do (sub)desenvolvimento econômico de determinadas regiões, ou ainda o reconhecimento dos meios mais eficientes e legítimos para triagem e seleção institucional.

A concorrência institucional traz a hipótese de arbítrio e supõe a possibilidade de escolher, renunciar diversas regras e acolher aquelas que, do ponto de vista socioeconômico apresentem as melhores características ou propriedades para os interesses dos diversos indivíduos. (Ver: Penarrieta 2005, p. 658)

A teoria da concorrência institucional define um processo de concorrência interna e externa entre normas sociais (Ver: Facchini 2008, p. 76): a concorrência externa caracterizaria a concorrência institucional entre estados; a concorrência interna aconteceria no interior do mesmo estado ou monopólio do constrangimento normativo. [1]

Enquanto a concorrência externa descreveria a coordenação, as mudanças e as interações contínuas entre instituições de estados diferentes a concorrência interna descreveria o mesmo processo no interior dos estados.

É desta forma que compreendemos a emergência das instituições da liberdade e seu desenvolvimento e generalização: elas decorreriam então deste mecanismo de descoberta, tentativas e concorrência entre diferentes normas buscando satisfazer interesses pessoais de um grande número de indivíduos: um processo espontâneo e evolutivo.

As instituições da liberdade emanam certamente de preceitos morais existindo nos próprios indivíduos, no entanto elas são validadas e progressivamente respeitadas ao longo do processo de testes e generalização e a concorrência com demais normas torna clara sua superioridade relativamente ao seu desrespeito.

Índice de Liberdade Econômica 2022 (Heritage.org)

Concorrência Institucional e Performance Econômica

Interações contínuas entre instituições distintas promoveriam o reconhecimento da eficiência que cada uma transmite para lidar com os problemas que elas buscam simplificar ou solucionar, como por exemplo o tratamento do problema da escassez de recursos entre diferentes sociedades.

A compreensão do resultado destas interações é fundamental para entender a arbitragem em matéria institucional. Diferentes arranjos institucionais fornecem quadros de incentivos, tipos de conhecimento e competências que aportam o máximo de rentabilidade aos indivíduos.

Instituições diferentes promovem diferentemente a criação de riqueza, a divisão do trabalho, a realização de poupança e o estabelecimento de relações comerciais duradouras.

A existência de economias de escala e de escopo e a complementariedade associadas a uma matriz institucional revelariam, por sua vez, no decorrer do tempo quais instituições promoveriam a melhor solução para os obstáculos associados à escassez.

Trabalhos de economistas como Daron Acemoglu (2005), Edward Glaeser et al. (2004) e Janine Aron (2000) procuraram demonstrar a importância dos arranjos institucionais e da ‘qualidade’ das instituições para o desenvolvimento económico.

Outros estudos se focalizam também nas diferenças institucionais para compreender as disparidades econômicas entre países e analisar a relação e a dinâmica das mudanças institucionais e económicas (Ver: Amable 2005, Hall; Solskice 2001).

Douglas North (1991, p.2) sublinhou de maneira ajustada que as instituições são importante para a redução dos níveis de incerteza associados ao comportamento dos indivíduos, a natureza restritiva intrínseca às instituições seria provedora da estrutura de incentivos necessária ao bom funcionamento das relações de mercado e desenvolvimento económico.

Como ficou historicamente demonstrado nos casos das duas Coréias (do sul e do norte) e das duas Alemanhas (do leste do oeste), as condições geográficas, os recursos naturais, o clima, a etnia ou a cultura não seriam os fatores explicativos mais determinantes para compreensão do desenvolvimento e sucesso das sociedades. O sistema de regras sob as quais vivem os indivíduos conta significativamente para o crescimento econômico e enriquecimento de suas regiões.

Nesta perspectiva os governos podem ser definidos como conjuntos de regras e arranjos institucionais contendo uma quantidade de instruções e um número de normas representando o que descreveríamos como uma tecnologia institucional.

Nos casos das duas Coréias e Alemanhas, ficou evidente que as instituições da liberdade se mostraram superiores às instituições coletivistas: uma tecnologia institucional mais eficiente em promover o desenvolvimento socioeconômico.

Poderíamos nos perguntar o que teria acontecido se os muros e fronteiras cercando a Alemanha do Leste e Coréia do Norte não existissem? Em outras palavras, se fosse maior, mais livre e mais efetiva a concorrência institucional entre os países as instituições ruins perdurariam menos tempo?

Muro de Berlim

A concorrência pode impulsionar a performance e também as decisões políticas dos governos, nos lembrou Patrick Friedman (2012). [2]

Reformas procurando estimular a competição poderiam ser concebidas através da criação de zonas de livre comércio dotadas de autonomia orçamentária (e política) mais importantes, ou mesmo, através da promoção de um federalismo mais acentuado.

Mesmo que a promoção de inovações em matéria de tecnologia institucional permaneça limitada não muda que os países cada vez mais sentem o peso que exerce a concorrência institucional, notadamente quando se fala em atrair capitais e investimentos privados, empresas multinacionais, ou acolher mão-de-obra especializada. [3]

Conclusão: Concorrência e Globalização

A concorrência institucional é um dos motores que influenciam o processo econômico de globalização.

As empresas, os recursos e os trabalhadores (em menor escala) se deslocam lá onde o ambiente institucional é o mais favorável, desde que esta liberdade de trânsito seja respeitada.

Regulamentações ineficientes sobre o mercado de trabalho, garantias parcas à propriedade, pressão fiscal demasiadamente importante e barreiras extensivas à acumulação de capital representam instituições que os agentes levam em consideração quando decidem realizar contratos ou assentar uma vida.

Antes de tomarem suas decisões econômicas eles fazem bastante atenção à função e à qualidade das instituições.

Muitas vezes, políticos, governantes e sobretudo críticos do capitalismo gostam de dizer que tal tipo de concorrência é um absurdo, e que se trata de ‘dumping social’ ou ‘dumping fiscal’ o simples fato de pessoas procurarem modificar ou melhorar as regras sobre as quais estão vivendo.

Veremos nos próximos artigos desta série que este tipo de argumento não é recebível, estas expressões são na verdade uma farsa.

fevereiro 15, 2014 por mateusbernardino

Notas

[1] A título ilustrativo, um estado pode formalizar que a propriedade é um direito inalienável e absoluto, outro estado pode reconhecer que este direito é relativo e circunstancial: a concorrência externa explica ou descreve o processo de coexistência destas normas regendo as interações entre indivíduos se relacionando desde estes diferentes estados: ela é revelada na arbitragem em matéria institucional, na escolha da norma que procurarão reafirmar voluntariamente os indivíduos para que suas interações contratuais ou de mercado sejam coordenadas e executadas.

O próprio deslocamento e abandono do território é um meio de pressão e arbitragem demonstrando uma preferência em matéria institucional. Uma empresa que prefere se instalar em determinado território o faz certamente por motivos associados aos mercados, mas ela certamente não ignora em suas decisões a qualidade e as características das instituições vigorando em diferentes regiões.

Como a concorrência interna descreve o processo de coexistência de normas diferentes ao seio do mesmo estado, um exemplo ilustrativo representaria a instalação de um federalismo fiscal mais acentuado dentro de um país, talvez associado à idéia de que tal arranjo permitiria que fosse evitada uma pressão fiscal excessiva. Outro exemplo é a existência de zonas de livre comércio no interior de um país protecionista, ou ainda, a existência de penas diferentes para crimes similares. A distinção das duas formas de concorrência institucional nestes casos é muitas vezes tênue mas serve para ressaltar que sob o território onde ocorrem os processos concorrenciais e institucionais existe um monopólio normativo enquadrando a possibilidade de arbitragem sobre as normas.

Notem que este processo pode muito bem descrever a arbitragem entre normas estritamente privadas: a concorrência descreveria neste caso o processo de coexistência de normas privadas interiores e exteriores a um nó de contratos e relações de mercado, e a tendência a rejeitar ou adotar ao longo do tempo determinado tipo de norma.

A concorrência interna, seria a interação ao seio desta empresa (cadeia de contratos e relações de mercado) de normas técnicas, sociais ou organizacionais distintas.

[2] Patri Friedman (2012, p. 218) acredita que existe um grande potencial para que o incremento da performance dos governos em termos de decisões políticas venha a ser impulsionado pela concorrência em matéria institucional, pela liberdade de escolha e possibilidade de locomoção de seus cidadãos.

“A number of political economists and activists have seen the potential to improve government performance by subjecting governments to competition for mobile residents. Giving citizens greater choice of governance providers would allow for the sorting of individuals into jurisdictions by demand for public goods and social policy preference, reduce ethnic conflict, force governors to give citizens the policies and public goods they want at reasonable tax rates, and enable innovation through decentralized experimentation.”

[3] A inovação institucional permanece custosa e as barreiras à entrada da "indústria" do fornecimento de tecnologias institucionais são relativamente elevadas.

Em primeiro lugar, porque cada espaço do planeta é reivindicado por algum governo, sendo então difícil reivindicar autonomia de algum território para o desenvolvimento de tecnologias institucionais inovadoras. Em seguida, mesmo que terras fossem disponibilizadas e desagravadas da posse de algum governo, restaria que os governos dificultam a liberdade de decisão sobre, por exemplo, os critérios de imigração ou aquisição de nacionalidade, sem contar as barreiras associadas às dificuldades que os próprios cidadãos encontrariam em aprender novas línguas ou assimilar novas culturas.

Estes elementos ajudam a explicar porque a concorrência externa seja limitada, ou dependa da capacidade que alguns governos e cidadãos tenham de decidir realizar mudanças institucionais significativas, o que também é extremamente difícil visto a rigidez dos sistemas políticos, rigidez das normas já implantadas e sobretudo em vista do trabalho que exercem os grupos de pressão.

Referências

Acemoglu, D. ; et al., Institutions as a Fundamental Cause of Long-Run Economic Growth, In: Aghion, P.; Durlauf, S. (Ed.), Handbook of Economic Growth, vol. 1, Elsevier, p. 386–464, 2005.

Amable, B., Les cinq capitalismes, Collection Economie Humaine, Editions du Seuil, Paris 2005.

Aron, J., Growth and Institutions: a Review of the Evidence. The World Bank research observer, Vol. 15, n. 1, p. 99–135.

Facchini, F., L’invention des institutions de la liberté en Europe: fragmentation politique, fragmentation territoriale et la religion, Economie Appliquée, vol. 61 (1), p. 71–106, 2008.

Glaeser, E. L.; et al., Do Institutions Cause Growth? Journal of Economic Growth, Vol. 9, p. 271–303, 2004.

Gorce, G., Rapport d’information déposé à l’Assemblée Nationale pour l’Union Européenne sur le Dumping Social en Europe, Assemblée Nationale de la France, Octobre 2000.

Hall, P. A.; Solskice, D. (Ed.), Varieties of Capitalism: The Institutional Foundations of comparative advantage, Oxford Press 2001.

Friedman, M., Capitalisme et liberté, Editions Leduc, 2010 (1962).

Friedman, P.; Taylor, B., Seasteading: Competitive Governments on the Ocean, Kyklos, vol. 65(2), 218–235, 2012.

Mises, L. V., O Cálculo Econômico Sob Socialismo, Instituto Mises Brasil, tradução de Leandro Augusto Gomes Roque, 2012 (1920).

North, D., Institutions, The Journal of Economic Perspectives, vol. 5 (1), p. 97–112, 1991.

Oates, W. E., Fiscal Federalism, Harcourt Brace Jovanovich, New York 1972.

Penarrieta, P.L., Concurrence et ambivalence institutionnelle : le problème de la territorialisation des institutions appliquée à la Bolivie, Revue d’Economie Régionale & Urbaine, vol. 5, p. 657–678, 2005.

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