Considerações sobre o Cálculo Econômico em Comunidade Corporativa

Mateus Bernardino
Economia e Filosofia
8 min readJul 1, 2024

Este breve texto é uma reflexão realizada ao longo da leitura do artigo "Cálculo sob Comunidade Corporativa" de Kevin Carson. Nele pretendemos apresentar algumas incongruências que identificamos no trabalho original.

O artigo "Cálculo sob Comunidade Corporativa" de Kevin Carson levanta alguns questionamentos interessantes sobre o funcionamento de corporações e empresas de uma forma geral. Ele aponta ineficiências no processo alocativo das empresas que acabam influenciando a cadeia de incentivos ao nível organizacional e distanciado os processos alocativos daquele modelo de mercado.

As críticas ilustram muito bem o que ocorre em setores onde atua um monopólio histórico (privado e/ou regulamentado) como ocorre nos casos do saneamento, energia ou transportes etc.

De fato é difícil não concordar que problemas de gestão podem encontrar soluções descentralizadas notadamente eliminação ou redução de custos através de alternativas de natureza organizacional e que não se resumam apenas na demissão de colaboradores.

A resilição diz também respeito aos próprios responsáveis da gestão e as decisões das empresas muitas vezes privilegiam o desligamento de colaboradores situados em patamares mais altos da hierarquia.

Mesmo assim grande parte da crítica apresentado por Carson se perde pois inúmeras vezes a tomada de contrôle de empresas ou a busca por mudanças organizacionais passa pela substituição do quadro de dirigentes, o que é possível perceber no caso geral e emblemático que é o mercado de CEO’s, sobretudo quando o mercado percebe que a empresa dá sinais de problemas administrativos ou utilização insatisfatória dos recursos disponíveis (incluindo humanos) do ponto de vista da eficiência referencial encontrada na concorrência nos mercados.

Este debate sobre a gestão de empresas é interessante certamente merece atenção e um estudo comparativo entre empresas com mais ou menos contrôle do governo. Mas o ponto importante não é este.

Estas constatações ou críticas relativas aos limites e disfunções de gestão em empresas controladas ou supervisionadas pelo governo não podem ser alinháveis ao problema miseano do cálculo econômico.

Retomemos aqui o problema do cálculo tal qual ele foi interpretado pelo autor:

“Rothbard desenvolveu o argumento do cálculo econômico bem dessa forma. Ele argumentou que quanto mais removida a precificação interna de uma corporação dos preços reais de mercado mais a alocação interna de recursos seria caracterizada pelo caos calculacional (…) O problema do cálculo econômico (no sentido amplo, de forma que inclua o problema Hayekiano do conhecimento) pode ou não existir até certo ponto na corporação privada no livre mercado. Mas a fronteira entre mercado e hierarquia seria definida no ponto em que os benefícios de tamanho comecem a ser ultrapassados pelos problemas de cálculo econômico. As ineficiências de planta grande e hierarquia podem ser uma questão de grau, mas, como disse Ronald Coase, o mercado determinaria se as ineficiências são justificáveis.” (Carson, 2013)

Mises não abordou "escalas de cálculo racional", ou seja ele não parece ter dito que existiriam escalas de racionalidade indo desde o sistema garantindo um perfeito de cálculo racional até um cálculo perfeitamente caótico. A idéia não é ruim.

Mises demonstrou a impossibilidade do cálculo em economia socialista, o que não me parece ser o mesmo problema quando o governo privilegia tal ou tal setor de atividade. Caso tivéssemos em questão empresas públicas e um regime económico semelhante certamente o diagnóstico do cálculo guardaria sua validade.

O principal problema com a aceitação deste argumento nos parece ter origem institucional: não se contesta aqui as pré-condições institucionais miseanas para racionalização do cálculo econômico.

Ou seja não existindo limitações demasiadamente constrangedoras sobre os direitos de propriedade, sobre a existência do dinheiro e mesmo sobre a negociação dos bens de produção sobre um mercado não existe razão para acreditar que o dilema se apresente de maneira semelhante, pois existe a possibilidade do cálculo monetário e racionalização do processo alocativos em um aparato institucional capitalista.

Não é falsa a crítica de que o governo poderia ajudar a inflar estruturas que por natureza da produção já seriam maiores. Mas a razão principal do ponto de vista institucional não é apenas a intervenção e sim as próprias características do processo produtivo.

Lembrem-se que a arbitragem entre modos de coordenação é feita segundo a capacidade que este arranjo organizacional tem de minimizar os custos de transação que envolvem o processo produtivo, ou seja, isto termina por depender da complexidade dos ativos envolvidos, a frequência da relação e incerteza.

A justificativa da não existência de uma única firma, lembrando o que disse Coase, é justamente os rendimentos de escala organizacionais decrescentes, contrabalançados pelos ganhos e rendimentos de escala derivando do aumento da produção, o que determinaria, de fato, o escopo (tamanho) e forma da organização para uma atividade produtiva.

Outra dificuldade nos parece surgir no que descreveríamos como outra "interpretação avançada" do problema calculacional:

“A causa básica do caos calculacional, como Mises o compreendia, era a separação do conhecimento técnico do empresarial e a tentativa de tornar as decisões de produção baseadas apenas em considerações técnicas sem incluir considerações empresariais como a precificação de fatores de produção. Mas o princípio também funciona do outro lado: decisões de produção baseadas unicamente nos preços de insumos e produtos sem levar em conta os detalhes da produção (a prática típica dos MBAs de considerar apenas as finanças e o marketing, enquanto tratam o processo de produção como uma caixa preta), também resultam em caos calculacional.” (Carson, 2013)

Particularmente não teríamos tanta certeza quanto a idéia de que a "causa básica" do caos calculacional seria a separação do conhecimento técnico do empresarial. Daríamos maior crédito ao caráter institucional, ou seja, a "causa básica" seria a ausência de direitos de propriedade. Além disso o empreendedor e os empresários não deixam de lado os conhecimentos e detalhes técnicos relativos ao processo produtivo quando tomam decisões em uma economia de mercado mesmo que suas firmas estejam em situação privilegiada.

Uma terceira dificuldade me parece surgir da assimilação do problema dos incentivos em empresa privada e burocracia estatal.

“A firma privada, então, era por definição imune do problema da burocracia.” (Carson, 2013)

Mises mostrou já em seu artigo original que no longo prazo os interesses dos empresários e gestionários em uma firma capitalista se alinhariam com maior facilidade aos interesses dos acionários. Ele não disse que problemas de gestão ou excesso de burocratização não existiriam nas firmas de mercado.

Em Bureaucracy (1944) Mises explicou que os incentivos regendo as duas instâncias são de certa forma inconciliáveis. O problema de alinhamento dos incentivos dos colaboradores e empresários não engendra dificuldades ao cálculo monetário, e este problema se resolve naturalmente em uma empresa privada quando, por exemplo, algum desalinhamento dos incentivos tem incidência sobre a produtividade, competência e motivação dos colaboradores.

Esse obstáculo então é transponível através de mecanismos contratuais ou da cessação da relação e resilição do contrato, ou através de modificações de suas cláusulas e renegociações.

Notemos ainda que Rothbard apontou que o problema calculacional não deriva de um problema de incentivos:

“But the uniqueness and the crucial importance of Mises’s challenge to socialism is that it was totally unrelated to the well-known incentive problem. Mises in effect said: All right, suppose that the socialists have been able to create a mighty army of citizens all eager to do the bidding of their masters, the socialist planners. What exactly would those planners tell this army to do? How would they know what products to order their eager slaves to produce, at what stage of production, how much of the product at each stage, what techniques or raw materials to use in that production and how much of each, and where specifically to locate all this production? How would they know their costs, or what process of production is or is not efficient?” (Rothbard, 1991)

O problema do alinhamento dos interesses entre acionários e gestionários foi tratado por Berle & Means (1932) em The Modern Corporation and Private Property, e é de fato um debate interessante no entanto não coloca um questionamento verdadeiramente aprofundado sobre as questões relativas ao cálculo monetário, mas sobretudo às questões de incentivos tratadas no já mencionado Bureaucracy de Mises, ou nas teorias econômicas de assimetria de informação e relação "principal agente".

Nos parece que uma incongruência suplementar decorre desta assimilação de problemas relacionados aos erros e incompetências no processo de gestão em iniciativa privada e a realizabilidade do cálculo monetário permitindo o cálculo econômico racional.

Uma gestão incompetente é sancionada diretamente pelos acionários. As empresas sobretudo nos dias de hoje não deixam de tomar em consideração as informações geradas ao longo da atividade produtiva e no seio do quadro organizacional tendo consequências importantes no desempenho da empresa, sobretudo informações apresentadas pelos colaboradores dos escalões mais baixos.

Considerações Conclusivas

Não consideramos que se trate efetivamente de um problema calculacional idêntico ao problema colocado por Mises, e talvez a intenção de Carson nem fosse assimilar equivalentemente estas coisas.

Os problemas apontados pelo artigo podem ser ilustrados como dissemos mais acima pelas firmas públicas, privadas ou "semi-privadas" atuando sob esquemas regulamentários (contratos do tipo cost-plus ou rate on return) e operando em monopólios históricos em setores de infraestrutura.

Ou seja, o arranjo que se apresenta aí é sobretudo compatível com o que vemos nas economias mistas, mais próximas de um esquema socialista do que um esquema capitalista efetivamente. Mesmo que existisse o problema do cálculo tal qual ele foi apresentado por Carson, estamos naquele cenário onde as empresas atuam com referencias de preços de mercado.

A idéia surge como uma crítica derivando de uma interpretação feita pelo autor comparável a que segue e foi feita por Moss (1976):

“There is one vital but neglected area where the Mises analysis of economic calculation needs to be expanded. For in a profound sense, the theory is not about socialism at all! Instead, it applies to any situation where one group has acquired control of the means of production over a large area — or, in a strict sense, throughout the world. On this particular aspect of socialism, it doesn’t matter whether this unitary control has come about through the coercive expropriation brought about by socialism or by voluntary processes on the free market. For what the Mises theory focuses on is not simply the numerous inefficiencies of the political as compared to the profit-making market process, but the fact that a market for capital goods has disappeared. This means that, just as Socialist central planning could not calculate economically, no One Big Firm could own or control the entire economy. The Mises analysis applies to any situation where a market for capital goods has disappeared in a complex industrial economy, whether because of socialism or because of a giant merger into One Big Firm or One Big Cartel.” (Moss, 1976)

Portanto aí reside justamente uma grande confusão: mesmo que sob um arranjo capitalista prevaleça um cartel privilegiado onde uma ou mais firmas controlam um setor de mercado não muda que existe propriedade de fato e mercados para os bens de produção que fornecem um sistema de preços dentro de uma economia monetária.

novembro 2013

Referências

Carson, K. “Cálculo econômico sob firma corporativa”, A Esquerda Libertária: Segunda-Feira, 02 de Dezembro, 2013. Link: http://aesquerdalibertaria.blogspot.com.br/2013/12/calculo-economico-na-comunidade.html — .UqHxaZFTSX8

Moss, L. “Murray N. Rothbard, Ludwig von Mises and Economic Calculation Under Socialism”, in: The Economics of Ludwig von Mises: Toward a Critical Reappraisal, Kansas City, Sheed and Ward, 1976. Link:http://oll.libertyfund.org/?option=com_staticxt&staticfile=show.php%3Ftitle=109&chapter=30542&layout=html&Itemid=27

Rothbard, M. N., “The End of Socialism and the Calculation Debate Revisited”, Mises Daily: Friday, December 08, 2006 (1991). Link: http://www.mises.org/daily/2401

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