Etica e Protecionismo

Sobre a Natureza Imoral da Proibição e dos Privilégios Legais

Mateus Bernardino
Economia e Filosofia
10 min readMar 2, 2017

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Faz sentido falarmos em ética aplicada ao protecionismo? Quais seriam os valores veiculados ou incorporados nas políticas protecionistas? Se o protecionismo for uma espécie de nacionalismo regulamentário, como dissemos, quais similaridades do ponto de vista ético encontramos na lógica protecionista e nos valores transmitidos pela retórica nacionalista? Se o protecionismo for uma manifestação política de valores coletivistas, como compreender e assimilar a violação do princípio da propriedade e da liberdade pelo prisma de uma perspectiva moral liberal, e do ponto de vista institucional? De que forma a promoção do protecionismo estaria associada à promoção da corrupção moral em um nível individual e social dentro de uma perspectiva liberal?

Existem diversos aspectos, formas de abordagem e modalidades de estudo que poderiam ser exploradas e empregadas para uma análise da ética aplicada à política protecionista. Esse artigo, que é a terceira e última parte de nossa série, tentará focar nessa abordagem liberal da ética e responder algumas daquelas questões, além de compartilhar opiniões a respeito do protecionismo. Devemos ressaltar que se trata de uma abordagem simplificadora e simplista da ética — sem qualquer ambição ou pretensão de excelência em descrever os diversos aspectos da conduta individual e social associados. Ela adquire, por vezes, forma panfletária, baseada e referenciada na perspectiva clássica do paradigma liberal, ou tomando como totem moral os valores transmitidos pela filosofia liberal e pela ordem social inspirada em seus princípios. São comentários tentando resumir um apanhado habitual de conhecimentos sobre os conceitos e os princípios morais vinculados à abordagem da ética aplicada ao protecionismo desde a perspectiva liberal.

O Valores transmitidos pela Política Protecionista

Por mais que, em teoria, seus objetivos estejam principalmente ancorados em aspectos econômicos, e que seus instrumentos e as consequências de sua aplicação acabem repercutindo ou sofrendo influência direta de aspectos puramente políticos, as políticas protecionistas não são articuladas sem veicular determinados valores e aspectos éticos.

A história do protecionismo está intimamente ligada à história dos valores transmitidos pelo nacionalismo político, pelo industrialismo, pelo mercantilismo, pelas políticas de controle das fronteiras, pelo crescimento do poderio bélico e concentração de poder político dos Estados.

A mobilização de uma indústria bélica, além de desenvolver cadeias produtivas “estratégicas”, tornaria uma nação capaz de assegurar melhor a autossuficiência e a própria defesa ou expansão do território. A proteção da indústria foi, durante muito tempo, aos olhos de seus defensores, uma política de conservação nacional e racial.

A própria ideologia protecionista, tal qual apresentada por um de seus maiores expoentes, Friedrich List (1789–1846), é nacionalista, belicista e industrialista[i]. Ela está filosoficamente vinculada à perspectiva holista e coletivista dos eventos sociais.

Em economia, o método empregado pelos protecionistas do século XIX esteve sempre mais alinhado ao historicismo alemão. O protecionismo vincula o desenvolvimento econômico às restrições ao comércio exterior, e à necessidade que cada caso histórico específico e cada nação sejam considerados de maneira singular, desconsiderando verdades econômicas universais ou a validade de determinados postulados econômicos para os diversos casos específicos.

Na política, o protecionismo se pauta na concessão de privilégios legais e na proibição, em políticas e objetivos políticos que buscam fomentar os meios necessários para que uma nação-raça produza localmente determinados bens e serviços, ou que ela seja autossuficiente, e não dependa demasiadamente do comércio exterior e da cooperação internacional.

A consequência natural do protecionismo econômico é a restrição aos fluxos de recursos, capitais e pessoas, por definição. O intervencionismo é justificado pelo beneficio do desenvolvimento industrial dirigido, ou pelo progresso social pautado na industrialização enquanto política de Estado.

A consequência natural das políticas protecionistas é a produção pública e a regulamentação de cadeias produtivas inteiras, é o estímulo à formação de poderosos grupos de pressão de produtores e a busca incessante por mecanismos de extração de rendas políticas (rent seeking).

Em sua essência moral, dentro daquela dicotomia simplificadora mas apelativa separando a ética do individualismo e do coletivismo[ii], o protecionismo pode mais facilmente ser vinculado ao que é apresentado pelo segundo conjunto de valores.

O vínculo ao coletivismo é bastante claro, o protecionismo é uma doutrina propondo a submissão ilegítima e injustificável do indivíduo aos ditames da coletividade, é o prevalecimento do interesse de grupos (de produtores) sobre os interesses individuais (da massa de consumidores).

O protecionismo é a eleição auspiciosa de privilegiados, e a usurpação de valores e direitos individuais, em nome do bem comum, sob álibi do sucesso em determinadas empreitadas e para o desenvolvimento de cadeias produtivas específicas, que teriam importância crucial e estratégica para o progresso de uma nação-raça, de acordo com seus defensores.

A Ética Protecionista através do Prisma da Ética Liberal

Para entender o protecionismo, do ponto de vista ético, ou analisar a moralidade atrelada ao protecionismo de forma meramente introdutória, é importante entender e fazer apelo aos valores veiculados por seu único e maior rival, o liberalismo.

Em sua essência o liberalismo é uma filosofia de paz e de colaboração internacional[iii]. A própria divisão internacional do trabalho foi uma conquista do espírito liberal, e o desenvolvimento do comércio internacional ocorreu graças à abolição da maioria dos entraves ao comércio promovidos pelas políticas mercantilistas e tributárias.

Essa doutrina social aspira a que os interesses de todos os indivíduos e dos povos se harmonizem em uma sociedade internacional de nações, onde a propriedade privada e o livre-comércio, ou os direitos individuais, são garantias de atenuação dos conflitos entre os povos.

Para um liberal, o capitalismo, a democracia e a paz são instituições sociais compatíveis com seus ideais humanistas em favor do respeito à vida, ao (fruto do) trabalho e à possibilidade de cooperação pacífica entre os homens, em pleno respeito à diversidade humana[iv].

O comércio internacional é nada mais que uma consequência natural da aceitação dos valores sociais, econômicos, institucionais e políticos que são admirados pela filosofia liberal em sua essência.

Se não confundirmos a democracia liberal e o estado de direito com sua caricatura contemporânea de democracia total, compreenderemos que essas instituições sociais e valores humanistas estão indissociavelmente ligados ao respeito do ideal ético de propriedade, da autonomia individual e da liberdade de escolha.

O protecionismo é nada mais do que uma violação de cada um desses princípios: ele usurpa e limita a propriedade privada, transgride a possibilidade de autonomia, viola a liberdade de escolha.

À propriedade privada em toda sua extensão — o que inclui a liberdade de comercializar –, o protecionismo sugere a regulamentação, as quotas de negócio e a restrição à propriedade!

Aquele ideal de isonomia e intolerância para com qualquer espécie de privilégio legal, o protecionismo substitui por favores setoriais, de casta, de grupos de pertencimento em nome da nação e do bem comum!

À liberdade contratual e das negociações bilaterais, o protecionismo sugere o industrialismo dos sindicatos patronais e laborais, e propõe a CLT!

Ao ideal de fraternidade universal entre os povos civilizados, o protecionismo e o estatismo justificam e sugerem o bloqueio dos fluxos migratórios, o comunitarismo, a valorização dos conflitos por causa das diferenças socioculturais!

Ao propor um estado de coisas em que se generaliza a busca ininterrupta por privilégios legais, o protecionismo traduz uma das formas mais desprezíveis de corrupção da moral individual e social. Ele limita as escolhas individuais e restringe as comunidades dos benefícios socioculturais atrelados ao comércio internacional.

Seja sob forma de impostos, seja sob forma regulamentária, o protecionismo é uma forma de atentado inaceitável aos direitos de propriedade. Isto significa que o proprietário de um bem econômico qualquer não está em medida de vende-lo.

Quando toma forma tarifária, o protecionismo se traduz simplesmente por uma espoliação da propriedade alheia. A tarifa é, nesse sentido, como ensina a teoria econômica, idêntica a um imposto, ou seja, uma espoliação da propriedade e um atentado aos direitos de propriedade, certamente um ato de injustiça!

O atentado aos direitos de propriedade é uma política pregada por uma doutrina bem específica, uma filosofia anunciando que o problema central das sociedades modernas de mercado teria origem na propriedade. Se trata de uma filosofia que faz mesmo apologia à coletivização dos direitos de propriedade, uma filosofia que nós conhecemos muito bem: o socialismo, e mais radicalmente, o comunismo.

Uma das proposições dessa doutrina é que o Estado deixe de responder e executar suas legítimas tarefas — defesa da propriedade, mantimento da ordem e da segurança, prevenção contra a fraude e repressão à violência — e passe a tomar como responsabilidade principal a desapropriação e a redistribuição de renda para atingir, notadamente, objetivos aleatórios de nivelamento das pessoas em termos de renda.

O socialismo, quando se opõe ao laissez-faire capitalista, se inscreve necessariamente no estabelecimento de um sistema de restrição: o estatismo/intervencionismo. O estatismo, por sua vez, não é concebível fora do interior das fronteiras de um Estado, pois o comércio internacional, e toda interação com o mundo exterior, limita o poder de contrôle que um governo pode exercer sobre a economia de seu país.

O contrôle econômico é, incontestavelmente, o contrôle da vida, e a experiência mostra que o contrôle do comércio exterior é um passo importante e inevitável à instauração de um governo intrusivo, ver totalitário, e à supressão progressiva das liberdades ou direitos individuais.

Como lembrou Friedrich A. Hayek (1946, The Road of Serfdom, p. 71), controlar o comércio exterior é deixar o indivíduo à mercê da tirania estatal, significa liquidar sua última chance de resistência. As pessoas não podem mais viajar livremente, comprar os bens, livros ou ler os jornais que quiserem — todo contato com o exterior está submetido à autorização ou opinião oficial do poder administrativo. O contrôle do comércio exterior e a fiscalização aduaneira e das fronteiras constituem um dos métodos mais eficientes de manipular a opinião pública, e fazer perdurar o totalitarismo.

Para Frédéric Bastiat (1848), outro ponto em comum em termos de princípios e de consequências trazidos pelos protecionismo e pelo socialismo, é que ambas as doutrinas têm por característica a aplicação da “exploração de classes” ao nível social, e através da instrumentalização da máquina pública. No socialismo a exploração da minoria pela maioria, no protecionismo o inverso!

Do ponto de vista moral, o protecionismo enquanto atentado aos direitos de propriedade viola então um direito reconhecidamente natural. Ou seja, o direito do individuo sobre sua própria pessoa e sobre a livre disposição dos bens que produziu ou adquiriu legitimamente. O mercado não é nada além da extensão desses direitos naturais, as trocas representam uma extensão e execução de um direito natural aos olhos dos liberais.

Ao propor o desrespeito dos direitos de propriedade, o protecionismo não é nada mais do que uma forma de comunismo, e como sublinhava Bastiat, a pior e mais sorrateira forma de comunismo!

O protecionismo dificulta a livre disposição das aptitudes humanas, e a exploração eficiente dos recursos naturais disponíveis no planeta terra, ou seja, as particularidades de um savoir faire de um grupo de indivíduos ou a alta fertilidade de um solo de determinada região. Ele implica que os recursos escassos são empregados ineficientemente e por isso implica consequência custosas em termos ambientais — os esforços, os capitais, as faculdades humanas e os recursos naturais são direcionados de maneira inadequada. Haverá um desperdício de recursos escassos.

Não por acaso, e como uma consequência lógica desses valores que são veiculados, o plano protecionista sempre é apresentado como uma medida temporária.

A principal ilusão econômica dessa proposta protecionista consiste em acreditar que os custos do protecionismo seriam compensados por eventuais benefícios sociais, que os privilégios concedidos aos grupos não têm custo, e que, depois, serão facilmente destituídos ou reorganizados, e que as estruturas sociais e organizacionais que foram formadas por causa do protecionismo desaparecerão, e que uma indústria que nasceu da proteção — e que não submeteu-se aos ditames da concorrência internacional — estará igualmente preparada, prestará serviços da mesma forma que em ambiente competitivo, ou estará igualmente incentivada a sobreviver, quando submetida à abertura e à competição.

Se pudéssemos caricaturalmente apresentar uma tabela expondo alguns dos valores e conceitos veiculados pelo protecionismo e pelo liberalismo, apresentaríamos da seguinte forma:

Conclusão: Protecionismo e a Corrupção moral

Além de ser economicamente ineficiente e injustificável, o protecionismo é sobretudo imoral pois ele viola as liberdades individuais decorrendo do direito das pessoas sobre elas-mesmas e sobre sua propriedade.

Ora, a tomada constante e sem consentimento de uma parte da renda de uns indivíduos por outro grupo de indivíduos é um mecanismo não muito distante, guardadas as devidas proporções, de uma forma de escravismo!

O protecionismo é uma violação da ordem social: nenhuma ordem pode ser duravelmente garantida em harmonia numa sociedade onde uma indústria ou alguns setores de atividade econômica podem, graças à lei e à força pública, procurar obter sucesso em detrimento e opressão aos demais.

Se entrepondo ao livre comércio, o protecionismo é uma barreira à fraternidade entre os povos, ele impede a livre circulação de mercadorias, homens e culturas. Ele é a escolha política da escassez!

Além de ser economicamente injustificável, politicamente perigoso aos valores da ordem pautada na democracia liberal, o protecionismo é eticamente repreensível e promotor da corrupção moral ao nível individual e social.

Notas

[i] “Friedrich List, however, is very much concerned with considerations of power. Economic policy in his eyes is for the state a means of achieving its full bloom. He envisages the acquisition of a “well-rounded” territory, a large population, and a well-balanced economic structure. He also emphasizes that a nation must possess adequate military power to protect its political independence and its trade routes. List is interested in outlets for surplus population and emphasizes the need for colonies.”

Ver: https://mises.org/library/economic-nationalism-mercantilism-world-war-ii

[ii] Ver: GUYOT, Y. La tyrannie collectiviste. Editions les belles lettres, 2005 (1893).

[iii] Do ponto de vista ético, a defesa liberal do livre comércio vai de par com sua crença na viabilidade da paz entre as nações civilizadas. Esse sentimento se transmite, por exemplo, em autores como Ludwig Von Mises, como no trecho que segue:

“É preciso levar em conta que a condição sine qua non do livre comércio é a boa vontade e a paz entre as nações.” (1938, Les Illusions du Protectionnisme et de l'Autarcie, p. 10)

[iv] No plano político o protecionismo radical ou nacionalismo radicalmente intransigente têm menos familiaridade com os valores democráticos. Por mais que as democracias modernas tenham vivido e experimentem ainda hoje ondas nacionalizantes ou hostis à abertura comercial, e tenham mesmo se tornado mecanismos eficientes na promoção de interesses protecionistas, como vimos no último artigo, é nos regimes totalitários que encontramos mais facilmente a total submissão do aparato político e institucional às medidas protecionistas.

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