Equidade e Desigualdade

Mateus Bernardino
Economia e Filosofia
21 min readJan 19, 2022

Existe alguma diferença entre equidade e igualdade? Qual importância desses conceitos para entendimento das desigualdades? Qual importância da equidade para o funcionamento da economia de mercado e por que o escravismo é inviável em um sistema capitalista de produção?

A partir do levantamento de algumas questões institucionais e estudo da diferença entre igualdade e equidade este trecho tem por objetivo alicerçar a análise das desigualdades e sua associação do capitalismo de livre mercado.

Torse de Femme, 1876 (Pierre Renoir)

Ao falar em desigualdades institucionalizadas ou desigualdades oriundas de um quadro normativo particular procuramos fazer alusão à diferença de tratamento perante a autoridade ou a lei, da dissociação ou distinção da pena segundo status, da exclusão ou restrição do direito natural à liberdade, à determinação da justiça em função de classe, aos privilégios de grupo, raça, origem ou credo que adquirem via decreto normativo caráter explícito, incontornável e inamovível.

Fazemos alusão à idéia de equidade (æquitas, para os romanos), ao princípio de isonomia (ἰσονομία, para os gregos) ou simplesmente igualdade perante a lei: princípios caros, em particular, aos liberais.

Essas noções estão diretamente associadas à idéia de soberania individual, ao ideal de império da lei, de estado democrático de direito e democracia liberal. Ou seja, princípios garantindo que os indivíduos são tratados e julgados principalmente segundo seus atos e não segundo seus status pelo monopólio normativo promovido em um estado de direito.

As desigualdades institucionais podem ser concebidas como desigualdades ex-lege, uma limitação importante da extensão da liberdade associativa e política ou a concessão de privilégios legais e diferenças em matéria de tratamento para determinados grupos.Temos uma exclusão ou limitação da liberdade que termina por cercear os objetivos, decisões e ações empreendidas por indivíduos naturalmente iguais no sentido de igualdade em direito à liberdade.

Em decorrência disso segue claramente uma deturpação de uma própria ideia consolidade de justiçadar a cada um o que lhe é devido, punir o criminoso de acordo com seu crime.

A corrupção da lei natural seria nesse sentido uma forma de encorajamento e estímulo a generalização da imoralidade, haja visto os obstáculos que essas desigualdades institucionais engendram para identificação do mérito e da virtude diretamente associados a conduta individual. Privilégios de classe são benefícios sem qualquer contrapartida respaldada em comportamento ancorado no mérito, eles acobertam condutas desviantes de indivíduos e grupos além de poder deixar impunes aqueles que transgridem a lei natural.

Essas desigualdades institucionais não são alheias e nem deixam de ter impacto sobre as desigualdades materiais. Poderíamos citar, como exemplos ilustrativos, as consequências materiais engendradas pelo regime de escravidão, ou pelos privilégios legais conferidos à nobreza ou a uma classe política durante boa parte da Antiguidade, da Idade Média e Moderna, ou a falta de liberdade associativa e liberdade política dos regimes totalitários contemporâneos – que muitas vezes transformavam automaticamente opositores dos regimes em criminosos de estado, quando não os submetiam à servidão ou à pena de morte –, ou ainda, a todos os impedimentos regulamentários conferindo privilégios legais (ou mesmo materiais) como o protecionismo, mercados públicos, toda barreira à entrada nos mercados ou sistemas de cotas em função de religião, raça, ou nível de renda.

A idéia que será desenvolvida aqui é de que a equidade no sentido mais puro do termo – igualdade perante a lei, ausência de privilégios legais – foi desenvolvida e aprimorada durante o surgimento e desenvolvimento do capitalismo. Além de um traço histórico indissociável é um elemento fundamental para o entendimento do seu desenvolvimento e pleno funcionamento.

Pont Neuf, 1872 (Pierre Renoir)

Equidade e Igualdade Institucionalizada

Não é falso que a acumulação capitalista pode sobreviver ou conviver em paralelo a regimes particularmente autoritários, como no caso do Chile durante a guerra fria ou a China de nossos dias.

Também não é falso que seja possível que privilégios legais como regulamentações protegendo monopólios ou dificultando o livre-comércio possam perdurar em países onde permanecem relativamente bem desenvolvidas as instituições da propriedade e a própria acumulação capitalista.

No entanto o importante a ser retido aqui é que estes são evidentemente tanto em princípio quanto em consequência desvios e um distanciamento do quadro normativo das instituições da liberdade, seja nos ideais e preceitos tirados das contribuições de diversos autores e filósofos seja das normas aperfeiçoadas ao longo de várias gerações durante a historia da humanidade.

Enquanto nas sociedades não-capitalistas ou protocapitalistas a iniqüidade adquire com frequência caráter perpétuo, nas sociedades capitalistas modernas o status social foi comparativamente tendo cada vez menor importância. A história do capitalismo é a história da supremacia de uma forma de organização social onde é possível e mais estendida a mobilidade social.

Do ponto de vista histórico, a antiguidade e quase toda a idade média têm por característica principal uma estratificação social e imobilidade ex lege sem comparativos com as sociedades capitalistas modernas ou emergentes. Nunca na história da humanidade uma forma de organização social e institucional permitiu e favoreceu tanto a evolução e mobilidade de indivíduos entre territórios e dentro das diferentes classes sociais, seja qual for a intepretação fornecida a este conceito.

Equidade e Igualdade

Como lembrou Friedrich A. Hayek (1944) é indiscutível que, embora isto possa parecer paradoxal, a equidade (igualdade formal diante da lei) está em perfeita contradição e é claramente incompatível com qualquer esforço governamental tendendo à execução ou realização de uma igualdade material ou concreta entre os homens.

Isto é uma evidência institucional que nos parece incontestável: toda política que procure colocar em prática um ideal de justiça distributiva deve conduzir diretamente à destruição da regra de igualdade perante a lei.

Quando privilegiamos progressivamente mecanismos de redistribuição não podemos fazê-lo sem violar o direito de alguns em detrimento de outros. Por mais que toda e qualquer atividade dos governos seja por essência redistributiva, a diferença crucial permanecerá nas prerrogativas e prioridades da organização estatal.

Notem que isto que descrevemos é que ou uma norma favorece isonomicamente todos e nesse sentido não adquire qualquer natureza de injustiça é diferente daquela que procura beneficiar determinados grupos.

Imaginem que através de uma taxa de 0,1% sobre todas as transações, por exemplo, todos os sujeitos de uma comunidade beneficiem de um mínimo vital de garantia seja fomentando instituições indiretamente seja diretamente via transferencias para todos impedindo que definhem de frio, fome ou abandono. Imaginem que através de uma política de abatimentos fiscais sobre obras de filantropia e caridade sejam instituídos recursos e meios destinados à garantia de um mínimo vital aos desmunidos.

Notem que aqui não estamos falando de medidas buscando direcionar recursos obtidos de todos (Flat Tax, imposto sobre transações, indiretos) ou implementação de meios potencialmente realizáveis por todos (associações, institutos, igreja, asilos) para ou em benefício de alguns (desabrigados, sem domicílios fixo, órfãos, idosos, etc.), mas da extração de recursos de alguns (mais ricos, grandes empresas) para destiná-los a outros (em função de renda) para fins estritamente igualitários.

De um lado temos um respeito estrito da isonomia, autonomia associativa, natureza universal de prestações sem qualquer critério de renda, credo, classe, raça, pertencimento ou origem, e de outro mecanismos estatais de redistribuição da renda de uns para beneficio de outros por qualquer um desses critérios.

Para obter de pessoas diferentes resultados idênticos, dizia Hayek, é preciso tratá-los diferentemente. Este paradoxo apontado por Hayek já era conhecido e apontado por outros autores do século XIX, como é o caso do economista francês Paul Laffitte (1864-1949), que já anunciava em sua obra Le paradoxe de l’égalité (1887) que a definição do igualitarismo – corrupção do ideal de igualdade – é exatamente uma idéia descrevendo que, ao procurar a igualdade, nós acabamos a perdendo, ao procurar fazê-la aumentar, nós a fazemos desaparecer.

A igualdade perante a lei, incontestavelmente, não impede desigualdades materiais e econômicas, mas estas desigualdades materiais não afetam ex lege e exclusivamente uma categoria determinada de pessoas, e nem são direcionadas a um grupo particular, todos estão submetidos a ela em alguma escala e risco.

A propriedade não é institucionalmente interdita a nenhum grupo em particular, como era o caso durante praticamente toda a história da humanidade antecedendo os tempos modernos e o capitalismo, particularmente depois da abolição da escravidão.

A equidade é uma norma e um direito que não concede privilégio material: o direito não prevê condições de raça, religião, língua ou credo para garantir a livre aquisição, transferência e acumulação de propriedade. Pelo contrário, o ideal de equidade foi um real motor de redução das desigualdades materiais [1].

Equidade, Coletivismo e Democracia

Se um aspecto essencial do capitalismo de livre mercado (redundância, pois em sua essência o capitalismo é o sistema de livre mercado) é a ausência de desigualdades institucionalizadas, notadamente pelo reconhecimento do direito e da liberdade individual, estas desigualdades são indissociáveis das sociedades ultrapassadas, sociedades menos desenvolvidas e, particularmente, das sociedades de cunho coletivista, que instauram inevitavelmente privilégios de classe, raça, origem ou posicionamento e pertencimento a determinado grupo político [2].

Tal era segundo a leitura que fazemos de Von Mises (1961) a regra e a situação do mundo antes de se desenvolverem e se aperfeiçoarem as instituições da liberdade, da propriedade privada e da economia de mercado.

Tal foi a consequência das sociedades que as menosprezaram. O capitalismo enquanto regime produtivo e organização social transformou radicalmente a organização política e econômica da humanidade ao promover a generalização das instituições da liberdade: ele promoveu o fim das desigualdades institucionalizadas, o fim das inequidades.

Para Mises, sobre um regime da propriedade privada e em economia de mercado o poder em última instância se encontra nas mãos dos consumidores: eles decidem, compram, deixam de comprar, trocam, escolhem a qualidade e o volume, eles exercem plenamente e em grande paridade a igualdade em matéria de poder decisional que lhes é conferida pela lei – da propriedade – e pelo estado de direito. Notem que aqui fazemos alusão ao poder decisional e não ao poder de compra, ou poder de barganha.

O governo representativo (representative government) e a equidade são corolários políticos da supremacia dos consumidores sobre o mercado.

O mesmo processo histórico que substituiu o modo de produção capitalista aos métodos proto ou pré-capitalistas substituiu o governo popular – a democracia e o estado de direito – ao absolutismo e às formas de governo da minoria. Não se trata, no entanto, de uma democracia absoluta, ou fé cega no sufrágio universal: isto seria crença em políticos demagogos.

A equidade não pode submeter os direitos inalienáveis às pulsões da maioria, pois ela seria a única forma de igualdade não conduzindo sistematicamente ao desrespeito do direito individual e à espoliação. Trata-se de um fenômeno contemporâneo, quase concomitante e indissociável do advento do regime capitalista de produção e desenvolvimento da democracia liberal.

Por mais que equidade tenha sido idealizada há muito tempo [3], ela foi verdadeiramente aperfeiçoada e generalizada enquanto instituição apenas recentemente, e ainda permanecerá interminavelmente como um ideal a ser alcançado haja visto a tendência à concessão de privilégios legais em democracias representativas modernas.

Foi possível notar a presença deste ideal de equidade e fim da institucionalização de privilégios nos movimentos abolicionistas modernos, notadamente através dos trabalhos de filósofos e economistas do século XVIII e XIX. Durante o período do iluminismo o nascimento conjunto do liberalismo, da economia política, do romantismo e do movimento abolicionista nos diz muito a respeito da importância que este ideal de equidade representa não somente do ponto de vista da ética capitalista mas também do ponto de vista do funcionamento da economia de mercado fundamentada na propriedade privada.

Les Grandes Baigneuses, 1887 (Pierre Renoir)

Escravismo e Capitalismo

Trabalhos como os dos economistas fisiocratas franceses no século XVIII, cujas idéias e posições relativas ao comércio, à produção e ao direito natural dos homens os conduziam a considerar o escravismo não somente como um sistema moralmente abominável mas, sobretudo, a lho constatar economicamente corrompido e insustentável em uma sociedade pré-industrial.

A instituição do escravismo violava antes de qualquer coisa todas as leis da ordem e da moral e o direito natural, mas era também altamente contraproducente. Uma ilustração pertinente é aquela de Anne Robert Jacques Turgot (1727-1781), para ele (1808, p. 21-23) o escravismo além de moralmente repreensível era um sistema econômico funcionando forçosamente sobre níveis de produtividade menos elevados por causa do caráter forçado da relação produtiva [4].

A conclusão de Turgot não era muito diferente do que já havia anunciado Dupont de Nemours em 1771, economista francês descrevendo igualmente que o escravismo era tão imoral quanto improdutivo, e que o regime se mantinha, entre outros motivos, graças à ilusão amplamente difundida de que esta forma de relação e organização produtiva garantiria economias na produção, e que por isso seria economicamente superior [5].

O trabalho livre e mais produtivo que necessitavam as industrias nascentes e os comerciantes – e o sistema capitalista de produção em larga escala – não poderia se manter sobre um regime escravista: a busca abolicionista pelo fim do escravismo e a produção capitalista demandavam progressivamente o reconhecimento da equidade entre os homens [6].

As cidades e os campos precisavam empregar cada vez mais uma mão de obra livre. A injustiça era companheira da ineficiência econômica, a eficiência econômica é promotora da dinâmica inovadora em matéria institucional.

O historiador socialista Fernand Braudel (1987) descrevia que as instituições mais capitalistas e o desenvolvimento das técnicas mais avançadas de comércio e tecnologias de capitalização permitiam, por exemplo, explicar o mais rápido desenvolvimento europeu relativamente ao resto do mundo nos séculos XVII, XVIII e XIX [7].

A divisão do trabalho e eficiência nos processos produtivos repousa em grande parte no reconhecimento formal da autonomia individual e no regime de responsabilização: dificilmente não conciliável ou independente da equidade conferida ex lege [8].

Para o sociólogo e economista alemão Max Weber (1904), o processo capitalista de produção depende da capacidade de contabilização ou expressão contábil e metódica dos recursos empregados – humanos e materiais.

O escravismo dificulta o reconhecimento das diferenças em matéria de produtividade, além de não remunerar adequadamente e em função dos ganhos auferidos pelos fatores de produção — nesse caso a mão de obra. E isto engendra problemas de incentivos tornando o regime de escravidão insustentável economicamente em uma sociedade industrial.

Existe ainda esse empecilho estritamente contábil, uma falsificação dos sinais norteando o empreendedorismo na medida que a mão de obra escrava implica má avaliação de custos de produção — distanciamento do valor real da mão de obra de sua produtividade.

Além disso, processos produtivos temporalmente curtos, territorialmente móveis e tecnicamente mais desenvolvidos encontram severos obstáculos sob esse regime de produção.

Os custos de manutenção, custos de transação e custos de alocação da mão de obra estão inteiramente sob responsabilidade dos proprietários, em vez de estarem diluídos entre as duas partes da relação empregatícia ou serem amortizados na medida das escolhas e alocações solicitadas nos mercados.

A própria optimização na alocação destes recursos deve dar certa autonomia decisional complementada pelo regime de responsabilização. Ambos compatíveis com o reconhecimento formal do trabalho livre.

Por um lado, o escravo não tem voz ativa, ele não é formalmente proprietário de si, não é factualmente responsável em última instância por seus gestos, sua responsabilização é limitada e, em caso de ineficiência ou disfunções na cadeia produtiva, o proprietário de escravos deve arbitrar entre a venda ou cessão do ativo (e eventual perda material do investimento realizado), ou punir o escravo e causar igualmente a si próprio uma perda associada aos danos físicos auferidos ao ser humano.

O escravo ou o servo não é plenamente responsabilizável no sentido que seus atos estão forçosamente associados a seus mestres, haja visto que eles não são independentes.

A divisão do trabalho não consegue se desenvolver e atingir seus estágios mais avançados em tal regime. E no que diz respeito à autonomia relativa, ela é fundamental para a cadeia de incentivos regendo a produção e se distingue dos arranjos onde prevalece a aquisição pela força e pela coerção.

A servidão diferentemente da cooperação voluntária degenera a responsabilização plena e impede a identificação da realização de tarefas com objetivos puramente pessoais e profissionais.

A perpétua aquisição pela força é nada mais do que o mantimento formal de um regime institucional violando incondicionalmente a autonomia individual, é o desrespeito continuo do direito individual, é institucionalização da violência e garantia de iniquidade.

Ou seja, é exatamente o inverso do que ocorreria em um sistema institucional puramente capitalista.

A aquisição pela força, nos explicou Weber, é traço e característica de quase todas as civilizações atrasadas, lugares relativamente distantes da realidade dos tempos modernos ou contemporâneos que são as regiões do Ocidente onde se conheceu uma forma particular de capitalismo: esta da organização racional do trabalho livre.

O cálculo exato dos processos produtivos alicerça a organização racional do trabalho e, nos diz Weber, se desenvolve plenamente e é fundamentado no trabalho livre. Esta é, para Weber, a distinção fundamental do capitalismo [9].

O trabalho livre, a organização racional do trabalho, a independência em propriedade das empresas e a contabilidade racional podem ser associadas à norma de equidade: e a responsabilização individual é um elemento integrante importantíssimo.

Isto nos parece claro quando pensamos no que houve em regimes totalitários ou onde inexiste verdadeiramente e plenamente a instituição propriedade: a responsabilização em última instância em um regime de propriedade coletiva é explicitamente aleatória, vaga, ou inexistente.

A idéia de que os indivíduos possam realizar-se em suas profissões e guardar para si os méritos de seus esforços é parte da ética própria ao capitalismo e característica de suas instituições: idéia de que o individuo é responsável por seus atos, e segundo eles – somente – será julgado.

Para Weber, o ‘espírito do capitalismo’ se caracteriza por esta procura racional e sistemática do lucro [10], pelo exercício de uma profissão, reinvestimento da poupança e uma ética cristã; elementos engendrando uma moral individualista favorável à conduta racional do empreendedor capitalista.

Le Moulin de la Galette, 1876 (Pierre Renoir)

Equidade e Autoridade

A equidade repousa na igualdade de autoridade, na proibição que um indivíduo esteja para sempre subordinado a outro, utilizado como meio para fins de outrem.

E notem, mais uma vez, que esta é uma característica praticamente intrínseca de todos os outros regimes ‘não capitalistas’ ou coletivistas: todos subjugam a liberdade e a propriedade alheia (e a propriedade mais fundamental que é a propriedade sobre si mesmo) para satisfazer interesses precisos e arbitrários de alguém ou de algum grupo.

Isto reafirma a proposição original dos pensadores liberais, notadamente John Locke. Para Roderick T. Long (2001), a igualdade lockeana pode ser vista não somente como igualdade diante da lei mas também em termos de autoridade, de potência, ou seja, idéia que o sistema legal e os administradores de uma jurisdição não poderiam dispor eles mesmos de nenhum poder que não fosse igualmente conferido aos cidadãos [11].

O governo representativo e seus atores não podem exceder ou agir violando deliberadamente a liberdade e a propriedade alheia, ou seja ultrajando sistematicamente a igualdade de autoridade ou equidade por qualquer objetivo aleatório: seja ele o casamento de dois bons muçulmanos arranjado pelos pais, seja um trabalho de interesse coletivo, seja o nivelamento do comportamento sexual, seja o desvio dos caminhos da revolução, seja a ilusão hipotética de igualdade material.

Por estar fundamentada no ideal de equidade, na liberdade de contractualização, na liberdade de comércio, na livre concorrência e liberdade de entrada e saída dos mercados, na liberdade para a plena apropriação dos frutos do trabalho, na liberdade associativa e no princípio de responsabilização individual decorrendo do regime de propriedade privada, o capitalismo de livre mercado (redundância) é o sistema social e regime de produção mais institucionalmente igualitário concebido até então pelos homens.

A igualdade bem compreendida (æquitas) é perfeitamente compatível com o princípio de justiça (suum cuique tribuere), ela diz respeito à natureza de cada um, ela emana do direito natural, ela é respeitosa do direito à diferença e do respeito do outro: ela é um elemento de um governo limitado e é condição para liberdade individual.

Ela se desenvolveu o mais perfeitamente sob as instâncias e instituições do sistema social capitalista, ou seja regime da propriedade e da liberdade. Ela significa a igualdade para buscar sua felicidade através do uso da razão, de exercer sua liberdade.

Que olhemos segundo uma perspectiva histórica ou do ponto de vista de alguma categorização de regimes sociopolíticos [12], é no regime capitalista de livre mercado que o direito individual é respeitado ao melhor.

O respaldo da filosofia individualista alicerçaria o ideal equitativo, o capitalismo é caracterizado pela impessoalidade de suas instituições, isentas de favoritismos e ancoradas na propriedade natural.

O estado em um regime de propriedade e respeito às instituições da liberdade – características do capitalismo de livre mercado – é governado por regras gerais e deve prever equidade formal, sem discrição ou tratamento especial: é um grupo de instituições impessoais, nos termos de F. A. Hayek.

A ordem que engendrou a sociedade de mercado é fundamentada em instituições que, caso respeitadas plenamente, garantem como nenhum outro regime até então desenvolvido a igualdade em seu sentido mais fundamental, ou seja, a equidade.

Notas

[1] Como apontava Laffitte:

“Pendant des siècles, l’idée égalitaire a été un admirable véhicule de progrès. C’est elle qui a protégé le faible contre le fort; c’est elle qui a relevé la femme, affranchi l’esclave, arraché le serf à la glèbe, aboli les privilèges de naissance et de caste; c’est elle qui a mis l’instruction, la justice, tout ce qui fait le prix et la dignité de la vie, à la portée du plus obscur et du plus chétif.”(Laffitte 1887, p. IV)

[2] Como havia salientado Ludwig Von Mises (1961):

“L’Histoire montre que depuis des temps immémoriaux certains hommes supérieurs ont tiré avantage de leur supériorité en prenant le pouvoir et en soumettant les masses d’hommes inférieurs. Dans la société de statut il y a une hiérarchie de castes. D’un côté il y a les seigneurs qui se sont approprié toutes les terres et de l’autre leurs serviteurs, les hommes liges, les serfs et les esclaves, les sous-fifres sans-terres et sans-le-sou. Le devoir des inférieurs est de trimer pour leurs maîtres. Les institutions de la société ont pour objet le seul bénéfice de la minorité dirigeante, des princes et de leur suite, les aristocrates.” (Mises 1961)

[3] Embora as raízes deste princípio de igualdade perante a lei possam ser encontradas na Atenas e Grécia de Clístenes do século IV antes de Cristo, ou mesmo em passagens da Torá e do Novo Testamento; foi durante e à partir do século XVIII e XIX que elas se desenvolveram melhor, e começaram a ser estendidas mais plenamente até se incrustar extensivamente no ‘ideal coletivo’ notadamente depois da abolição do escravismo.

[4] Citando as palavras do autor (Turgot 1808, p. 21–23):

“Dès que cette abominable coutume a été établie, les guerres sont devenues encore plus fréquentes. Avant cette époque, elles n’arrivaient que par accident; depuis, on les a entreprises précisément dans la vue de faire des esclaves, que les vainqueurs forçaient de travailler pour leur compte ou qu’ils vendaient à d’autres (…) Les esclaves n’ont aucune justice à réclamer utilement vis-à-vis de gens qui n’ont pu les réduire en esclavage sans violer toutes les lois de l’ordre et de la morale, et tous les droits de l’humanité (…) Les esclaves n’ont aucun motif pour s’acquitter des travaux auxquels on les contraint, avec l’intelligence et les soins qui pourraient en assurer le succès ; d’où suit que ces travaux produisent très peu.”

[5] Citando o autor:

“Les particuliers qui ont des esclaves, comme les gouvernements qui les tolèrent, en rougissent en secret; ils croient que c’est une grande économie; que le travail des esclaves auxquels on ne paie ni gages, ni salaires, est à plus bien bas prix que ne pourrait être celui d’hommes libres; enfin, que si l’on employait ceux-ci à la culture de nos colonies, le sucre serait trop cher (…) Dire qu’il est licite de faire un homme esclave pour avoir son travail à meilleur marché, c’est dire qu’il serait licite de l’assassiner sur un grand chemin pour avoir son argent à peu de frais. Mais les particuliers et les gouvernements se trompent; l’injustice est une mauvaise ménagère. Car si l’on tient compte des frais d’achat des nègres, de la nécessité d’amortir rapidement cette dépense de premier établissement, en raison de la faible durée de la vie des esclaves, de la mauvaise qualité de leur travail, des frais que leur surveillance exige, on trouve un taux de salaires tellement élevé qu’on est à peu près sûr d’avoir toujours des ouvriers libres pour le même prix sans faire violence à personne. Or, le travail d’hommes libres serait bien plus profitable aux fabricants que celui des esclaves. L’esclave est paresseux, parce que la paresse est son unique jouissance et le seul moyen de reprendre en détail la liberté que le maître lui a volée en gros. (…) Il est mal intentionné parce qu’il est dans un véritable état de guerre toujours subsistant avec son maître. Il n’en serait pas de même d’ouvriers, libres de leur personne et propriétaires de leurs gains. La concurrence les amènerait à travailler avec plus d’intelligence et avec plus de méthode.”(Dupont de Nemours 1771, p. 105–107)

[6] O trabalho escravo não somente era moralmente repreensível mas era economicamente recomendável. A idéia de que o escravismo proporcionava um sistema produtivo ineficiente foi depois, e também, anunciada por Adam Smith (1776, p. 73), em seu livro A Riqueza das Nações, ele propunha que:

“Mais quoique le maître paye également ce qu’il faut pour remplacer un jour le domestique libre, il lui en coûte bien moins que pour un esclave. Le fonds destiné à remplacer et à réparer, pour ainsi dire, le déchet résultant du temps et du service dans la personne de l’esclave, est ordinairement sous l’administration d’un maître peu attentif ou d’un inspecteur négligent. Celui qui est destiné au même emploi, à l’égard du serviteur fibre, est économisé par les mains mêmes du serviteur libre. Dans l’administration du premier s’introduisent naturellement les désordres qui règnent, en général, dans les affaires du riche; la frugalité sévère et l’attention parcimonieuse du pauvre s’établissent aussi naturellement dans l’administration du second. Avec une administration différente, il faudra, pour remplir le même objet, des degrés de dépense fort différents. En conséquence, l’expérience de tous les de tous les temps et de tous les pays s’accorde, je crois, pour démontrer que l’ouvrage fait par des mains libres revient définitivement à meilleur compte que celui qui est fait par des esclaves. La récompense libérale du travail, qui est l’effet de l’accroissement de la richesse nationale, devient donc aussi la cause d’accroissement de la population. Se plaindre de la libéralité de cette récompense, c’est ce plaindre de ce qui est à la fois l’effet et la cause de la plus grande prospérité publique.”

[7] Braudel concebia hierarquicamente a estruturação das instituições garantindo a supremacia européia no período de desenvolvimento do capitalismo, regime que terminou por garantir o progresso social europeu:

“Somente no século XVIII ocorrerá a explosão das fronteiras do impossível, superação de um teto até então intransponível. Desde então, o número de seres humanos nunca mais parou de aumentar, não voltou a haver suspensões nem reversões do movimento (…) Em resumo, se a comparamos com as economias do resto do mundo, a economia européia parece ter ficado devendo seu desenvolvimento mais célebre à superioridade de seus instrumentos e de suas instituições: as Bolsas e as diversas formas de crédito (…) Mas, sem uma única exceção, todos os mecanismos e artifícios da troca se reencontram fora da Europa, desenvolvidos e utilizados em graus diversos, e pode-se aí discernir uma hierarquia: no estágio quase superior, o Japão; talvez a Insulíndia e o Islã; certamente a Índia, com sua rede de crédito desenvolvida pelos mercadores banianos, sua prática de empréstimo de dinheiro às iniciativas arriscadas, seus seguros marítimos; no estágio inferior, habituada a viver voltada para si mesma, a China; e, finalmente, logo abaixo dela, milhares de economias ainda primitivas.” (Braudel 1987, p. 25–30)

[8] Para Braudel, ilustrativamente, a superioridade de desenvolvimento da Inglaterra relativamente a França pode ser explicado através deste prisma estrutural no qual se inserem as instituições sociais, especialmente a liberdade. Ele reconhecia a importância de uma maior ausência de interferência estatal na sociedade para o desenvolvimento capitalista:

“Dito isto, o leitor verá melhor a tese que sustento, bastante simples, verossímil: existem condições sociais para o surto e o êxito do capitalismo. Este exige uma certa tranquilidade da ordem social, assim como uma certa neutralidade, ou fraqueza, ou complacência, por parte do Estado. E, no próprio Ocidente, existem graus para essa complacência: e por razões predominantemente sociais e incrustadas em seu passado que a França foi sempre um país menos favorável ao capitalismo do que, digamos, a Inglaterra.” (Braudel 1987, p. 49)

[9] De acordo com Weber:

“L’acquisition par la force (formelle et réelle) suit ses propres lois et il n’est pas opportun (mais comment l’interdire à quiconque?) de la placer dans la même catégorie que l’action orientée (en dernière analyse) vers le profit provenant de l’échange (…) Mais, dans les temps modernes, l’Occident a connu en propre une autre forme de capitalisme: l’organisation rationnelle capitaliste du travail (formellement) libre, dont on ne rencontre ailleurs que de vagues ébauches.”(Weber 1904, p. 5–7)

[10] Que não deve ser confundida com a vontade, com a ‘sede do lucro’, ou o que poderíamos entender como avareza e avidez ao ganho, isto não teria nada verdadeiramente a ver com o capitalismo. Para Weber (1904):

“La ‘soif d’acquérir’, la ‘recherche du profit’, de l’argent, de la plus grande quantité d’argent possible, n’ont en eux-mêmes rien à voir avec le capitalisme. L’avidité d’un gain sans limite n’implique en rien le capitalisme, bien moins encore son ‘esprit’. Le capitalisme s’identifierait plutôt avec la domination [Bändigung], à tout le moins avec la modération rationnelle de cette impulsion irrationnelle.”

[11] Segundo Long, como já enunciava no século XVII John Locke (1690, Second Treatise II. 6):

“The execution of the law of nature is in that state put into every man’s hands, whereby every one has a right to punish the transgressors of that law to such a degree as may hinder its violation… For in that state of perfect equality, where naturally there is no superiority or jurisdiction of one over another, what any may do in prosecution of that law, every one must needs have a right to do.”

[12] Ainda hoje é possível notar essas diferenças, e basta olhar o que ocorre em países que poderíamos enquadrar como ‘extremamente coletivistas’, tais quais os regimes teocráticos — notadamente islamistas (onde as mulheres são com vantagem subjugadas ex lege) ou países de cunho socialista-autoritário. Uma curiosidade a respeito dos países socialistas-autoritários é que, dada a evidente diferença de tratamento conferida ex lege aos membros do partido e pelas perseguições conferidas a quem quer que se encontre identificado como o que se previa juridicamente como ‘inimigos de estado’ ou ‘inimigos do povo soviético’ etc.; é que esta inequidade deveria ser aceita visto que através dela se obteria a hipotética igualdade material, mas esta igualdade jamais ocorreu. Contudo e não obstante, como algumas evidências históricas sugerem, as desigualdades materiais que existem em regimes fundamentados sobre a concorrência e propriedade privada são frequentemente menores do que estas vigorando em sociedades ‘extremamente coletivistas’. Tomemos o relato de F. A. Hayek (1944, p. 77) a respeito do caso da União Soviética:

“What little information we have about the distribution of incomes in Soviet Russia does not suggest that the inequalities are there substantially smaller than in a capitalist society. Max Eastman (The End of Socialism in Russia, 1937, pp. 30–4) gives some information from official Russian sources which suggest that the difference between the highest and the lowest salaries paid in Russia is of the same order of magnitude (about 50 to 1) as in the United States; and Leon Trotsky, according to an article quoted by James Burnham (The Managerial Revolution, 1941, p. 43), estimated as late as 1939 that “the upper 11 or 12 per cent. of the Soviet population now receives approximately 50 per cent. of the national income. This differentiation is sharper than in the United States, where the upper 10 per cent. of the population receives approximately 35 per cent. of the national income.”

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