Desigualdades, Índices, Propriedades Axiomáticas e Inferência

Mateus Bernardino
Economia e Filosofia
21 min readJan 20, 2022

Neste artigo apresentaremos alguns problemas de natureza metodológica para a utilização de índices de desigualdades, e por consequência obtenção e fiabilidade de resultados utilizados para elaboração de políticas de combate.

L'Yerres Pluie, 1875 (Gustave Caillebotte)

A desigualdade nas remunerações teria aumentado de um ano para o outro? AS desigualdades são maiores ou menores entre dois países ou grupos de países? Essa variação foi mais forte nos anos recentes do que nas décadas passadas? A introdução de mecanismos de renda mínima e dispositivos de políticas fiscal sobre os mais ricos ajuda a reduzir duravelmente as desigualdades? As políticas de combate as desigualdades podem elas mesmas ajudar a acirrar outras desigualdades? A variação das desigualdades pode ser maior para determinados grupos de indivíduos do que para outros em função de políticas, modelos de crescimento, estrutura do tecido produtivo, das características socioeconomicas ou estágios de desenvolvimento? As desigualdades de renda observadas hoje em dia têm origem na desigualdade das remunerações ou desigualdades de patrimônio? Existiria alguma tendência irrevogável e naturalmente irremediável para as oscilações de níveis de vida?

Essas são algumas das questões que os estudiosos das desigualdades adorariam poder responder categoricamente.

Mas para respondê-las aproximativamente os analistas devem adotar uma conduta metodológica definindo as variáveis pertinentes, escolher as unidades detentoras da renda e o período de observação.

E mesmo nestas etapas relativamente mais elementares as limitações metodológicas não são menosprezáveis tanto para a portabilidade quanto para os resultados das análises.

As informações relativas à desigualdade material apreendem de forma incompleta mesmo questões "estritamente monetárias": os dados mensurando as desigualdades são coletados em um ponto preciso do tempo enquanto diversos aspectos associados às condições de vida, mobilidade e evolução das demais variáveis atreladas a renda, cestas de consumo e natureza dos bens de consumo oscilam constantemente até mesmo durante o próprio período da análise.

Dificilmente será possível distinguir componentes transitórios ou crônicos baseando-nos em dados longitudinais para julgar o quanto tal desigualdade é ou não, ela mesma, transitória, desejável ou demasiadamente acentuada, mesmo quando nos concentramos em apenas em um ou dois dos componentes (renda, gênero, faixa etária etc.) do vasto universo das desigualdades.

Ao passo que avançamos na direção da inclusão de mais problemas e elementos que integrariam o complexo e não fechado conjunto de desigualdades sociais (acesso à saúde, bens de consumo, educação, igualdade entre gêneros, igualdade entre raças, igualdade entre gerações, igualdade entre regiões, igualdade de origens e etc.) a análise fica menos objetiva e ainda menos transparente, e suas conclusões menos satisfatórias.

Quanto mais variáveis, mais hipóteses e mais componentes incrementando um modelo estatístico buscando apreender o fenômeno mais terminamos por reduzir seu poder explicativo.

Mais ele vai perdendo interesse pois cada vez menos estaríamos capacitados a analisar através do estudo populacional e da inferência estatística um fenômeno que tende progressivamente a fazer perder importância seus componentes, e não sinalizar quais seriam efetivamente as variáveis relevantes; e seus efeitos residuais seriam cada vez mais marginais ou meramente especulativos.

E portanto este é exatamente o exercício ao qual se propõem os estudiosos das desigualdades com intuito de atribuir às desigualdades um peso cada vez mais importante para a explicação de um número cada vez maior de fenômenos socioeconômicos.

Dispomos, com efeito, de diversos índices, indicadores e formulações que são tirados do estudo da distribuição de renda em determinada população.

Notem que, para fins de esclarecimento, o emprego do termo distribuição é aqui considerado do ponto de vista estatístico: do ponto de vista económico a renda em uma sociedade não se distribui, ela se constrói.

Não falamos em ‘repartição da renda’ ou ‘divisão do bolo’ em uma sociedade de mercado.

Nela se faz referência aos ganhos obtidos pelos diferentes agentes que a compõem.

É necessário fazer muita atenção mesmo à linguagem empregada na retórica das desigualdades para não cair no erro de associar conceitos e idéias por vezes propositalmente enviesados.

As análises das desigualdades de renda seguem, grosso modo, a mesma rotina metodológica: estudamos a distribuição do que se denomina renda em uma população estatística (como a Função de Repartição, Quantil, Curva de Lorenz etc.) e elaboramos índices ou indicadores estatísticos que resumiriam em um escalar a dispersão da repartição da renda ao seio de uma população ou grupo de indivíduos de uma amostra, ou sub-população de um subgrupo e etc. Nestes casos, se faz alusão aos índices de desigualdades relativas — Gini, Theil, Atkinson, Quintile Share Ratio ou Coeficiente de Variação etc. — , e desigualdades absolutas — Índice de Kölm, Variância etc.

Baigneurs, 1878 (Gustave Caillebotte)

Estatísticas da Sociedade Igualitária

Mesmo que em dois ou mais períodos distintos um índice escolhido aponte que um agente representativo (nomeado ‘os 99%’, por exemplo) ou subgrupo de um grupo representativo tenha ganhado menos do que outro grupo, não podemos dizer com isto que quem este grupo supõe representar está mais pobre. Ou que os pobres estão mais pobres.

Da mesma forma, não podemos dizer que, caso outro agente representativo (‘os 1%’, por exemplo) tenha ganhado mais ou segundo uma taxa de crescimento superior que o grupo precedentemente analisado e cujo qual atribuímos a denominação ‘ricos’ isto quer dizer, por consequência, que os ricos estão mais ricos.

Resumindo, dizer que a variação da renda de agentes representativos supostamente descrevendo classes de renda é a mesma coisa que a variação do que se denomina pobres e ricos é puro charlatanismo estatístico.

Estes eventos não nos permitem dizer que os ricos estão mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, e muito menos que o acúmulo de renda dos ricos se faz por causa e em contrapartida do empobrecimento dos mais pobres, o que é em qualquer escala proposto indiretamente ou por subterfúgio por inúmeros analistas.

Façamos um exercício mental que busca esclarecer a questão.

Imaginemos um mundo, como propôs recentemente Guillaume Nicoulaud (2014), onde vivem um milhão de indivíduos e que, no ano 0, eles dispõem em média de um capital de 100 dinheiros. Admitamos agora, como fazem frequentemente os deuses da estatística que a partir deste ano 0 a variação anual das fortunas — os ganhos — dos habitantes deste mundo deverá ser puramente aleatória e seguir uma lei normal de média 2% ao ano e um desvio padrão de 20%.

Nos 20 anos que seguem, e conforme a decisão dos estatísticos, a fortuna média dos habitantes deste universo passou de 100 dinheiros à 164 dinheiros, ou seja, uma progressão anual de 2%.

Mas uma coisa estranha aconteceu neste período. No ano 0, os indivíduos entre os 10 000 mais ricos desta população (1%), dispunham de um capital médio de 149,5 dinheiros, e vinte anos mais tarde, estes membros (do 1%) estavam em média ricos de 983,4 dinheiros; ou seja, uma progressão anual média de 7,8% da renda! Mas ainda, se analisarmos os 0,1% (os mil mais ricos), esta progressão anual média de seu patrimônio é de 10%!

Teriam os deuses da estatística mentido? Teriam eles, sem dizer a ninguém, favorecido os mais ricos e os riquíssimos? Na verdade não. A evolução do patrimônio dos 1% foi de 2%, e para os 0,1% a mesma coisa.

Como foi possível então notar esta diferença "abissal" entre os números apresentados há pouco?

A astucia é que se comparou o capital ou os ganhos dos x% mais ricos em um ponto do tempo com o capital dos x% mais ricos alguns anos mais tarde, procurando fazer subentender que a variação entre os dois corresponde ao enriquecimento deste grupo de ricos. E isto é falso.

O problema é que se elimina sistematicamente da amostra todos aqueles que empobreceram para reter apenas os indivíduos que enriqueceram, ou no pior dos casos, que não perderam suficientemente para sair do x%.

E a simulação pode ser alterada o quanto possível, mudem as distribuições iniciais, a média, o desvio padrão… os resultados serão sempre os mesmos.

Para fins estatísticos a mensura das desigualdades é fundamentalmente concentrada em torno de duas questões de natureza metodológica:

  • Quais são as propriedades mínimas que deveríamos exigir de um índice de desigualdade?
  • Existiria um índice de desigualdade melhor do que outro?

Estas duas questões estão no coração do que descrevemos aqui como teoria da mensura das desigualdades.

À primeira questão, buscando deixar em segundo plano uma abordagem mais interpretativa e fazendo apelo à perspectiva normativa, os economistas tradicionais buscam responder através de uma abordagem axiomática.

À segunda questão, e de forma igualmente normativa, os economistas tradicionalmente tentam responder através do que descrevem como "mensura ética da desigualdade", que nada mais é do que a hipótese de que existiria uma relação entre renda e "bem-estar", e sobretudo existiria uma forma de descrever as variações de "bem-estar social" de acordo com as infinitas possibilidades e combinações de distribuição ou repartição dos ganhos e da renda em uma população.

Geralmente a mensagem é a seguinte: maiores as desigualdades, menor o bem-estar social. Notem que esta função de bem estar não responde unicamente aos anseios individuais e que dizem respeito à parte da renda que recai aos indivíduos, mas integraria também um olhar social, no sentido de que indiferentemente ao fato do indivíduo se situar em algum lugar da distribuição de renda ele seria sensível à distribuição como um todo, a própria distribuição pode representar para ele mais ou menos aversão em termos de bem estar.

Nos concentremos então, primeiramente, nas questões axiomáticas.

Propriedades Axiomáticas, Desigualdades Relativas e Absolutas

A partir deste agora, para simplificar as anotações, utilizaremos pouco mais da linguagem matemática. São formalizações extremamente simples, feitas para que o leitor possa acompanhar tranquilamente o desencadear das argumentações e raciocínios.

Tomaremos as notações propostas em Moyes (2009), fazendo eventualmente algumas modificações.

Notemos inicialmente que a distribuição da renda em uma população de n indivíduos pode ser considerada como uma lista:

Onde xi é a renda do indivíduo i, e a média µ(x) é apenas a divisão da soma das rendas individuais da população pelo número de integrantes.

A função de quantil, notada como Q( . ; x), associa à cada fração p da população um nível de renda. De acordo com o valor que admite p, associamos diferentes quantis (decil, quintil, etc.).

Vejamos como se representaria a função quantil em um diagrama onde x = (1, 2, 2, 4, 5, 7):

Um indicador de desigualdade é uma aplicação contínua I que associa à toda distribuição x um número real I(x) representando o grau de desigualdade na distribuição de x.

Entre alguns dos índices de desigualdades mais conhecidos, temos a relação inter-decil (ID), a variância (V), o coeficiente de variação (CV), o coeficiente de Gini (G), e os dois índices de Theil (T1, T2).

Olhemos mais abaixo como são definidos cada um destes índices segundo as notações que propusemos mais acima:

O coeficiente de Gini é o mais popular entre os índices, e ele nada mais é do que uma relação oriunda da curva de Lorenz e pode igualmente ser concebido em continuidade [1].

A titulo ilustrativo, façamos imediatamente o esforço de olhar também os valores que tomam os respectivos índices se tomarmos dados oriundos de amostras populacionais da Alemanha, Canadá, Reino Unido, Estados Unidos, Suécia, Noruega e Finlândia em 2008:

Vemos claramente que de acordo com o índice que adotamos a importância das desigualdades nestas populações muda, assim como a própria ordem em uma escala comparativa entre estes diferentes países.

Se adotarmos o índice de Gini (G), a Finlândia é primeiro, seguido da Suécia e da Noruega; se adotarmos a relação inter-decil (ID), a Noruega é a primeira, seguida da Finlândia e da Suécia.

Se coloca imediatamente a questão procurando saber qual destes índices seria o mais pertinente, ou qual deles apresenta as melhores propriedades?

E é por isso que os estudiosos procuraram conhecer melhor através de uma abordagem axiomática quais índices apresentariam as melhores propriedades: normalização, simetria, princípio das transferências, invariância à escala e invariância por translação [2].

Os índices que verificariam ao melhor este conjunto de propriedades axiomáticas são os índices de Theil e Gini, e os índices de Zenga (2007) e Atkinson (1970).

Para fins ilustrativos, olhemos este quadro identificando os índices segundo o respeito das propriedades axiomáticas:

Os índices da relação inter-decil e quintile share ratio não são conformes a abordagem axiomática.

No entanto, se entre os índices que respeitam as propriedades axiomáticas existe a possibilidade que as desigualdades sejam ordenadas diferentemente e adquiram importância ou significância diferente, ainda mais divergentes se tornam os resultados se analisarmos comparativamente os índices descritos como relativos e os índices absolutos.

Vale notar que nenhum dos índices entre os mais utilizados e mais reputados respeita o axioma de invariância por translação, e isto tem consequências não negligenciáveis no que diz respeito tanto a portabilidade quanto a interpretação dos resultados dos nossos índices, como veremos imediatamente.

Tomemos um exemplo. Imaginemos que em uma população qualquer a renda de todos os indivíduos aumente de 10%. Se adotarmos a perspectiva e índices de mensura relativa, o nível das desigualdades não mudou, se adotarmos a perspectiva e índices de mensura absoluta, houve um aumento das desigualdades.

Imaginemos agora que nesta mesma população a renda de todos tenha aumentado de 1.000,00 dinheiros. Do ponto de vista dos índices relativos, houve diminuição das desigualdades, do ponto de vista dos índices absolutos, os níveis de desigualdade encontram-se inalterados.

É impossível então unicamente através da mensura dos índices de desigualdades obter uma posição clara ou definitiva sobre a portabilidade e interpretação destes índices. Mais uma vez, recorremos a uma escolha normativa da convenção.

Tomemos outro exemplo mais esclarecedor. Como vimos, os estatísticos geralmente dividem as pessoas entre 5 categorias (o quintil, que já mencionamos mais acima).

O hábito é analisar tanto a média quanto a mediana da distribuição de renda entre estes agrupamentos de uma população, e comparar estes dados para que apareça alguma informação interpretativa ou relativa à distribuição de renda entre a população como um todo, e supostamente a dinâmica relativa à distribuição.

Suponhamos que os ganhos e renda média da população mais pobre seja de 12.000,00 dinheiros, e os ganhos da população que se encontra no quintil logo acima, 20.000,00 dinheiros. Isto quer dizer, a diferença de ganhos ou renda entre os dois grupos é de 8.000,00 dinheiros.

Se num futuro próximo a renda dos indivíduo situados no quintil mais elevado progredir a uma escala semelhante ou próxima a esta de todos os outros quintis, isto poderia descrever um aumento das desigualdades segundo as escolhas em matéria de índices que façamos e por mais que a renda de todos tenha progredido positivamente.

Em um mundo sem inflação, se João ganha 10.000,00 dinheiros por ano, e Jorge 20.000,00 dinheiros e passam um ano depois a ganhar, respectivamente, 15.000,00 e 30.000,00 dinheiros, a diferença entre a renda dos dois aumentou de 5.000,00 dinheiros. Para os igualitários isto pode ser um problema entre os mais alarmantes por mais que os dois estejam melhor do antes.

E os economistas não podem dizer, sem cair em descrédito, que a sociedade do primeiro caso de figura está pior do que estaria do segundo caso.

Neste momento, entra então em questão o que chamamos de mensura ética das desigualdades.

A idéia geral como será mostrado mais detalhadamente logo a baixo é que para dado nível idêntico de riqueza, e para indivíduos idênticos e igualmente avessos às desigualdades de renda a utilidade social (função social de utilidade, a soma das funções e preferências individuais) em uma sociedade menos desigual é maior.

A abordagem procura se situar entre os extremos.

Antes de entrar nos detalhes de seus limites metodológicos e teóricos, que não poucos, é possível perceber logo de cara que tal idéia é absurda pelo simples fato de que dependendo do suposto nível de aversão às desigualdades que seja atribuído, e se o objetivo é mesmo igualitário, o melhor para a sociedade (ou para a função de utilidade social) seria que todos tivessem cada vez mais um mesmo determinado nível de renda.

Isto é o tipo de coisa que podem conceber apenas os modelos fundamentados no arquétipo e representação extremamente pobres da economia e dos processos sociais (literalmente analisada e situada representativamente dentro de uma pequena caixa, como na caixa de Edgeworth).

Imaginar que dado o nível de aversão às desigualdades poderíamos conceber uma sociedade onde todos tivessem a mesma renda em si já nos diz muito sobre o método: se trata de algo puramente aleatório.

Isto é uma espécie de simplificação que, por mais que seja útil para a análise teórica elementar, beira a grosseria quando procuramos transpor nela fenômenos sociais complexos de uma sociedade aberta de mercado, ainda mais inadmissível se nos fundamentarmos nisso para "moldar políticas publicas".

Les Périssoires, 1878 (Gustave Caillebotte)

A Mensura Ética das Desigualdades e o Teorema da Impossibilidade

Acabamos de ver que a apreciação das desigualdades é um exercício normativo e que repousa expressamente sobre julgamentos de valor: não existe nenhuma interpretação ou julgamento que deva ser considerado a priori mais respeitável do que outro, e nem ser considerado "verdade científica".

Com efeito, muitos trabalhos se orientaram a uma abordagem indireta que consiste em deduzir indicadores de desigualdades de uma função de bem-estar social [3].

Ou seja, primeiramente estipulamos um observador benevolente verdadeira construção do espírito cuja razão de ser é reunir o que há de mais comum em cada um nós relativamente à maneira como apreciamos o bem-estar social, uma entidade possuindo ela mesma um certo nível de aversão à desigualdade que sintetizaria as aspirações em escala igualitária dos indivíduos, que podem ser mais ou menos acentuadas.

Através deste arquétipo é possível fazer emergir a idéia que uma transferência de recursos compulsória termine por aumentar o bem-estar social do ponto de vista daquele observador benevolente representando a própria sociedade.

Portanto, se os índices derivando dessa construção teórica verificam algumas das condições axiomáticas (normalização, simetria, e princípio das transferências), eles não podem sequer ser considerados índices de mensura das desigualdades (absolutas ou relativas) no sentido próprio do termo, porque não verificam uma ou outra das condições de invariância à escala e invariância por translação.

Para que estas duas propriedades axiomáticas sejam respeitadas é necessário admitir que a função de preferência ou utilidade dos indivíduos — tal qual vista pelo observador benevolente — adquira formas ainda mais específicas. Mesmo assim, decorre que o diagnóstico sobre as desigualdades depende explicitamente das escolhas em matéria de índices, parâmetros, funções e julgamentos de valor que lhes são conferidos.

Por exemplo, conforme for feita a interpretação de nosso observador benevolente da função de utilidade individual, diferentemente serão ordenados e valorados os índices de desigualdade.

E de acordo com os valores atribuídos aos parâmetros do modelo uma população pode ser considerada mais desigual do que outra. Acontecerá exatamente o que aconteceu nos exemplos que citamos pouco mais acima.

Uma forma de tentar contornar o problema da heterogeneidade de propriedades e qualidades axiomáticas dos índices é através do que chamamos critérios de Lorenz, que procuram dar maior credibilidade a uma interpretação qualquer da distribuição de renda ou ranking de ordenação de diferentes distribuições de renda desde que a maioria dos indicadores aponte, consensualmente, neste sentido.

Todavia será fácil encontrar países classificados de maneira oposta em função da escolha de índices adotada: seja pelo critério relativo de Lorenz, seja pelo critério absoluto de Lorenz.

Se os esforços de pesquisa dos autores que se interessaram ao tema têm de verdade alguma importância para o desenvolvimento de parte da análise econômica — aquela parte que interessa os engenheiros sociais e economistas matemáticos –, sua portabilidade é extremamente limitada (ou pelo menos deveria) no plano de elaboração de políticas.

Murray Rothbard e Ludwig Von Mises por exemplo já haviam proposto algo que todos nós, intuitivamente, percebemos imediatamente quando nos deparamos com proposições teóricas tais quais feitas pelo mainstream acadêmico em economia: a impossibilidade de observação por uma terceira pessoa das valorações subjetivas auferidas por outrem.

Mises, particularmente, já havia compreendido que não existe um padrão de mensura que possibilitasse a valoração destas escalas subjetivas. Aliás, para seu discípulo Rothbard, qualquer observação de uma variação objetiva de bem-estar por uma terceira pessoa que avalie uma troca voluntária de mercado é meramente especulativa.

Ela não pode ser "cientificamente racionalizada" pois os custos e benefícios das trocas voluntárias são pessoais, subjetivos e em qualquer escala abstratos, eles não podem ser incorporados em mesuras cardinais, ou serem objeto de uma agregação de valores (Armentano 1988, p. 11).

Se isto é válido para as trocas voluntárias, poderíamos dizer, consequentemente, que seria diferente para as "trocas" involuntárias, exercidas compulsoriamente e com objetivos e fins redistributivos?

Além disso não é simples dissociar a idéia de "bem-estar" e "satisfação pessoal", porque por definição não essa satisfação não pode ser concebida fora da esfera individual. Se a comparação inter-escalas subjetivas é impossível, não é garantido que marginalmente o bem-estar proporcionado por cada unidade suplementar de renda seja igualmente decrescente para todos.

A relação individual ou relação que o indivíduo entretém com o nível de renda dificilmente é a mesma e as funções de bem-estar não podem ser adicionadas em uma função social.

E foi exatamente isso que Kenneth Arrow (1950) nos teria demonstrado muito tempo antes, que não é possível a adição de funções de bem-estar ou constituição satisfatória de uma função de bem-estar social [4].

A idéia geral é que não existe uma função de escolha social indiscutível que permita agregar preferências individuais em preferências sociais.

É impossível que uma escolha social expresse a "vontade geral" respeitando ao mesmo tempo todas as preferências individuais. Para Arrow a única possibilidade que isto ocorra seria que as preferências sociais, ou função de escolha social, fossem compatíveis — ou coincidissem exatamente — com as escolhas de um único indivíduo.

Desenvolvimentos mais recentes tentaram contornar o teorema de Arrow fazendo alusão às questões informacionais. No entanto, para o que diz respeito ao debate das desigualdades, a dependência da agregação de preferências e julgamentos pessoais repousa sobre hipóteses locais e globais de homogeneidade de preferências, algo por si definitivamente insatisfatório.

E mesmo que isso fosse possível não deveria a função de preferências individuais, e consequentemente função de bem-estar social, tomar em consideração mais elementos supostamente fazendo variar as utilidades individuais e sociais? Ou seriam os indivíduos unicamente guiados — via satisfação pessoal — por uma arbitragem entre renda e desigualdade? Até quantos elementos deveríamos incluir nesta função?

Notem que por mais que tudo isto fosse em teoria superável (o que não é o caso), e do ponto de vista normativo, restaria ainda que tanto os métodos de implementação da política fossem perfeitos quanto que a possibilidade de que as escolhas concretas dos políticos refletissem exatamente aquela função incarnando aquilo que o teórico e observador benevolente propõe: algo cuja probabilidade é próxima de 0.

A própria incarnação da função do observador benevolente não é mais do que uma entre milhões de outras, todo o arcabouço teórico exige assimilações, convenções e remendos metodológicos tornando qualquer ambição de precisão meramente especulativa — ainda mais se levarmos em conta os efeitos inesperados ou custo-benefício das políticas.

Existe então, consequentemente, um obstáculo associado à diferença entre as perdas secas engendradas pela fiscalidade dando respaldo à política redistributiva e a perda seca hipotética engendrada pelas diferentes escalas de aversão à desigualdade.

Nada nos permite a priori dizer que as perdas sociais engendradas pela fiscalidade confiscatória e proposta para fins redistributivos é inferior à insatisfação e às perdas supostamente promovidas pelo sentimento de aversão às desigualdades. Mais uma vez fazemos face a uma escolha normativa e puramente ou estritamente política.

Estamos longe da ideia de um aparato tecnocrata capaz de guiar políticas de maneira rigorosamente científica — pelo menos se levarmos em consideração aquilo que os próprios engenheiros sociais descrevem como científico ou ciências duras.

L'Homme au Balcon, Boulevard Haussemann 1880 (Gustave Caillebotte)

Custos do Aparato Redistributivo e Inferência

Talvez o principal problema que decorre disso tudo é que essas teorias dão baixa relevância aos custos de implementação dos mecanismos redistributivos.

Geralmente os dispositivos redistributivos envolvem muito mais do que as simples transferências hipotéticas da mão de uns para outros — menos favorecidos. A mão benevolente que toma de uns e passa para outros termina por consumir boa parte dos recursos durante o realizar da tarefa.

Os desenvolvimentos teóricos do Public Choice podem ajudar a desvendar ou apresentar essas barreiras, esses custos diretos. Eles permitem mostrar que as escolhas políticas estão longe de transmitir qualquer ideal ético e modelo de observador benevolente, mas também demonstrar o que acontece com a subestimação dos custos indiretos, custos de oportunidade ou/e políticos e econômicos de transação envolvendo a elaboração, votação, calibragem e revisão de mecanismos de redistribuição.

Nossos índices de distribuição podem fornecer uma leitura ilustrativa da distribuição de renda em determinada amostra ou período em um plano teórico. Do ponto de vista teórico eles podem efetivamente apresentar propriedades e um potencial descritivo. Mas não se deve portanto confundir o que a teoria pura e o estudo matemático-estatístico da questão ajudam a esclarecer com os eventos que relevam rigorosamente de amostras oriundas de populações e dados do mundo real.

Estes índices oriundos das amostras reais não são verdadeiramente exploráveis de maneira crua e do ponto de vista econômico.

Os economistas não podem através deles realizar conclusões como as desigualdades crescem por determinado motivo, ou dizer precisamente quais as consequências do aumento ou diminuição das desigualdades para determinado grupo.

Ou seja, com estes dados, índices e indicadores os economistas não poderão dizer, por exemplo, que o crescimento econômico engendra inexoravelmente desigualdades sociais, ou que a diminuição das desigualdades entre determinados grupos de indivíduos garante um crescimento econômico mais robusto, ou que a redução ou crescimento das desigualdades influencia o crime, a pobreza ou acesso à saúde e educação e etc.

E é aí que entra mais uma vez a questão da inferência estatística.

Como propôs Dalton (1920, p. 348), não é na distribuição da renda em si que interessa o economista, mas os efeitos e causas destas distribuições sobre outros eventos da sociedade ou sobre o bem-estar:

“For the economist is primarily interested, not in the distribution of income as such, but in the effects of the distribution of income upon the distribution and total amount of economic welfare, which may derived from income. We have to deal, therefore, not merely with one variable, but with two, or possibly more, between which certain functional relations may be presumed to exist. A partial analogy would be found in the problem of measuring the inequality of rainfall in the various districts of large agricultural area. From the point of view of the cultivator, what is important is not rainfall as such, but the effects of rainfall upon the crop which may be raised from the land.”

Além das dificuldade de elaboração de uma estratégia empírica eficiente e que contorne as dificuldades até aqui apresentadas, seria ainda necessário que se minimize os problemas de amostragem, natureza das informações, falta de informações, assimetrias entre os dados, questões relativas aos comportamentos de consumo, evolução dos níveis de vida e oscilações na conjuntura econômica durante o tempo, ou mudanças de política econômica, ou contrôle das disparidades entre mensuras relativas e absolutas — que podem para uma mesma população apresentar conclusões diametralmente opostas –, e inclusão do numero preciso de variáveis pertinentes e etc.

E quando buscamos estudar as desigualdades e eventualmente relacionar conceitos ou procurar explicações assim como acontece em qualquer outro estudo de natureza metodológica compatível se apresentam obstáculos relacionados à endogeneidade ou às diferenças institucionais e mudanças políticas. Por mais que os programas computacionais modernos possam controlar relativamente bem muitas das grandes oscilações e vieses, e os pesquisadores encontrarem estimações com propriedades cada vez mais robustas, aqueles problemas de endogeneidade existem e permanecem em quase todas as análises referentes ao estudo dos fenômenos ligados às desigualdades.

Geralmente as estimações dos índices de desigualdade implicam ou decorrem da função de repartição ou de curva de Lorenz, e de acordo com a possibilidade que essas estimações estejam ou não inseridas em modelos teóricos as classificamos como paramétricas, semi-paramétricas ou não-paramétricas.

Somam-se consequentemente problemas de não-linearidade, complexidade de dados ou problemas e limites impostos pelos questionários utilizados para obtenção dos dados, ou o fato dos dados estarem reagrupados.

Por exemplo, os dados sobre a renda disponível estão sob forma de intervalos e as dispersões dos dados ao interior das classes são extremamente diferentes, temos também questões relacionadas às rendas negativas ou nulas, erros de mensura e sensibilidade das mensuras aos valores extremos, e sobretudo, o mesmo problema de mensura e avaliação intertemporal em uma conjuntura econômica dinâmica a partir de dados estáticos.

Enfim, estes são apenas alguns dos elementos mais importantes que poderiam limitar definitivamente a portabilidade dos estudos nesta área.

A própria utilização destes índices termina, muitas vezes, por comprometer ou corromper a boa teoria econômica.

Como propôs Alain Trannoy (1986, p. 56), é amplamente questionável a utilidade dos índices de desigualdade: se o objetivo é apenas redistribuir, não há muito que estes índices possam fazer para dar um suposto respaldo científico a esta política.

Notas

[1] Para ilustrar o caso em continuidade vejamos as etapas de elaboração dos índices de Gini e Lorenz. Tomemos uma função de repartição simples:

[2] Notemos desta vez U = {1,… k, …N} uma população finita de tamanho N, e yk é a renda do indivíduo k, e y(k) é a estatística de ordem (a “k-gésima” menor renda), e obviamente y = ( y1, ….., yk, ….., yn) é o vetor das rendas desta população. Temos assim, por consequência e apenas para fins ilustrativos, a renda total, a renda média, e o desvio padrão ou variância:

[3] Mais uma vez tomando as notações propostas por Moyes (2009), e realizando algumas modificações:

[4] O teorema da impossibilidade de Arrow faz alusão à quatro condições. O domínio não restrito é a ideia de que todo tipo de preferências individuais deve ser tomado em consideração, mesmo as mais bizarras. A hipótese fraca de Paretoindica a ideia relativa à agregação das preferências, ou seja, se todos os indivíduos da sociedade preferem x à y então a sociedade também prefere x à y. A independência das escolhas alternativas não pertinentes indica que as escolhas feitas e estabelecidas entre duas alternativas (ou possibilidades) não toma em consideração uma terceira alternativa. E finalmente a hipótese de ‘não-ditador’indica que nenhum indivíduo pode tomar uma decisão no lugar de outro. Note que, assim como fez Condorcet, a hipótese de transitividade das escolhas individuais também é fundamental.

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