O Direito Natural e sua Impostura Moderna

Mateus Bernardino
Economia e Filosofia
24 min readJan 19, 2022

Este artigo procura compartilhar uma série de escritos do jovem Aurélien Biteau. São textos que buscam responder questões como: o que procuraria verdadeiramente descrever a palavra “direito”? Por que a noção “direito” vem sendo utilizada erroneamente nos debates políticos da atualidade? Por que os direitos naturais modernos, ao se substituírem ao direito natural clássico, são os maiores destruidores das instituições garantindo uma sociedade livre? Aurélien faz apologia à perspectiva clássica do direito natural, por oposição à perspectiva moderna. Para isto ele realiza uma breve apresentação destas duas concepções distintas do direito natural, e suas respectivas evoluções, até a suposta perversão do direito natural realizada pelos direitos humanos modernos e pelo positivismo jurídico. Para concluir, será proposto em último lugar, no final desta compilação de artigos, um texto de Aurélien que apresenta uma iniciação ao direito natural clássico por intermediário de uma analogia à linguagem. A versão original destes artigos pode ser encontrada no sítio do cotidiano francês Contrepoints.

David et Goliah 1606–1607 (Michelangelo da Caravaggio)

agosto 25, 2013 por mateusbernardino

O Direito: Grande Ausente do Debate Político

“Direito a isto”, “direito a aquilo lá”, “direito de fazer isso”, “direito de fazer aquilo”… eis aí um grande número de reivindicações que inundam os discursos e os debates políticos. Cada partido político, cada organização militante, cada corrente ideológica defende sem cessar a entronização de novos direitos que os poderes públicos antecedentes teriam omitido, por inadvertência sem dúvida, esquecendo de os introduzir na longa lista de direitos fundamentais dos cidadãos que nós somos. “Direito” se tornou a palavra mais banal que existe. E não obstante, ela perdeu muito de seu sentido. A tal ponto que aquilo que o direito verdadeiramente designava em sua origem acabou deixando de existir nas representações intelectuais modernas. E isto se fez em detrimento de uma realidade que o direito recobria e deveria ainda hoje recobrir, de tal forma que a real interpretação do direito se tornou ‘o’ grande ausente das reflexões políticas e intelectuais da actualidade.

Dentro de quase todas as filosofias políticas, o direito se tornou um sinónimo de reivindicação. Faltam alojamentos aos desalojados? É preciso um direito ao alojamento! Escolas gratuitas? Direito à educação! Viagens de férias? Direito ao turismo! No debate político, interrogar-se sobre o direito é simplesmente se interrogar sobre as medidas políticas que a autoridade do Estado deveria procurar realizar. O direito não é mais do que uma espécie de graça divina que cada um procura obter da autoridade governamental. Mesmo que para isto seja preciso “lutar” para adquirir esta graça! Com bastante facilidade, o direito foi progressivamente confundido com a permissão e, por conseguinte, com a liberdade. O que me é permitido fazer, o que me é dado sem contrapartida, eu tenho o direito de fazer, eu tenho o direito a esta coisa adquirida. Para se tornar livre, tudo é doravante uma questão de adquirir para si o máximo de direitos e favores!

É preciso notar que mesmo entre os liberais estas confusões também conseguiram se infiltrar. Para alguns se tornou necessário decretar quais seriam os direitos humanos fundamentais para que os homens sejam livres. Um homem livre dispõe de direitos x, y, z, e ele não é livre enquanto não lhe é permitido por uma autoridade fazer x, y, z. Este é de alguma forma o princípio da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.

No entanto, todas essas reivindicações, todas essas permissões e todas essas aquisições que alguns chamam “direitos” são tudo e qualquer coisa menos o direito. Se referindo ao termo “direito” para descrever todas essas coisas nós acabamos enfraquecendo o termo e, sobretudo, nós terminamos por esquecer completamente a verdadeira realidade que o direito designa.

O que é verdadeiramente o direito? O direito é um objeto independente das vontades individuais (e então de suas reivindicações) que existe espontaneamente em todas as sociedades humanas. Ao seio de toda sociedade humana, isto quer dizer em todo lugar onde os homes vivem em relação uns com os outros, existe o direito. Como os seres humanos são providos da razão, suas relações implicam espontaneamente regras, práticas e costumes.

O direto é objeto da ciência jurídica, que se encarrega de descobri-lo por intermediário de determinados métodos. É o juiz quem deve procurar descobrir o direito tal como ele é encontrado na sociedade, isto quer dizer, como uma justa repartição — dos bens e prerrogativas — implicada nos conflitos e relações entre os homens. De fato, o direito não se decreta. O juiz é normalmente o indivíduo encarregado de utilizar-se da razão para saber o que dita o direito, que não está escrito mas que é definitivamente imanente: ele está nas coisas. O juiz, desta forma, deveria ser um pesquisador do direito natural a cada caso que se apresente a sua frente. Esta é a verdadeira função do juiz. Diferentemente da maneira que se costuma fazer hoje em dia, o direito não consiste em escrever leis para obter da autoridade governamental tal ou tal vantagem ou privilégio. O direito existe. Trata-se apenas de descobri-lo: é nos conflitos expostos ao juiz que ele próprio vai procurar encontrá-lo [1].

A noção de “vazio jurídico” [2] não tem então nenhum sentido: o direito existe antes da lei, não é necessário que ele esteja escrito em um pedaço de papel para existir, por mais constitucional que seja este pedaço de papel. Os homens precisam apenas se aproximar dele e conhecê-lo, o que só pode ser feito quando o juiz preenche a verdadeira função de juiz. Hoje em dia, o juiz se contenta de fazer aplicar os decretos promovidos pela autoridade ao invés de simplesmente render o direito. Ele faz isto mesmo em situações que não são conflituais: basta que a lei do legislador proíba uma prática legítima para que o juiz seja o torcionário da inocência e do direito. Para que o direito seja rendido em uma sociedade, as leis não são indispensavelmente necessárias, mas sim, e sobretudo são, os juízes.

É então capital restituir à noção “direito” todo o sentido que lhe é próprio. Toda esta paródia que representam os “direitos” modernos — que eles sejam pretensamente “naturais” como aqueles da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão ou que eles sejam positivos como o conjunto de reivindicações políticas — não é mais do que o motor da destruição da realidade jurídica da sociedade.

O direito sem juiz e sem ciência jurídica não é somente uma pobre abstração, ele é um decreto arbitrário confiado à autoridade do mestre, diga-se aqui o Estado, e então o maior perigo existindo para a justiça e para a liberdade dos homens.

Os liberais não deveriam então fazer o papel de seus adversários políticos, reclamando melhores constituições ou melhores leis, mas ao contrário, tomar parte da questão envolvendo o direito que é tão ausente nos debates políticos, e restituir assim sua grandeza, defendendo-o e reconhecendo sua existência, pois o direito é um freio poderoso ao arbitrário do Estado, mesmo que seja ele democrático.

L'incrédulité de Saint-Thomas, 1601 (Michelangelo da Caravaggio)

Direito e Moral: A Confusão dos Liberais

Se substituindo ao direito natural clássico, os “direitos naturais” modernos destruíram integralmente a instituição garantindo a sociedade livre. O “direito” é uma noção relativamente complexa cujo sentido não parou de ser alterado desde o direito romano até os dias de hoje. Diversas correntes filosóficas participaram ao desvio e estímulo da perda de sentido do termo, e muito pelo contrário o liberalismo não deixou de contribuir. Hoje em dia, um bom número de liberais têm a tendência de confundir o direito e a moral, sob a apelação dos “direitos naturais”. Ora, não existe erro mais desastroso.

Em 1982, Murray Rothbard publicou The Ethics of Liberty. Este livro que é uma grande referência do autor, e é admirado por numerosos libertários e anarcocapitalistas, insinua tratar a liberdade e os direitos naturais. Rothbard pretende nele discorrer desde a propriedade de si até o conjunto de direitos naturais do homem, da propriedade sobre as coisas até o direito parental. Ele estabelece no livro até mesmo o princípio regendo as punições e as compensações para a violação destas regras. Se a obra é intelectualmente estimulante, ela comete portanto desde o título um grave erro que revela o tamanho da confusão que fazem os liberais entre o direito e a moral, confusão que tem pesadas consequências sobre o atual estado do ocidente, como nós veremos logo em seguida.

O título da obra indica que se trata de um tratado de Ética. E portanto o livro quer abordar o direito. Existe aí uma contradição. A Ética não é, e jamais foi, a ciência jurídica. A Ética é a filosofia da moral. A Ética estuda os princípios morais, não o Direito. Ela procura as leis morais e os fins justos da ação humana. Ela estuda as ações que fazem bem, e as ações que fazem mal, as boas e más ações. Rothbard pretende estabelecer os princípios da ética social, mas o direito não é uma ética, ele é outra coisa, uma coisa independente da moral, como podem ser a física e a economia.

Na verdade, The Ethics of Liberty de Rothbard não é uma obra de direito. Ela se encontra na mesma linha de escritos liberais como os de John Locke, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 ou ainda as obras de Ayn Rand, que desnaturaram o direito natural para fazer dele um mero objeto da moral.

Se o direito não existe fora das relações humanas, esses autores começaram a pretender que os direitos estavam nos homens eles-mesmos. Esqueceram do direito para fazer apologia aos ditos “direitos humanos”. A aberração destes “direitos” salta aos olhos quando notamos que ela implica que a noção de direito encontra sentido mesmo para Robinson Crusoé sozinho em uma ilha deserta. Podemos dizer, uma vez que ele está absolutamente sozinho, que Robinson tem todos os direitos ou que ele não tem nenhum, ou da maneira mais bela, que ele detém todos os “direitos naturais do homem”. Alguns liberais adeptos desta versão moderna e desnaturada do direito natural reconhecem e admitem que os “direitos naturais do homem” não têm sentido fora da sociedade. Mas a lógica não está do lado deles: se os “direitos naturais” emanam do homem, então o homem sobre sua ilha deserta está implicado pelo direito emanando dele. Contudo, estando mais do que afastado do mundo, ele deixa portanto de existir.

Em sua versão moderna, o direito natural corrompido em “direitos naturais” joga no esquecimento o verdadeiro direito, como vimos mais acima na primeira seção do artigo. Mas não é pelo fato de que os liberais — eles não são os únicos diga-se de passagem — tornam-se cegos que não existe mais nada a ser visto. O direito se apreende na função do juiz: ele é quem diz a justa repartição dos bens e prerrogativas da cada um, revelada pela dialética entre as partes de um conflito.Se não existem mais juízes no sentido verdadeiro do termo hoje em dia — pois a função foi desnaturada pelo direito (o juiz não faz mais do que executar as vontades do legislador), o verdadeiro direito existindo e emanando das relações entre os homens não cessa no entanto de existir, porque os homens vivem sempre viveram em sociedade.

O que são na verdade os “direitos naturais” modernos? Eles são leis morais que se impõem elas mesmas ao indivíduo, e que emanam de sua natureza de sujeito. Como eu sou um ser dotado de razão, dizem eles, eu tenho o dever de respeitar outrem: os “direitos naturais” definem o quadro de ações moralmente justas e boas que eu posso fazer, e as ações justas de outrem que eu devo respeitar. Os “direitos naturais” definem assim os deveres morais do indivíduo vis-à-vis d’outrem. São mandamentos.

Nós poderíamos nos perguntar se eles têm fundamento. Possuiriam-eles um ponto de apoio satisfazendo a razão humana? E quem tem razão: Rothbard e sua propriedade sobre si mesmo, Rand e seu critério da vida, Kant e seu imperativo categórico, Kropotkine e sua moral anarquista, as revelações da religião, ou ainda outros que não foram aqui mencionados? Buscar essa resposta não é o tema deste artigo. A epistemologia da ética é um campo vasto onde numerosos autores se perderam. O que é necessário reter é que o Direito não é a Ética e que a Ética não é o Direito.

Isto implica reconhecer que determinados combates onde os liberais se defendem não têm nenhuma razão de existir. Tal é o caso da “igualdade em direito” as vezes dita “igualdade em direitos”, no plural. Literalmente, “igualdade em direito” não significa mais do que dizer que os bens e prerrogativas das duas partes de um conflito são as mesmas. Que o assassino tem as mesmas prerrogativas que sua vítima. Que o assaltante tem as mesmas prerrogativas que o larapiado. É uma absurdidade. A igualdade que os liberais devem defender nos diz respeito ao direito, é a igualdade diante da justiça — a instituição, isto quer dizer, que cada parte seja tratada e escutada igualmente, com honestidade.

As consequências da confusão entre direito e moral são desastrosas, notadamente no que diz respeito à instituição da justiça na grande maioria de países ocidentais, a França em primeiro lugar.

Ao confundir o direito e a moral, o direito se torna um conjunto de mandamentos que, emanando do homem, deveriam ser conhecidos por cada um. Em vez de dizer direito, eles escreveram direitos, fizeram listas e disseram aos homens: “eis aqui vossos direitos, eis aqui o que vos é autorizado, tomai em conhecimento.”

Ora, ao fazer assim, o direito deixa de resolver os conflitos que se colocam espontaneamente e realmente entre os homens em uma sociedade. Ele advém uma abstração decretando o que releva do conflito e o que não releva. Ele não perdura se os homens não lhe acordam fé. E de fato, nada mais impede de estender indefinidamente a lista dos “direitos humanos”. Como os direitos são mandamentos, nós podemos muito bem acrescentar mais alguns. Nesse sentido textos como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 escancararam as portas para o positivismo jurídico e seu “imperator”.

O individuo não é mais seu próprio “imperator”, o imperativo categórico não é mais imposto por ele mesmo: o Estado e o legislador se encarregaram dele, e nesse jogo os liberais têm tudo a perder e, de fato, perderam tudo. Hegel ganhou de Kant.

Os liberais partidários dos “direitos naturais” modernos dizem que existe uma diferença radical entre esses direitos e os direitos positivos decorrendo do positivismo jurídico. O que os separa dos direitos positivos atuais, dizem eles, é que os “direitos naturais” são “direitos de” fazer alguma coisa enquanto que a lei instituiu os “direitos a” qualquer coisa necessitando o exercício da coerção sobre outrem para ser realizada. Mas esta distinção é totalmente fictícia. O “direito de matar” se exerce bem às custas de um terceiro, aqueles mesmos liberais defendendo os “direitos naturais” modernos não hesitam a fazer apelo ao “direito à vida”.

Poderíamos dizer que os mandamentos do legislador são contraditórios enquanto que os “direitos naturais” modernos formam um conjunto coerente e puro, e proíbem ao homem de usar de força contra outrem. Certamente, mas isto é passar ao lado do verdadeiro problema: se podemos aprovar o conteúdo, do ponto de vista moral, é a forma, introduzida em direito, que é ruim e perigosa.

A verdade é que os “direitos naturais” modernos da mesma forma que os direitos positivos não proíbem absolutamente nada e não são de forma alguma o Direito. Neste caso de figura é o legislador quem verdadeiramente interdita ou autoriza algo, a partir do momento em que nós pedimos que ele inscreva o direito ou que nós lho concedamos tal poder. Nós poderíamos muito bem acreditar que seu imperativo categórico o impedirá de fazer o mal, ou então que um amontado de papéis o impedirá a tempo de fazê-lo, mesmo que o amontoado seja dotado do no nome constituição. Mas a história provou que isto não funciona: a revolução francesa terminou em sangue e nada impede hoje em dia que a república estenda sem cessar o número de leis. Constatamos a mesma coisa nos Estados Unidos, e em todos os lugares onde os “direitos humanos” mesmo que sob sua forma liberal estão promovidos.

Ao substituir o direito natural clássico, os “direitos naturais” modernos destruíram integralmente a instituição garantindo a liberdade à sociedade. Nós devemos a eles a paródia da justiça que é o positivismo e a terrível inflação legislativa que hoje em dia assegura ao legislador o poder da insegurança legal.

O reconhecimento do verdadeiro direito é então uma necessidade urgente para que seja re-instaurada a justiça e sua instituição. A utopia dos “direitos naturais” enquanto tábua das leis em um tribunal deve ser abandonada. Aqueles mandamentos morais podem ser discutidos dentro do quadro da ética, onde eles têm seu lugar, mas não defendidos com sendo o direito, algo que eles não poderiam ser.

Le Sacrifice d'Isaac, 1603 (Michelangelo da Caravaggio)

Do Direito Natural ao Positivismo Jurídico

O que defendem os liberais? O “direito natural” ou os “direitos naturais”? É necessário reconhecer que estas duas expressões são muitas vezes utilizadas como se elas significassem a mesma coisa. Para um grande número de liberais, o direito natural corresponde mais ou menos ao que é defendido pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. E portanto as duas expressões podem recobrir sentidos bastante diferentes. O objeto dessa próxima seção é apresentar sucintamente duas concepções distintas do direito natural, e suas evoluções até a perversão dos direitos humanos modernos e do positivismo jurídico [3].

O Direito Natural Clássico

É necessário começar pelo o que veio historicamente primeiro, ou seja a escola clássica do direito natural. Esta concepção do direito, hoje em dia desconhecida ou esquecida, decorre da filosofia realista e mais particularmente de Aristóteles. Na prática, esta concepção corresponde essencialmente ao direito romano.

O Direito, que tem por objetivo a justiça, é algo que existe. É objeto de conhecimento para o juiz que está à procura do direito. O direito não decorre dos indivíduos e da sua natureza de homem ou sujeito. Não existe, nesta concepção, direitos do indivíduo. Existe apenas o direito que é uma coisa real e independente.

Mais precisamente, o que é o Direito? O direito permite resolver conflitos reais que se apresentam ao juiz que deve encontrar soluções reais de direito que coloquem término ao conflito entre as partes, determinando a partir daí a justa parte que reavém a cada um. Contrariamente à concepção moderna do direito natural, o direito não é nesse caso um poder latente. Ele é algo que existe, negativo ou positivo. Por exemplo, em um conflito entre um credor e um devedor, o direito do devedor é uma obrigação, enquanto que o direito do credor é uma soma monetária.

O direito é evolutivo e difere de uma sociedade para outra. A natureza dos conflitos criados pelas relações entre os indivíduos muda ao longo do tempo. As soluções de direito do passado podem se revelar infrutíferas no presente, e é o papel do juiz descobrir o direito tal qual ele é nos dias de hoje.

Digamos de passagem que o direito não é um mandamento. O juiz não ordena nada, ele procura, busca o direito. O direito não é também uma lei. Ele não é um decreto, nem de uma autoridade qualquer, nem da razão pura.

A propriedade privada, por exemplo, não é um direito do indivíduo decorrendo de sua natureza de sujeito. Ela é uma instituição permitindo limitar os conflitos entre os homens, reconhecida pelo juiz em busca do direito. Ela não é de forma alguma absoluta e existe unicamente por que ela prova ser uma solução justa de direito.

Como mostra Bruno Leoni em La liberté et le droit, um certo paralelo pode ser feito entre o mercado e o direito. O primeiro tende a um equilíbrio econômico. O segundo tende a um certo equilíbrio jurídico.

Esta concepção clássica de direito natural tem o mérito de estar fundamentada nos conflitos reais, opondo homens reais e sendo resolvidos por uma instituição real. Ela não repousa sobre abstrações rígidas nem sobre o arbitrário de um legislador, que decreta o que releva do conflito e o que não releva.

Este realismo do direito foi suplantado a partir da Idade Média por uma concepção idealista do direito, sacralizada pela maioria dos grandes textos constitucionais, como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.

Os Direitos Naturais Modernos

Tendo partindo do Direito enquanto algo real, o direito se tornou um poder do indivíduo, um poder emanando de sua natureza. A oscilação de uma concepção a outra é suficientemente difícil de explicar e situar historicamente. Para melhor compreender esta oscilação é recomendada a leitura de Le droit et les droits de l’homme de Michel Villey, para o que diz respeito à filosofia, e The Idea of Natural Rights de Brian Tierney, para o que diz respeito à história.

Em Thomas Hobbes, por exemplo, o indivíduo em estado natural goza de seus direitos naturais, direitos que tem por único limite os próprios limites materiais que a natureza impôs aos homens e a seus poderes.

Um direito não é mais algo independente do indivíduo, ele não é mais uma realidade objetiva, ele é subjetivo, isto quer dizer que ele emana agora do sujeito. Ele não é o objeto do conhecimento do juiz como no caso do direito natural clássico. Ao contrário, para John Locke, por exemplo, o juiz tem como única função reforçar o direito natural fazendo valer em suas arbitragens os direitos naturais de cada uma das partes. Estes direitos são reconhecidos a priori, eles são dados pela razão. Não existe um caso particular de direito particular para o credor e direito particular do devedor, direitos procurados e encontrados pelo juiz, existem agora direitos naturais dos indivíduos, idênticos para todos e cabe ao juiz, o comandante em nome da autoridade, reforçá-los.

Os direitos naturais, como direitos tirados da razão são imutáveis e universais: pouco importa a época, pouco importa a cultura, os indivíduos continuam sendo indivíduos e têm sempre os mesmos direitos.

Mas se os direitos naturais são poderes, isto se deve ao fato de que eles são também mandamentos da razão para cada um. De fato, se eu tenho direitos, outros também têm e seus direitos são respeitáveis. Não é falso dizer que os direitos naturais são na realidade leis da razão: em um sentido se trata então de uma perversão da noção de direito que vem se confundir com a lei.

Na escala dos indivíduos, os direitos naturais são uma ética, eles são leis morais as quais o indivíduo obedece ou não. Mas quando se trata de reforçar estes direitos através de uma autoridade jurídica, da forma como fizeram Locke ou Frédéric Bastiat, o direito se transforma em sistema legalista. O direito e a lei não fazem mais do que um.

Bem evidentemente, na concepção liberal do direito natural, que se trate de Locke, Bastiat, de Ayn Rand ou de Rothbard, os direitos naturais não são infinitos e são limitados pelos direitos naturais dos outros: isto significa que a lei ela mesma é limitada e continua imutável. Bastiat defende isto em seu célebre panfleto La Loi.

Todavia alguma coisa se perde em relação à concepção clássica do direito natural. A concepção clássica não impedia a moral de existir, mas ela tinha o mérito de se reportar sobre os conflitos reais, evolutivos, não podendo ser antecipados, não trazendo com eles de antemão soluções apropriadas de direito. Ao inverso, a concepção moderna de direito natural toma o problema da justiça em outro sentido (inverso?) ao procurar na idéia abstrata de indivíduo o que deveria ou não relevar do conflito, de maneira imutável, e esta rigidez se impõe aos homens quaisquer que sejam seus atos reais, suas reais motivações, suas aspirações e crenças reais. Disso decorre a vontade de definir o direito nas constituições, nos primeiros artigos, antes mesmo das instituições.

Esta confusão entre Direito e Ética, e pior ainda, entre Direito e Lei coloca um problema real pois ela destrói os limites reais do direito (seu próprio contorno definido pelo juiz a partir de conflitos reais) em benefício dos limites abstratos, certamente racionalmente definidos, mas limites cujos quais é suficientemente cômodo ultrapassar quando dentro do campo institucional.

E é precisamente o que se reproduziu em todos os países que acreditaram que uma constituição poderia defender os direitos naturais: houve uma extensão sem limite dos direitos humanos e da lei.

Os Direitos Humanos e o Positivismo Jurídico

Ao confundir o Direito com a Lei, os direitos naturais decorrentes da filosofia idealista deram armas aos legisladores. O direito não é mais uma realidade objetiva que é necessário descobrir, tal como ele é concebida no direito natural clássico, ele é um conjunto de leis que é preciso inscrever para que cada um possa conhecer seus direitos.

Ora, quais são os limites de uma escritura, enquanto existir papel e tinta? Podemos sempre pretender que é a função das constituições de impor os limites da lei, mas um papel não detém ninguém. Desde que caia então a fé na constituição — sob um golpe da crítica marxiana dos “direitos formais” por exemplo — não existem mais limites reais à extensão da lei. O que não é o caso quando os juízes, pessoas reais, têm por função descobrir o direito.

Os direitos naturais modernos são os responsáveis do positivismo jurídico, eles teriam mesmo lhe promovido. Ao confundir o Direito com a Lei, eles deram demasiadamente importância aos legisladores, que se tornaram o fundamento do sistema jurídico.

É este o princípio mesmo do positivismo jurídico, que considera a lei justa porque ela é a lei. Os juízes não têm mais nenhum papel vis-à-vis do direito, se não o papel de executar a lei. O direito se tornou um objeto da política, ele se forma e incha sob golpes de diversos interesses em disputa ou do clientelismo mórbido do mercado eleitoral. Isto quer dizer que o direito não existe mais, ou ao menos que ele está ausente das instituições jurídicas.

Seria então ridículo esperar que liberalizações, mesmo massivas, ou mesmo o retorno da lei aos estritos direitos naturais modernos, permitiriam de reencontrar o equilíbrio jurídico. As mesmas causas produzem os mesmos efeitos. A inflação jurídica é uma consequência dos direitos naturais modernos e de seus sistema legal.

É necessário então uma reflexão sobre o direito para retornar à instituições jurídicas mais estáveis e sobretudo menos propícias à se corromper pelos golpes de porrete da política. As ficções jurídicas que repousam sobre idéias abstratas fizeram prova de seus limites.

Judith décapitant Holopherne, 1612–1614 (Artemisia Gentileschi)

O Direito Natural: Analogia com a Linguagem

Se a maioria dos liberais defendem o direito natural e concordam com a nocividade que representa a inflação legislativa — fundamentada de certa forma sobre o positivismo jurídico, existem portanto divergências quanto a definição deste direito natural. Vale lembrar que alguns chegam ao ponto de dizer que o direito natural não existe.

Como já vimos mais acima, duas grande concepções do direito natural se distinguem: uma clássica, fundamentada no realismo filosófico e tendo nascido na Antiguidade; outra moderna, um pouco mais idealista e tendo sido desenvolvida durante o período moderno (período que vai do século XVI até o XVIII).

A versão moderna do direito natural ganhou um importante sucesso ao se apresentar como marco essencial para a vitória do liberalismo enquanto filosofia política: Hobbes, seu precursor, Locke, e os grandes textos revolucionários (Bill of Rights inglês de 1689, Bill of Rights americano de 1789, Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão 1789) serviram como primeiras escavações para o estabelecimento e firmamento deste marco enquanto concepção dominante do direito natural, concepção que foi em seguida retomada e desenvolvida por numerosos filósofos, economistas e políticos, entre os nomes mais populares encontramos Ayn Rand, Rothbard ou Bastiat.

O desenvolvimento dessa versão do direito natural se seguiu da corrupção do termo — sob a forma dos direitos humanos contemporâneos e do positivismo jurídico. Isto colocou em retirada a concepção clássica do direito natural e tornou-a quase ininteligível aos nossos contemporâneos, tão bem que esta concepção conheceu um declínio intelectual importante, malgrado a importância que ela representa para a defesa dos valores da liberdade.

Este artigo tenta conduzir uma espécie de iniciação ao estudo do direito natural clássico por intermediário de uma alusão à linguagem (o francês servindo de caso concreto). De fato, a linguagem é o exemplo mais intuitivo e o mais simples para compreender os fenômenos espontâneos. Ora, assim como a linguagem o direito clássico participa da ordem espontânea e apresenta como consequência alguns pontos de similaridade.

Antes de tudo, relembremos que na concepção clássica o direito é uma coisa. O direito é objetivo, e não subjetivo: ele não se encontra nos indivíduos, ele não pertence ao sujeito e não é uma faculdade deles, nem um poder. Os indivíduos têm a faculdade de agir, de crer ou pensar, mas o direito não é uma faculdade do indivíduo e não se confunde então com as suas faculdades.

Da mesma forma, o francês é uma coisa objetiva. Podemos estudar o francês sem ter que estudar os indivíduos franceses. Bem evidentemente, os franceses têm a particularidade de falar francês, e os estrangeiros a de aprender. Mas esta língua, como o direito, não pertence ao sujeito. Ele dela se distingue.

Segundo ponto: o direito permite resolver conflitos jurídicos reais, isto quer dizer, conflitos que se colocam verdadeiramente na sociedade. Não se trata de analisar a idéia abstrata do homem para nele encontrar a idéia dos conflitos que ele poderia se deparar e fazer emergir ainda a idéia de um verdadeiro direito imutável. O direito não é questão de uma ficção jurídica entre Robinson e Sexta-feira. O direito natural clássico consiste em encontrar, através dos conflitos reais apresentados ao juiz, as soluções de direito apropriadas.

No caso da linguagem, ninguém perde o tempo procurando no ideal humano sua justa linguagem, ninguém faz proposições da boa língua a partir de robinsonadas. Espontaneamente, a linguagem se desenvolve para facilitar a compreensão entre homens reais.

Em terceiro lugar, o direito é evolutivo. Os conflitos reais mudam ao longo do tempo, paulatinamente e segundo os progressos econômicos, as inovações tecnológicas ou ainda, os desenvolvimentos de tal ou tal tipo de filosofia ou religião. Como consequência, as soluções de direito do passado podem não ser as mesmas do presente. A escravatura, por exemplo, desapareceu, mas a propriedade continua e nós fazemos ainda uso do vocabulário jurídico romano no que toca este ponto.

Acontece o mesmo com a linguagem, como todos nós sabemos. O francês evolui constantemente e nos seria difícil compreender hoje em dia um francês do século XVI. Diga-se de passagem, os fatores influenciando a evolução da linguagem são mais ou menos os mesmos que influenciam o direito.

Em quarto lugar, o direito não é idêntico de uma sociedade a outra. O direito resolveu conflitos reais que aconteceram em grupos diferentes. Como consequência, o direito não poderia ser o mesmo para todos.

A língua não diverge neste ponto: ela não é em todo lugar a mesma. Não se fala a mesma língua na França, Espanha ou na China, e mesmo ao seio do mesmo grupo linguístico, existem diferenças. Não se fala o mesmo francês no Quebec e na França. Dentro da própria França, por exemplo, existem divergências para nominar o “pain au chocolat” ou a “chocolatine” que são o mesmo produto, enquanto que o francês popular falado nas ruas não é aquele francês apurado falado pelos intelectuais. Nada disso é preocupante, pois o objetivo da linguagem é a comunicação e a compreensão em meio a uma ordem composta de diversos estágios.

A comunicação é obviamente mais difícil entre dois grupos linguísticos distintos. Da mesma forma, é mais difícil encontrar o direito quando o conflito ocorre entre dois grupos distintos de indivíduos.

Em quinto lugar, o direito é objeto de conhecimento. O juiz tem por função conhecer e anunciar o direito. Isto necessita a compilação de soluções de direito, o quer dizer, jurisprudências. Estas compilações de jurisprudências têm um valor importante na medida em que elas oferecem ao juiz soluções válidas de direito a cada vez que se apresentem casos similares diante dele. Mas elas não são imutáveis e podem mesmo desaparecer. Em nenhum caso o direito é uma lei. O juiz não comanda, ele enuncia o direito.

Assim acontece com a linguagem e com o francês. Por mais que nós falemos espontaneamente o francês, nós o aprendemos com objetivo de nos comunicar e nos compreendermos entre si, e para fazê-lo nós utilizamos “compilações” de gramática, de conjugação e de vocabulário. O dicionário é uma compilação do vocabulário utilizada em uma época qualquer. Cada ano palavras novas entram no dicionário enquanto outras desaparecem. Mas as palavras do não têm valor absoluto, tanto é verdade que o uso dessas palavras evolui. Um dicionário do século passado é completamente diferente de um dicionário atual.

Em sexto lugar: ninguém pode decretar nem planificar o direito. O juiz procura, e depois ele enuncia o direito. Ele não o inventa. O direito não é anterior às contingências do mundo real e não é um mandamento tirado da razão. Ele não é um direito universal e imutável.

Ninguém planificou o francês. Podemos sempre tentar construir uma língua ex-nihilo, como foi mais ou menos o caso do esperanto. Isto não faz dela efetivamente uma língua se ela não é utilizada e não facilita a comunicação entre os indivíduos, malgrado suas intenções. Não existe uma verdadeira linguagem do homem.

Sétimo e último ponto: o direito tende a um equilíbrio jurídico e tem por objetivo a justiça, limitando os conflitos que e apresentando soluções de direito adaptadas aos conflitos reais, espontâneos. Mas o direito não o equilíbrio jurídico ele mesmo.

A mesma coisa acontece com a linguagem, que continua sempre imperfeita. Ela facilita a compreensão dos indivíduos, e sua evolução tem sempre este objetivo, mas continua sendo possível que os indivíduos não consigam se compreender algumas vezes.

Como a linguagem, o direito é um fenômeno espontâneo. Contrariamente aos direitos naturais modernos e a todos os sistemas legalistas, o direito não tem nenhuma pretensão ao absoluto, universal e imutável. E portanto se o caráter utópico de uma linguagem construída salta aos olhos, pode ser difícil perceber o caráter utópico dos direitos naturais modernos, que pertencem muito mais ao campo da moral do que ao campo jurídico.

Notas

[1] Para mais detalhes sobre estes elementos de argumentação, ver Bruno Leoni (2006) e Michel Villey (1983).

[2] A noção de vazio jurídico designa a ausência de normas aplicáveis a uma determinada situação. Em certos contextos esta noção é próxima da idéia pejorativa de zona de não direito. Caso concebida como ausência total de direito e aplicação da lei, a noção aproxima-se da idéia de espaço de liberdade onde “tudo é permitido” pois não é desta forma constrangido pela lei. Do ponto de vista teórico esta concepção é no mínimo limitada, uma vez que o direito tem vocação a se aplicar a todos e a todas as situações. Em decorrência a ausência de normas não pode existir, não é possível existir assim um “vazio jurídico”.

[3] A leitura de La Philosophie du Droit de Michel Villey é recomendada para quem quer compreender ainda melhor estas especificidades.

Referências

Leoni, B. La liberté et le droit. Collection Bibliothèque Classique de la Liberté. Les Belles Lettres, Paris 2006 (1961).

Rothbard, M. The Ethics of Liberty, Atlantic Highlands (New Jersey), Humanities Press, 1982.

Villey, M. Le droit et les droits de l’homme. Presses Universitaires Françaises, Paris 1983.

Tierney, B The Idea of Natural Rights: Studies on Natural Rights, Natural Law, and Church Law 1150–1625. Emory University Studies in Law and Religion. Wm. B. Eerdmans Publishing Company. Michigan, Cambridge-UK, 1996.

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