Dos Preceitos Morais Fundamentando o Ideal de Propriedade: John Locke no Segundo Tratado sobre o Governo Civil (1690)

A Lei Natural e o Contrato Social

Mateus Bernardino
Economia e Filosofia
7 min readFeb 20, 2016

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Gustave Caillebotte: Les Jardiniers (1877)

É em John Locke que encontramos os primeiros e talvez mais sólidos embasamentos filosóficos edificando a ética da propriedade. Locke foi um dos pioneiros a transpor de maneira satisfatória um obstáculo lógico e um desafio ético considerável, algo que consistia na exposição do caráter moralmente e logicamente não contraditório da propriedade.

Na verdade, o dilema ético da propriedade assemelharia-se a um paradoxo. Se as terras representam naturalmente um bem comum e uma dádiva oferecida pelos deuses aos homens e de maneira universal, para sua conservação e pelo bem da harmonia social, como justificar a propriedade como dispositivo natural e uma instituição eticamente legítima ou legitimável? Se a propriedade não for realmente um dispositivo natural e instituição legítima e universal da humanidade, a apropriação privada assemelharia-se a algo moralmente repreensível, a algo ilegítimo pois, se todos têm o direito de reclamar a posse sobre algo, isto remeteria naturalmente a um estado de coisas ou ordem social onde não há qualquer legitimidade moral para um regime privado de apropriação. Ou seja, se todos possuem algo, ninguém privadamente pode possuir nada.

No entanto, como podemos constatar em Locke, existe um dispositivo de entendimento permitindo compreender por que razão não seria antiético que um bem (a Terra) atribuído de maneira geral (por Deus) a toda a espécie humana possa ter suas partes possuídas por diversos e diferentes homens e sem que a legitimidade em aquisição passe necessariamente por qualquer pré-requisito de acordo formal recíproco ou pelo reconhecimento universal do restante dos demais.

Partindo do paradigma e raciocínio no estado natural, este dispositivo de entendimento consiste no prolongamento moralmente coerente da ética individual da autopropriedade até a apropriação original dos objetos apropriáveis e a harmonia da ordem social fundamentada na propriedade.

O estado natural, segundo Locke, remete á situação onde os indivíduos são perfeitamente livres para empreender suas ações e dispor de seus bens e de si mesmos como bem queiram, nos limites da lei natural e sem ter de pedir qualquer opinião, auxílio ou autorização a quem quer que seja. A lei natural, evidentemente, remete á idéia de que ninguém pode violar ou prejudicar os semelhantes em seus bens, sua saúde e sua liberdade. No estado natural, aliás, para fazer prevalecer a lei natural, os indivíduos estão livres de fazer justiça proporcional contra agressores e transgressores da lei divina.

A propriedade surge da lei natural e adquire status de direito natural inalienável e anterior a qualquer reconhecimento formalizável. Os homens estarão sempre submetidos á lei natural e possuem direitos naturais dados por Deus, são normas que se impõem e que são esclarecidas através do emprego da razão pura. Em primeiro lugar, a apropriação privada constitui uma condição incontornável para a manutenção da própria vida. A propriedade decorre de um valor inquestionável que representa a auto-propriedade. Do ponto de vista estritamente ético e visando demonstrar a coerência da teoria lockeana da propriedade em toda sua extensão, assim como são naturalmente morais e inquestionáveis os valores associados á autopropriedade, são também igualmente morais os valores associados á apropriação original e á generalização do instituto da propriedade.

Seja pela generalização espontânea da apropriação, seja pela inscrição da lei natural num contrato social fundamentando a sociedade civil — ou sociedade política, a ordem social fundada na propriedade representa em princípio os mesmos valores compatíveis com a ética divinamente natural. Assim como não haveria vida fora da tirania onde não se respeite a autopropriedade, ninguém poderia, consequentemente, imaginar que seja moral o ato de expropriar os valores criados por apropriadores originais através do trabalho e, da mesma forma, não poderia ser concebível falar em harmonia social, perpetuação humana ou sociedade onde vigorasse a ordem da espoliação geral e perpétua.

Por um lado, a não necessidade de reconhecimento universal ou aceitação geral e formalizada dos atos de apropriação decorre da natureza autocontraditória e anti-humanista de tal preceito para com a lei natural. Ou seja, tal preceito parte do princípio que a necessidade de reconhecimento representaria um obstáculo inviável á própria auto-conservação individual e por consequência á própria ética natural. Por colocar em risco a própria humanidade como um todo, tal proposta violaria então a ética da lei natural indicando que os homens foram abençoados por Deus e providos pelas leis divinas, e que a Terra não seria mais um ambiente que lhes foi delegado para sua conservação e proliferação.

Por outro lado, a mesma razão que concebe natureza moral á autopropriedade, á apropriação original e á ordem social fundamentada na propriedade concebe também, intrinsecamente, e de maneira igualmente moral, os limites circunscrevendo as esferas naturais de apropriação e a extensão dos objetos apropriáveis. O princípio moral que delimita a extensão material de acumulação decorre da natural incapacidade de um homem apropriar-se legitimamente (ou de maneira eticamente justificável) de todas as coisas e objetos apropriáveis, ao menos sem violar os direitos alheios de propriedade e, do ponto de vista da pura lógica racional, sem colocar em questão a própria autoperpetuação humana (e por consequência a natureza ética da lei natural). Isto aliás corrobora a natureza moral, divinamente universal e humanista da propriedade. Eis então a Proviso Lockeana.

Antes de ser uma simples medida de prudência indicando que a extensão legítima (ética) de apropriação reside no trabalho, no respeito das necessidades alheias e na medida da utilidade retirada dos bens apropriáveis; a proviso está diretamente associada á própria condição humana e, por consequência, á própria lei da razão, á lei natural e divina. Não existe a fortiori qualquer limite concebível para acumulação de bens materiais e isto não representa qualquer empecilho de ordem moral.

Na medida em que, mesmo no estado natural, se desenvolvem os dispositivos contratuais e que a sociedade fundada na propriedade tende á cooperação social generalizada, se banalizam as transações e o surgimento natural da moeda e da economia monetária. A moeda permite a acumulação sem desperdício por sua natureza de conservação de valor, e favorece o enriquecimento em total respeito para com as esferas eticamente seguras de circunscrição de apropriação. Não há, então, qualquer contradição moral na acumulação monetária oriunda da exploração da propriedade. Os limites para a acumulação não encontram extensão concebível, e nem a acumulação viola os preceitos morais previstos na proviso.

Em Locke, a saída do estado natural decorre, ao mesmo tempo, tanto dos inconvenientes que a permanência no estado natural representam quanto das consequências que a eficiência superior gerada pela ordem social fundada na propriedade acarretam através de seus dispositivos valorizando mecanismos voluntários de cooperação.

Por um lado, e ao contrário do que sugeriu Thomas Hobbes, embora apresente inconvenientes consideráveis, o estado natural lockeano não remete a um estado de coisas e ordem social que degenera forçosamente no caos social. Os inconvenientes do estado natural remetem sobretudo á necessidade de poder se submeter a um juiz imparcial, á necessidade de associar-se livremente e de se garantir segurança jurídica e institucional, capacidade de resolver conflitos em plena compatibilidade para com a justiça. Justiça aqui tomando como referencial a execução da sentença em conformidade para com a lei natural-divina. Existem excessos associáveis á generalização da justiça por si mesmo, notadamente parcialidade, e uma dificuldade comprometedora de se fazer respeitar a lei natural e executar sentenças convenientemente, e mesmo em despeito do prevalecimento da lei natural ainda pode prevalecer uma ameaça de disputas infindáveis entre grupos de indivíduos em ausência de uma terceira parte imparcial, e a convivência de sistemas de justiça e sentença se diferenciando na margem e incapazes de render a justiça compatível com as aspirações da lei divina: não há um único corpo bem preciso de normas e nem um organismo reagrupando meios de fazê-las aplicar.

Por outro lado, ao promover uma ordem social baseada na economia monetária, no progresso das técnicas comerciais, contratuais e organizacionais; a propriedade termina culminando no enriquecimento e na existência de desigualdades progressivamente requerendo dispositivos institucionais cada vez mais desenvolvidos e seguros para a manutenção do seu próprio prevalecimento. Visto que os níveis de vida nesta ordem social não evoluirão em perfeita similitude, e por mais que, de maneira geral, a condição humana evolua até patamares inimagináveis, paira no ambiente social uma ameaça totalitária sobre a propriedade e nasce um imperativo de fundação da sociedade civil no contrato social. Sair do estado natural significa deixar de fazer justiça por si e submeter-se ás leis edificadas, a um juiz imparcial e a um poder superior capaz de fazer valer e prevalecer a lei natural. E isto se dá através dos indivíduos e para o próprio benefício dos proprietários, pois os mesmos indivíduos são particularmente observadores imperfeitos da equidade e da justiça. Surge o contrato social resguardando proprietários e tirando os homens do estado natural. Emerge a sociedade política. Animais políticos por natureza, os homens são conduzidos a edificar organismos e mecanismos institucionais salvaguardando o quanto melhor as mais importantes instituições sociais: suas vidas, suas liberdades e seus bens — ou simplesmente suas propriedades.

Não obstante, se a teoria de lockeana explica de maneira perfeitamente coerente o surgimento da ordem da propriedade e a natureza eticamente absoluta da mesma, a teoria deixa margens para questionamentos envolvendo o próprio ato de fundação da sociedade política.

Antes disso, quais organismos associativos prevaleceriam no estado natural e como se articularia o funcionamento desses organismos, quais os limites éticos desses meios de execução da justiça natural? Como poderíamos enriquecer a descrição do mecanismo de passagem à sociedade civil através de um maior esclarecimento das inconsistências e inconvenientes presentes no estado natural?

A teoria do contrato social de Locke liga aparentemente apenas os indivíduos que concluem entre si o tal contrato social. Ou seja, se a lei natural e a ética da propriedade antecedem qualquer organismo formal de sociedade política — como demonstra o caso do hipotético estado natural –, como interpretar a escolha dos indivíduos se resguardando do ingresso na sociedade civil? Se a sociedade civil se estabelece voluntariamente, como interpretar eticamente as decisões estratégicas de não-ingresso ou volta ao estado natural? Como resguardar direitos absolutos de uma minoria em plena conformidade para com a escolha de uma maioria de não ingressar a sociedade política e de não reconhecer a lei natural? O bem público é um álibi moral suficiente ou necessário á decisão de adesão compulsória ao contrato social? Qual a natureza moral do contrato envolvendo a participação compulsória de indivíduos simplesmente preferindo permanecer no estado natural? Essas são algumas das questões que a ética libertária inspirada nos mesmos preceitos prevalecendo na ética original da propriedade buscará levantar e responder.

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