Desigualdades, Predação e Crescimento Econômico

Mateus Bernardino
Economia e Filosofia
7 min readFeb 28, 2024

Existiria alguma relação entre crescimento económico e desigualdades? Quais os principais mecanismos explicativos dessa relação? O que aponta parte da literatura economica a respeito da relação entre desigualdades e crescimento econômico? O que é a curva de Kuznets? O que dizem os resultados empíricos? Este texto apresenta teorias e resultados.

Le Christ Mort et les Anges, 1864 (Edouard Manet)

Os igualitaristas sugerem que o aumento das desigualdades implicaria uma série de problemas para a comunidade, entre eles um nível menor de crescimento económico e estagnação do progresso social.

O capitalismo seria responsável pelo empobrecimento relativo dos mais pobres e causador de outros males que decorrem das desigualdades que ele promove.

Nosso interesse é compreender melhor essas questões através do estudo teórico e da análise de alguns resultados empíricos. Veremos que do ponto de vista teórico o arcabouço das teorias económicas estabelece na melhor das hipóteses uma relação inconclusiva.

Do ponto de vista da análise estatística um dos principais obstáculos de natureza empírica consiste no controle da endogeneidade, ou fato de que boa parte dessas variáveis estejam inter-relacionadas, como é de se esperar em fenômenos complexos.

Decorre disso a precaução em confirmarmos de forma definitiva as hipóteses de causalidade. Os estudiosos buscam em seus modelos e estratégias empíricas contornar ou atenuar os problemas de inferência através de diversas técnicas estatísticas para poder extrair ao melhor as implicações de seus estudos e resultados, no entanto sem que algum consenso esteja assentado.

Canais Teóricos: Intuições sobre a relação Desigualdade x Crescimento

Do ponto de vista teórico é possível encontrar na literatura teorias corroborando uma relação negativa entre desigualdades e crescimento, mas é igualmente possível encontrar respaldo teórico para o inverso.

Antes disso, as desigualdades podem efetivamente ser um motor ou a consequência e reflexo de crescimento econômico.

A primeira intuição atua em escala microeconômica e envolve a questão de incentivos, a possibilidade de obter ganhos maiores em cenário de incerteza genuína estimula o esforço produtivo, o empreendedorismo e o crescimento económico.

A possibilidade de concentrar renda, guardar os resultados dos lucros e do trabalho atuaria como fator persuasivo para a produção e consequentemente crescimento.

A segunda intuição sobre a relação entre desigualdade e crescimento está intimamente associada à ideia de investimento. Admitindo que maiores taxas de investimento estimulam e impulsionam maiores taxas de crescimento, quanto maior a propensão a poupança maior o incentivo ao progresso económico.

Se as desigualdades traduzem concentração de renda, e se os ricos dispõem de mais recursos para poupança e investimento, desigualdades de renda em t(n-1) indicariam uma tendência ao crescimento em t(n).

Essa ideia segue a hipótese de que a propensão à poupança dos ricos é maior que aquela dos mais pobres — na medida que maior a renda maior a possibilidade de haver recursos disponíveis para poupança. E se uma sociedade mais desigual apresenta maiores taxas de poupança e maior potencial de investimento e crescimento económico.

A terceira intuição decorre dessa ideia e sugere que investimentos importantes em estrutura, grandes projetos industriais e inovações envolvem gastos específicos com ativos inamovíveis ou indivisíveis e estão vinculados a um risco maior. Para assumir esse risco é necessário uma alta capacidade de poupança, e a concentração de renda seria apreciativo para esses investimentos — e teriam assim impacto sobre o crescimento.

A Curva de Kuznets e Estágios de Desenvolvimento

Um dos trabalhos teóricos mais conhecidos no campo de estudo da relação entre o crescimento económico e níveis de desigualdade é o artigo de Simon Kuznets (1955), onde o autor sugere uma explicação bastante interessante sobre o tema.

Para o autor em uma perspectiva dinâmica nos primeiros estágios de desenvolvimento económico em uma economia agrária ou subdesenvolvida surge acumulação-capacidade de poupança e existe a necessidade de realização de maciços investimentos em infraestruturas e capital físico.

Por isso, nesse estágio de desenvolvimento há uma tendência de crescimento das desigualdades, notadamente em benefício das classes detentoras dos meios de investimento e poupança.

Se tomarmos o caso das economias desenvolvidas, por outro lado, na medida que essa economia se desenvolve os investimentos em capital humano são relativamente maiores e colaboram mais ao crescimento do produto, e isso reduz as desigualdades de renda de forma que a relação entre desigualdades e crescimento pode ser representada por uma curva em U invertida.

Os trabalhadores se deslocam do campo para as cidades e o trabalho rural é substituído pelo trabalho em indústrias e serviços.

Levando em consideração o estudo de caso americano, Kuznets sugere que o progresso social conduziria naturalmente a redução das desigualdades pelo mecanismo do crescimento econômico, ou manutenção de níveis relativamente estáveis depois do período de desenvolvimento. Falamos em uma convergência.

Desigualdades tenderiam a se traduzir por melhores oportunidades e capacidade de investimento, e por consequência, um estímulo ao crescimento económico. Períodos de forte crescimento poderiam engendrar desigualdades ao mesmo tempo em que o desenvolvimento trazido pelo crescimento terminaria por atenua-las, principalmente pelo aumento da produtividade e investimentos em capital humano.

Essa é a ideia geral ou hipótese que diversos autores modernos consideram demasiadamente forte, entre eles Thomas Piketty (2005), porque a relação entre crescimento e desigualdades não é forçosamente compreendida e o crescimento económico engendrando mudanças na estrutura produtiva pode conviver com desigualdades ou não é suficiente para explicar ou implicar a redução das desigualdades.

A fiscalidade redistributiva, planos econômicos, abertura comercial, poupança, níveis de investimento, nível de sindicalização ou políticas monetárias configuram mecanismos que também explicam variações na distribuição de renda ou crescimento/redução das desigualdades.

Existem diversos canais teóricos ou explicações possíveis associando a desigualdade e o crescimento.

Predação, Crescimento e Desigualdades

Inyoung Shin (2012) sugere dois casos de grupos de países para estudar a relação entre desigualdades e crescimento: os países do leste da Ásia e América do Sul e os Estados Unidos e a França. Sua teoria se baseia no modelo canónico de crescimento e sugere também que teremos impactos diferentes para desigualdades de acordo com os estágios de desenvolvimento económico dos países.

Da mesma forma que sugeriu Robert Barro (2000), Schin (2012) encontra que quanto mais os países são pobres mais as desigualdades podem atrapalhar o crescimento económico, ao passo que em economias desenvolvidas as desigualdades podem ser um motor para o crescimento.

Nos últimos 30 anos, entre 1980 e 2010, os países do leste asiático apresentaram robustas taxas de crescimento economico associadas a taxas decrescentes de desigualdades. Os países da américa do sul tiveram um ritmo baixo de crescimento e agravamento das desigualdades. Se tomássemos apenas esses dois grupos de países consideraríamos que a relação entre as desigualdades e o crescimento é negativa.

Em países em desenvolvimento as pessoas mais pobres enfrentariam maiores obstáculos para acesso ao mercado de crédito e para realização de investimentos, paralelamente as famílias não conseguem facilmente inserção no mercado formal e os níveis de produtividade do capital humano nesses países são mais baixos. Essas desigualdades fomentam instabilidades políticas e sociais e consequentemente um ambiente de incertezas, e tudo isso implica em comprometimento das taxas de crescimento.

No caso dos Estados Unidos e França, ambos apresentam taxas de crescimento positivas associadas a um crescimento das desigualdades, os dados americanos com índices mais importantes. Tomando o caso desses dois países, presumiríamos que a relação entre crescimento e desigualdades é positiva.

A relação positiva em países desenvolvidos se explicaria pelas maiores taxas de poupança dos mais ricos em relação aos mais pobres, e os programas de redistribuição diminuiriam o incentivo ao trabalho e aos investimentos ao mesmo tempo em que diminuiriam a poupança de maneira geral, o que repercute negativamente nos níveis de crescimento.

Schin (2012)

Um resultado interessante do modelo de Schin (2012) diz respeito aos efeitos da predação sobre os níveis de desigualdades em termos dos estágios de desenvolvimento. De acordo com os resultados do modelo a tributação progressiva tem sucesso em reduzir os níveis de desigualdades apenas nos países desenvolvidos ou próximos do estágio estacionário.

Consequentemente, o modelo sugere que nos países em desenvolvimento um nível baixo de progressividade em termos tributários pode ter impacto positivo uma tendência de redução nas desigualdades, na medida que a predação impacta sobre os incentivos e crescimento.

Em economias em desenvolvimento ou longe do estágio estacionário o número de famílias mais pobres é relativamente maior, e na medida que a tributação repercute efeitos negativos nos níveis de crescimento econômico uma maior progressividade tributária atrapalha o crescimento e não reduziria duravelmente as desigualdades.

Por outro lado, nas economias desenvolvidas o nível de crescimento é menor, o número de famílias ricas em termos de famílias de baixa renda é maior, logo os efeitos da tributação progressiva podem ao mesmo tempo impactar nas desigualdades sem comprometer em crescimento.

Ou seja, em economias em desenvolvimento para atingir objetivo em matéria fiscal estimular taxas altas de crescimento concomitante a redução de desigualdades isso passa pela baixa progressividade.

Conclusão: Teorias Recentes e Empiria Inconclusiva

Ainda no campo teórico temos principalmente quatro grandes explicações ou pistas para enriquecer ou embaralhar o entendimento da relação desigualdade crescimento, ou variáveis e questões que influenciam a complexa relação:

  • a explicação a partir das imperfeições do mercado de crédito (assimetrias informacionais, instituições frágeis e produtividade do investimento…),
  • a explicação político-econômica (eleitor mediano, decisões em matéria de política econômica…),
  • explicações sócio-políticas (violência, crime, instabilidade institucional…)
  • explicações keynesianas (taxas de poupança, propensão a consumir etc.).

A literatura empírica fornece alguns canais para responder a relação daquilo que as teorias buscam entender, mesmo se não existe consenso e muito menos unanimidade para evidências comprovando a relação entre desigualdades (sociais ou de renda) e as taxas de crescimento econômico.

A tabela abaixo apresenta um recolho dos principais resultados e trabalhos de uma literatura recente sobre a relação.

Schin 2012

Ou seja, a literatura empírica nos sugere resultados que podem variar de forma não negligenciável segundo o arcabouço teórico, a composição dos países, escolha dos índices, amostras das populações analisadas, o período, características de outras variáveis dos países ou populações, o método de coleta de dados, ou ainda, segundo a estratégia empírica adotada.

--

--