Introdução à Mensura das Desigualdades de Renda e Riqueza

Mateus Bernardino
Economia e Filosofia
17 min readJan 20, 2022

Revisão dos obstáculos e das questões metodológicas elementares.

Le Parc de la Propriété d'Yerres, 1875 (Gustave Caillebote)

Renda, Dados, Bens e Tempo

Não existe mensura objetiva universal da pobreza ou das desigualdades de renda. É o consenso que formaliza a definição através da convenção em busca da edificação da regra e padrão de mensura [1].

Por convenção admitimos que a renda é definida como o conjunto de recursos de uma família ou pessoa, como os salários, prestações sociais, renda de ativos financeiros e imóveis. Determinamos igualmente que a renda disponível diz respeito a estas remunerações abatidas dos impostos, contribuições e taxas. Fixamos também que o nível de vida é a renda disponível por indivíduo – o que entende a contabilização feita do número de filhos de uma família, critérios de repartição e etc.

Encontramos mesmo assim obstáculos à própria definição consensual das unidades de mensura [2], da identidade dos agentes [3] ou período selecionado [4] para nossos estudos.

A própria frouxidão da definição de desigualdades sociais impõe uma barreira importante ao estudo metódico do fenômeno no tempo, barreira a qual contornamos pela concentração em um alguns dos aspectos estritamente materiais para o estabelecimento dessas convenções.

Em primeiro lugar, mesmo que consideremos apenas a tradicional definição de renda, os próprios dados utilizados para realização dos estudos não podem ser considerados sem a devida precaução: eles podem ter origem em meras declarações ou enquetes rigorosamente pouco representativas, sofrer influência das mudanças políticas, passar por diferentes metodologias de coleta, fazer apelo a uma harmonização procurando resolver problemas de amostragem, heterogeneidade, assimetrias em matéria de informação transmitida ou podem não ser compatíveis com o propósito, arcabouço teórico e estrutura de análise proposta pelo estudo [5].

Não é raro em economia notarmos erros de amostragem, ou trabalhos onde a qualidade dos dados termine por comprometer tanto os resultados quanto sua interpretação (ela própria inicialmente e com frequência enviesada), e sobretudo, que corroborem recomendações inapropriadas propostas pelos estudiosos. O mais frequente é que a própria teoria na qual o estudo se insere seja frágil, o que se procura contornar por um resultado numérico ou quantitativo mais robusto e em qualquer escala corroborando uma teoria que possa a priori parecer absurda.

Em segundo lugar, muitas vezes encontramos excluída das análises das desigualdades materiais alguma alusão ao fato de que os bens consumidos pelos indivíduos são diferentes, e que o consumo destes bens evolui e que a satisfação que este consumo procura a cada um é diferente. Embora esta evidência pareça primordial e aparentemente sem importância, não é tão simples fazer uma análise satisfatória excluindo ou negligenciando fatos elementares.

De tal maneira que bens anteriormente restritos e cujo consumo era limitado em questão de poucos períodos são doravante acessíveis e de consumo massivo: este é um dos obstáculos mais consideráveis para os estudos longitudinais. Para o que diz respeito à heterogeneidade de gostos e consumo a situação é similar.

O economista francês Leroy-Beaulieu (1843-1913), ao analisar a questão das mudanças nas condições de vida (alimentação, habitação etc.), já assinalava no século XIX o limite naturalmente imposto por estas barreiras metodológicas. Na medida que os níveis de vida evoluem constantemente, que a mobilidade social transfere famílias entre classes de renda, que as condições de vida mudam, que os cestos de consumo se modificam, e que a renda não pode facilmente ser avaliada de maneira absoluta quando introduzimos a variável tempo; avaliar as desigualdades se torna uma tarefa raramente apreensível de maneira acurada [6].

A qualidade evolui e sobretudo o preço relativo dos bens consumidos evolui de maneira heterogênea e segundo esses patamares melhoram ou pioram as condições das famílias e indivíduos, e isto obviamente segundo as próprias preferências de consumo e cestos de consumo acessíveis e regiões analisadas: se o preço dos alimentos cai, se os carros populares custam menos em termos de horas de trabalho, e se os serviços de educação e saúde são mais acessíveis, dificilmente podemos concluir que o crescimento contínuo da renda de todos, embora oscilando segundo níveis diferentes conduz inexoravelmente a uma precarização geral das condições ou da situação dos mais pobres.

Pelo contrário. E isto vale para todos os bens de consumo produzidos em escala capitalista: mesmo que seja difícil contornar a escassez, ou por mais que a conjuntura ou intervencionismo terminem por influenciar as evoluções dos processos produtivos e organizacionais, a massificação da produção termina por fazer que os bens de consumo sejam mais acessíveis para todos no tempo.

Como pudemos ler em Leroy-Beaulieu, este debate em torno do método de definição dos padrões de mensura das desigualdades e evolução das condições dos cidadãos não é novo, e muitos dos mesmos argumentos e embates visivelmente ultrapassados são de tempos em tempos retomados, por mais que eles já tenham sido demonstrados inapropriados ou sem real portabilidade [7].

A própria análise dos dados longitudinais deixa margem para interpretações consideravelmente distintas, e um dos motivos é justamente a incapacidade de encontrar um método que leve devidamente e concomitantemente em consideração a evolução dos standards de consumo.

Por mais que conheçamos grosseiramente estimativas sobre o que convencionalmente denominamos renda para determinado subgrupo de uma população, é praticamente inalcançável o conhecimento sobre o que consomem os indivíduos ao longo de períodos demasiadamente extensos, ou como arbitram suas escolhas de consumo ao longo dos anos: escolhas estas tendo consequências diretas sobre as próprias condições nas quais os indivíduos ou famílias se encontram, e da liberdade que gozam para realizar arbitragens aleatórias no tempo.

Femme Nue étendue sur un Divan, 1873 (Gustave Caillebotte)

Em terceiro lugar, uma confusão feita com frequência é aquela de procurar atribuir às políticas de redistribuição – ou sua ausência – a responsabilidade irrevogável e incondicional da suposta redução ou aumento das desigualdades, ou oscilações do que se denomina distribuição renda entre os indivíduos. Trata-se de protagonizar os governos como peças centrais nas questões distributivas.

A verdade é que a utilização dos modelos econômicos ditos neoclássicos – walrasianos – pelos economistas e estudiosos parece ter feito que muitos raciocinem como se o que se descreve através deste arcabouço teórico como relevante da "distribuição" esteja indissociável da ação política e ação dos governantes.

Temos dificuldade em lidar com o fato de que é falsa a idéia de que toda alocação ou ‘distribuição’ de recursos na sociedade decorre da ação ou inércia dos governos, e não da evolução dos processos produtivos e dinâmica dos mercados em processos competitivos.

Seria então supostamente tarefa obrigatória dos engenheiros sociais aportar aos governantes informações que lhes permitiriam determinar como se efetuaria supostamente a "melhor distribuição de renda" para uma população ou sociedade. E qualquer resultado se distanciando ou aproximando de um ideal de igualdade pré concebido é resultado direto da boa ou má gestão de políticos e burocratas. A culpa deste cenário é dos próprios "cientistas sociais".

A verdade é que muito da progressão e evolução dos processos de realização de ganhos se deve à própria evolução da economia e dos processos sociais de produção.

Cada vez mais os procedimentos produtivos se tornam mais técnicos, cada vez mais o valor agregado aos produtos é maior, cada vez mais cresce o capital humano utilizado na realização destes procedimentos produtivos, aumentando e dispersando a renda entre grupos cada vez maiores por mais que uns se beneficiem mais do que outros, o que não decorre todavia e unicamente por um mero acaso.

Cada vez mais precisamos de mais engenheiros, técnicos, médicos especializados e programadores. É difícil acreditar que esses profissionais não sejam remunerados em função do valor que eles aportam às cadeias produtivas nas quais se inserem, e que sua importância não seja recompensada através das relações estabelecidas ao longo das cadeias produtivas diferentemente do que supõem alguns estudiosos, não é tendência natural e irrevogável que os agentes situados nas esferas mais baixas da hierarquia produtiva sejam remunerados com o mínimo ou algo próximo do mínimo vital. Nem todos os fenômenos "distributivos" decorrem ou estão ao controle de políticos e engenheiros sociais.

Em quarto lugar, outro ponto que não emerge facilmente dos dados, e é frequentemente ignorado nos estudos é a presença do que chamamos bens posicionais (positional goods): bens cujos quais é praticamente impossível a produção em massa pois seu valor é quase que exclusivamente atribuído em função da desejabilidade relativa conferida.

Embora todos possam cada vez mais se alimentar bem (em quantidade e qualidade) sempre teremos tendência a que apenas alguns poucos tenham interesse e possibilidade de frequentar os melhores restaurantes da cidade: a alta gastronomia muitas vezes não é nem do interesse das massas e nem acessível.

O mesmo vale para as melhores regiões para se morar nas cidades: são bens que não podem e não são facilmente reprodutíveis. Não importa quanto aumente a renda em uma sociedade, apenas uma parcela da população terá acesso a determinados bens que, diga-se de passagem, terão seus preços evoluindo segundo oscilações particulares e frequentemente acima do que acontece com os outros bens. Apenas os mais ricos entre os ricos poderão ter acesso a determinados bens durante um período de tempo, independentemente do crescimento da renda em uma sociedade.

O problema que um bem desta natureza representa para as análises relativas às desigualdades pode ser interpretado da seguinte maneira: mesmo que saibamos que os preços relativos e a qualidade de determinados bens e serviços tenham se tornado melhores e mais acessíveis com o passar do tempo – relativamente à evolução do poder de compra ou crescimento geral da renda e crescimento vegetativo, permanecerá sempre um sentimento de desigualdade visto que apenas os mais ricos poderão morar nos melhores e mais bem localizados apartamentos da cidade, frequentar os melhores e mais bem conceituados e estrelados restaurantes, ou ainda, rodar em Ferrari em vez de Fusca. E portanto, fazemos todavia alusão à moradia, alimentação e transporte.

Notem que se quisermos analisar temporalmente a questão da moradia, por exemplo, avaliando o acesso à moradia nos últimos 100 anos, fica evidente que o acesso à moradia para os menos ricos melhorou, e as casas de hoje são melhores que as de antigamente, e que a energia elétrica e o progresso tecnológico trouxeram bens de consumo cada vez mais acessíveis (eletrodomésticos, ar-condicionado etc.). No entanto tudo isso não quer dizer que morar na cobertura mais alta da Avenida Paulista será algo acessível aos menos ricos.

A verdade é que apreendemos mal nestas análises a evolução do progresso social e mesmo a evolução das condições materiais dos homens, por mais que tenhamos informações e as certezas que a teoria econômica nos oferece, muitas vezes somos ludibriados pelas impressões.

O estudo de sucessivas diferenças estáticas e discretas do que se denomina renda entre massas anônimas de indivíduos ou dados estatísticos não nos dá muita esperança de podermos fazer conclusões mais do que ilustrativas e aproximativas.

Estas questões nos fazem apenas compreender que a análise dos bens consumidos intertemporalmente por diferentes categorias de agentes se faz geralmente sob dificuldades e concessões metodológicas podendo comprometer a significância e portabilidade dos resultados obtidos.

Portraits à la campagne, 1876 (Gustave Caillebotte)

Epílogo: Prefências e Unidades Detentoras de Renda

Encerrando esta breve apresentação introdutória de algumas dificuldades metodológicas, não deixa de ser válido que a renda é um elemento ambivalente para o economista, no sentido que a renda é fundamentalmente, e do ponto de vista microeconômico, o resultado de uma escolha.

Na verdade a renda decorre em grande parte das escolhas individuais.

E até onde podemos dizer que o agente representativo realmente escolhe? Se decisões importantes em matéria de consumo e escolhas de vida são tomadas em consenso familiar, dificilmente podemos escapar do fato incontornável que apenas indivíduos escolhem.

Não é possível dissociar completamente a ideia de que um nível de renda possa refletir, mesmo que parcialmente, as próprias preferências dos indivíduos em matéria de atividade profissional, poupança, escolhas de consumo, trajetórias de vida, ou ainda, que sejam resultados da arbitragem feita em função do lazer, por exemplo.

Não se trata aqui de afirmar que se as desigualdades evoluem segundo determinado padrão, e os mais pobres escolhem ser mais pobres. Se trata de reconhecer que é impossível distinguir onde começa um suposto fatalismo ou "determinismo intrínseco ao capitalismo" e onde termina o mérito e resultados da ação individual.

Caso estivéssemos interessados em analisar mais profundamente esta questão, e controlar eventualmente este efeito, poderíamos simplesmente dividir o nível de renda pelo número de horas de trabalho, e analisar as escolhas feitas pelos indivíduos. Mas infelizmente estas informações raramente estão disponíveis ao nível das administrações fiscais ou agências do governo (que são as entidades que fornecem geralmente dados para este gênero de estudos): são informações dificilmente reconhecíveis ou coletáveis.

De maneira mais geral a realização da renda resulta não apenas de uma única arbitragem, como exemplificamos mais acima (escolhas profissionais; trabalho-lazer), mas de uma série de arbitragens que implicam diretamente as preferências individuais.

Os ganhos auferidos pelos indivíduos não podem ser tratados de forma independente de suas escolhas: e isto impõe uma barreira à potência de explicação que um agente representativo – neste caso a família – teria, haja visto que este agente não age, não é dotado de razão, não escolhe, não arbitra, não julga, não antecipa ou toma decisões de consumo e produção, o que não quer dizer que não existam famílias que consentem e por convenção estabeleçam objetivos coletivamente.

Existe uma dimensão de arbitragem associada e implicando uma renda potencial que deriva exclusivamente de escolhas individuais: um proprietário de um terreno pode certamente possuir uma renda relativamente baixa, tirada, por exemplo, da venda semanal dos legumes que planta em sua terra, legumes estes que satisfazem igualmente suas necessidades alimentares mais elementares.

E notem que a venda do terreno aumentaria sua renda ou recursos disponíveis de forma considerável, e dificilmente poderíamos dizer que esta arbitragem entre a renda potencial e a renda real não resulta de uma escolha pessoal: com o dinheiro da venda ele poderia se mudar pra um lugar com custo de vida mais baixo e garantir um nível de vida maior, ou mudar-se para a cidade grande, alugar um imóvel e investir o restante na bolsa de valores e no mercado secundário ou de derivativos.

Em ambos os casos e dependendo da escolha e da renda potencial os estudos dos analistas estariam falseados ou representariam não mais do que aproximadamente e grosseiramente sua riqueza. Avaliações de dados patrimoniais e de renda escondem frequentemente decisões e escolhas de seus detendores.

Mesmo assim, se coloca ainda para os estudiosos a questão de saber qual o valor que deve ser incorporado ao recurso da venda (neste caso o terreno do agricultor sedentário), algo que não pode ser conhecido antes de sua negociação. Sobretudo se coloca o obstáculo de dizer que alguém que tem uma renda relativamente baixa e que ele emprega em grande parte na manutenção ou entretenimento de seu patrimônio (neste caso sua terra) é rico.

Ao final desta introdução relativa aos dados, convenções, e questões metodológicas mais elementares, nos é talvez permitido fazer a seguinte consideração: a desigualdade é um fenômeno frouxamente definido, multidimensional e complexo que ultrapassa a simples estimação da diferença de renda monetária ou pecuniária entre indivíduos, famílias e grupos. Se o estabelecimento de um padrão de mensura exata e intertemporal das desigualdades em si já representa um desafio considerável, e necessita do estabelecimento de um número considerável de convenções, concessões e negligências, ainda mais complicado é interpretar os resultados dos dados como informações objetivas permitindo conceber em sua maior clareza o fenômeno de maneira suficientemente adequada. Mais pretensioso do que isto é querer utilizar deste tipo de análise para fins de política econômica e ferramenta para manipulações de engenharia social sem medo de errar nos prognósticos almejados, ou pior, acreditar que essas políticas não representam elas mesmas custos e renúncias.

Os estatísticos reconhecem fazer frente a arranjos, improvisações e remendos de contabilização para contornar problemas de viés, de falta de informação, de complexidade dos fenômenos envolvidos subjacentes, de heterogeneidade dos dados e populações das amostras, heterogeneidade das informações ou mesmo discrepância dos sistemas de obtenção de informações.

Nosso sentimento e idéia geral inicial sobre os obstáculos relativos às convenções metodológicas é que a captação intertemporal de apenas um terço das informações e dos elementos mais importantes dentro da multiplicidade de fatores ligados ao fenômeno que descrevem como universo das desigualdades (que é um conjunto não fechado e mal definido) necessitaria um sistema de coleta de informações que nenhum engenheiro social moderno poderia dispor. Estamos no mundo das generalizações aproximativas.

Na próxima seção, trataremos brevemente as questões relativas às propriedades axiomáticas, à inferência e índices.

Notas

[1] Não existe um padrão objetivo de mensura do que se descreve como pobreza e da mesma forma acontece com as desigualdades. Quantas pobrezas vocês obtiveram hoje? Quantas desigualdades de renda existem no planeta terra? Desde que tenhamos mais de um indivíduo sobre a terra teremos pobreza e desigualdade de renda. E mesmo para uma simples definição com intuito de realização de estudos aproximativos existe um número não negligenciável de recursos que poderíamos associar à noção de ‘renda’ e inúmeros outros que dificilmente apreenderíamos, e que não deixariam todavia de ter importância relativa para o estudo da evolução dos níveis de vida e fenômenos associados às desigualdades, no tempo. Com frequência se faz a distinção entre riqueza (wealth) e renda (income), a riqueza englobando elementos e recursos suplementares dizendo respeito, por exemplo, ao patrimônio:

“Wealth also generates income and is therefore important on the income study side of things as well. Indeed, income consists of two components: income from labour (wages, salaries, bonuses, earnings from nonwage labour, and other remuneration statutorily classified as labour related) and income from capital (rent, dividends, interest, profits, capital gains, royalties, and other income derived from the mere fact of owning capital in the form of land, real estate, financial instruments, industrial equipment, etc., again regardless of its precise legal classification).” (Piketty 2014, p. 24)

[2] Uma parte dos ativos compondo a renda dos agentes é oriunda de prestações, transferências do governo, remuneração do patrimônio, venda e compra de ativos, aluguéis, ações da bolsa, pensões de aposentadoria, indemnizações de seguro de toda sorte, programas de formação, doações, acesso à serviços de caridade, renda obtida com a venda de bens e serviços ilícitos, ou finalmente, a informalidade. Para nos retermos ao que poderia, eventualmente, ser controlado, estimado ou contabilizado grosseiramente pelos estatísticos e analistas, existem ainda, obviamente, todos os dispositivos de remuneração, pagamento e satisfação que escapam completamente à malha legal ou a uma estimação contável minimamente satisfatória (corrupção, ajudas em espécies…), ou mesmo, recursos que são facilmente manipuláveis dentro da própria esfera legal (caixa 2, lavagem de dinheiro…). Como tratar de maneira homogênea regiões onde os serviços prestados têm natureza diferente? Como lidar satisfatoriamente com as questões monetárias em períodos longos e levando em conta cestas de bens e produtos heterogêneas? Como lidar definitivamente com o valor de bens e mercadorias ainda não negociados? A renda descreveria uma unidade puramente monetária ou guardaria também um caráter subjetivo dificilmente estimável? Deveríamos tomar em consideração rendas negativas ou nulas, nestes casos onde vigoram importantes transferências monetárias, em bens ou serviços? Estas são apenas algumas questões ilustrando o tipo de dificuldade que o consenso referente à unidade de mensura das desigualdades vai encontrar.

[3] A identidade escolhida é com frequência a da família. E as desigualdades são estimadas a partir da convenção sobre os dados das famílias, cuja estrutura evolui incessantemente. A estrutura dos tempos recentes mudou consequentemente e comparativamente à estrutura das décadas ou séculos anteriores, o que tem impacto sobre a distribuição da renda nas amostras de dados. Devemos excluir da família a família da família? Deveríamos tomar para fins comparativos qual ideal de igualdade/desigualdade de renda entre famílias ou quartilhos de renda? Como lidar com a evolução das estruturas de identidade dos agentes, neste caso, das famílias, quartil ou faixa etária? Se coloca ainda a questão de saber sobre as desigualdades que podem permanecer mesmo no interior das famílias, deveríamos nos concentrar apenas nas desigualdades inter-famílias, e nos reter às desigualdades materiais-renda? Estas perguntas parecem anódinas e elas realmente não podem encontrar respostas claras e definitivas, além é claro, das mesmas conclusões e informações que dados frios e a criatividade dos economistas podem oferecer. E não tomem isto como falta de seriedade: muitos pesquisadores e resultados de pesquisa se dão por objetivo compreender até mesmo desigualdades desta natureza.

[4] Talvez o obstáculo temporal seja o mais importante. Mais estendemos a descrição para períodos longínquos, mais nossa capacidade de apreensão dos eventos associados às desigualdades perdem explicabilidade. Além das questões relativas aos dados, a complexidade dos eventos é tal que o que se faz geralmente em períodos de tempo estendidos são meras especulações: entram em pauta questões monetárias, mudanças na conjuntura econômica, mudança nas políticas, mudanças nos consensos estabelecendo as regras para coleta de informações, mudanças tecnológicas e organizacionais, na natureza das cestas de consumo, na qualidade dos bens e serviços e etc.

[5] Muitas vezes os dados dependem de informações relativas à fiscalidade e não são isentos de consequências que a própria variação da política fiscal influenciaria. Não muito diferente é o que acontece quando varia a metodologia de coleta de dados ou quando não se absorve e nem se controla devidamente a distinção fundamental dos arranjos institucionais e organizacionais nos quais se inserem os indivíduos das populações estudadas em amostras.

[6] De acordo com Beaulieu:

“Les faits que nous avons rapidement rassemblés démontrent avec une irrésistible évidence que toutes les classes de la nation ont participé au progrès général, que la classe ouvrière particulièrement en a profité sous la triple forme d’un accroissement de bien-être matériel, d’un accroissement de sécurité et d’un accroissement de loisirs. On examinera, dans le cours de cet ouvrage, s’il est vrai que les riches deviennent chaque jour plus riches ; mais dès ce moment on peut affirmer qu’il est faux que les pauvres deviennent chaque jour plus pauvres (…) Cependant, les améliorations partielles et graduelles que nous venons de décrire ne touchent pas le cœur de ceux qui se sont faits les apôtres des revendications populaires. C’est avec un superbe dédain que ces hommes parlent de ces progrès qu’ils qualifient de mesquins et d’insignifiants. Pour eux, le mot de pauvreté n’a pas de sens absolu ; il indique simplement une relation entre les moyens de jouir qu’a un individu et les moyens de jouir qu’ont d’autres membres de la société. La pauvreté, ce n’est plus le manque de ressources propres pour lutter contre la faim, contre le froid, contre la maladie ; la pauvreté, c’est l’état de tout homme qui ne peut se procurer toutes les jouissances qu’un autre de ses semblables se donne. Ainsi un ouvrier bien nourri, bien vêtu, bien logé, confortablement meublé, ayant en outre un dépôt important à la caisse d’épargne et des valeurs mobilières dans son portefeuille, allant le dimanche ou le lundi en tramway passer la journée à la campagne et revenant le soir assister du haut des galeries supérieures aux représentations d’un théâtre populaire, cet ouvrier se déclare pauvre parce qu’il n’a ni hôtel, ni domestiques, ni voiture, ni chevaux, ni loge dans les grands théâtres.” (Leroy-Beaulieu 1881, p. 10–11)

[7] O economista americano John Nye (2002) mais recentemente relembrou:

“Thus, income measures that focus on money wealth and money prices will often misrepresent the changes in ‘true’ inequality that have arisen over time. Even if a modest car today cost ten thousand dollars, while a deluxe, special production super automobile cost ten million dollars, that thousand-fold difference in monetary price would not match the vast differences between riding in cushioned carriages and walking in the mud. (…) A world with cheap basic food leads to a situation where food is effectively subtracted from the equation of considering the differences between rich and poor. We focus on the enormous differences in going to these cheap buffets vs. the ability to afford elegant eateries without noticing that the relative price difference might be growing while the quality differential might actually be shrinking. And it would be difficult to widen the real food gap — no matter how much money the rich could afford to spend or throw away on meals. (…) Thus, whatever the measured gap between the rich and the poor in today’s world — the real, (utility-adjusted) gap in incomes and wealth is liable to be substantially smaller than that of a century or so earlier, even when monetary measures tell us otherwise. While the losses, or at any rate, the relative losses are liable to be felt more keenly by the rich.”

[8] Existem bens cujos preços dependem exclusivamente do trabalho humano, no sentido em que eles não são facilmente produzidos ou reproduzíveis em larga escala e dificilmente poderão ser acessíveis aos menos ricos: tal é o caso do trabalho dos melhores chefs ou alfaiates da cidade, ou das empregadas domésticas, por exemplo. O crescimento geral da renda não faz com que cada vez mais pessoas possam se beneficiar destes serviços, visto que seu preço frequentemente aumenta mais do que proporcionalmente às oscilações dos demais, como parece ser o caso dos serviços domésticos em países europeus ou dos Estados Unidos comparativamente ao Brasil. Como sugeriu o ensaísta Art Carden (2003):

“Specifically, our measurements of income and income inequality don’t account for the true differences, or lack thereof, between the sets of goods that the rich and the poor are able to consume. While income figures suggest that the gap between the rich and the poor is expanding, these figures may be misleading.”

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