Quatro Concepções Históricas do Direito Natural

Mateus Bernardino
Economia e Filosofia
24 min readJan 19, 2022

Este trabalho de tradução procura compartilhar mais uma série de escritos do jovem Aurélien Biteau, um recolho de artigos tratando, novamente, sobre o conceito de direito natural. O texto se dá por objetivo apresentar as quatro concepções históricas do direito natural, suas origens, seus fundamentos, e as ligações que existem entre elas. Aurélien realiza uma exploração introdutória da concepção clássica — que inclui o entendimento aristotélico e canônico — e da concepção moderna — que inclui o entendimento hobbesiano, lockeano e kantiano do direito natural. Ao longo desta apresentação, o autor procurou manter, além de uma descrição satisfatoriamente bem sucedida, um olhar relativamente crítico das particularidades de cada concepção histórica. Aurélien propõe, ao final desta exposição preliminar, uma revisão pessoal e releitura de alguns tópicos e determinadas contribuições realizadas mais recentemente por alguns dos mais relevantes autores do pensamento liberal contemporâneo. Esta série de artigos pode ser encontrada em sua versão original no sítio do quotidiano francês Le Contrepoints.

Flora, 1514 (Titien)

abril 13, 2014 por mateusbernardino

Odireito natural cuja maior parte dos liberais procura defender é, há muito tempo, um conceito polêmico. Que direito é esse a partir do qual pode parecer difícil para muitas pessoas estender verdadeiros princípios? Seria-ele um conceito ao qual cada um acrescenta e inclui, segundo seus próprios votos e crenças pessoais, o que acredita ser a justiça? Ou seria necessário, em vez disso, compreender que o direito é uma espécie de convenção e que o direito natural seria apenas uma etiqueta colada sobre tal convenção que é, podemos imaginar, partilhada e endossada por uma população, um povo, uma cultura?

Este é o desafio que os liberais devem resolver: demonstrar que o direito natural não é uma convenção e que existe um verdadeiro direito, um direito justo, que não deve nada às decisões arbitrárias ou à vontade de cada um, e que este direito é a garantia da liberdade.

E portanto aí está o problema: é necessário reconhecer que, mesmo entre os liberais, as confusões são numerosas e pouco propícias ao esclarecimento do conceito de direito natural. Nos fazemos de arrogantes defensores do direito natural, mas nós mesmos o dominamos mal e não o conhecemos tão bem. Nós pretendemos ser sensatos, racionais, verdadeiros filósofos; e no entanto nós cometemos os erros mais grosseiros quando procuramos pleitear pelo direito natural para contradizer ou combater os estatistas: socialistas ou conservadores. E depois disso, nós nos espantamos quando percebemos que não somos bem compreendidos! Fácil, desde então, pretender que os imbecis estão no campo adversário, em vez de perceber neles nossa própria imagem, que não é, sem dúvida, muito notável.

Se os liberais são por uma boa parte dentre eles bons economistas, bons cientistas, é necessário reconhecer que a filosofia não é o nosso forte. Pois um bom filósofo não faz prova de uma arrogância mal placée: ele sabe que não sabe, e ele sabe ser crítico do que crê saber.

O objetivo deste artigo é apresentar, então, modestamente, quatro concepções históricas do direito natural: suas origens, seus fundamentos e as ligações que existem entre elas. Trata-se de uma apresentação sumária que convida a um esforço de aprofundamento. Eu espero ter conseguido colocar em evidência os erros e confusões dos liberais quanto ao direito natural. Quanto mais bem conhecido for o direito natural, melhor o liberal saberá defendê-lo.

É importante seguir a ordem cronológica destas diversas concepções do direito natural porque as últimas devem sua origem às primeiras. É também necessário não contentar-se unicamente das concepções do direito natural por si só, mas também retornar sobre a epistemologia e a ontologia das ideias e conceitos que sustentam-nas.

Vénus au Miroir, 1554 (Titien)

O Direito Natural como Direito da Natureza: Aristóteles, o Direito Romano e São Tomás de Aquino

A noção de direito natural não surgiu nos séculos XVII e XVIII com os filósofos liberais (Locke, Hobbes etc.). O direito natural liberal é tardio na história do pensamento.

As origens do direito natural se encontram na Grécia, e mais precisamente em Aristóteles. O direito natural de Aristóteles foi magistralmente colocado em prática no direito romano e depois desapareceu com a queda do Império, até reaparecer em São Tomás de Aquino no século XIII, pensador que lhe reatribuirá suas letras de nobreza.

O que é o direito natural em Aristóteles?

Trata-se simplesmente do direito da natureza. Mas a natureza de Aristóteles não é o que nós, modernos, chamamos de ‘natureza’: não se trata da oposição entre natureza e cultura, nem de questões de pássaros, árvores e cogumelos, contrapostos à nossa cultura, nossas cidades, nossas artes. A natureza aqui concebida é o conjunto das coisas que constituem o cosmos. E por coisas, não necessariamente incluímos apenas os objetos materiais. Não é questão aqui de um dualismo cartesiano entre espírito e a matéria, idéia moderna e estrangeira à filosofia clássica. As cidades e os regimes são coisas, por exemplo.

A natureza aristotélica não é um campo imenso de coisas individuais, distintas, separadas. A natureza, ao contrário, é ordenada. Existe uma ordem na natureza. Na verdade, as coisas são aparentemente distintas e múltiplas, mas elas são também substâncias, são seres e organismos. Existe uma multidão de homens, mas todos são homens. Todos têm a mesma substância: ser-humano.

Existe então um certo distanciamento ou desvio entre as coisas como elas aparecem à primeira vista (múltiplas, distintas, diferentes) e sua substância, seu ser, sua unicidade. Um bebê é um homem, mas ele não é um homem como o adulto é, ou um velho. E portanto eles partilham a mesma substância.

Disto decorre que as coisas da natureza são fundadas sobre múltiplas causas. Nesse sentido uma causa não é forçosamente a origem de um evento produzindo efeitos, como concebemos hoje em dia depois de Descartes. Não há visão mecanicista das coisas na filosofia clássica. As causas, na filosofia aristotélica são o que constitui o ser das coisas. Existem quatro causas: causa material (a matéria da coisa), causa formal (forma das coisas, sua definição), causa motriz (movimento e mudança das coisas) e enfim, causa final (fim, objetivo, razão de ser das coisas).

Se um bebê não é, a primeira vista, um homem, tal qual um adulto ou velho, mesmo que eles partilhem a mesma substância, ele tem por razão-de-ser tornar-se um homem, de realizar-se enquanto homem.

Mas, afinal, por que todas essas revisões e explicações a priori bem distantes do tema do direito natural?

Porque se não revisarmos a ontologia que sustenta a concepção do direito natural corremos o risco de ler a filosofia grega com os olhos modernos e cometer os erros mais grosseiros: conceber, por exemplo, que em Aristóteles está a origem do direito natural liberal, ou que todos os filósofos que falaram a respeito do direito natural pertencem a mesma escola de pensamento. A tentação da síntese deve ser reprimida, afim de deixar bem visíveis as fortes nuances entre as diversas escolas do direito natural, e não se afundar na ideologia progressista que desqualifica a priori os pensamentos mais antigos.

Em Ética à Nicómaco, Aristóteles coloca em evidência que a justiça repousa sobre dois tipos de justiça tendo cada uma sua importância: uma justiça geral e uma justiça particular. A justiça geral é essencialmente moral: trata-se da realização das virtudes pelo indivíduo. A justiça geral é a maior virtude, mas vemos bem o que ela tem, precisamente, de geral: ela é incerta, individual, bastante exigente. É por isso que existe uma justiça particular, mais modesta, mais precisa, melhor determinada e que pode se realizar dentro da cidade. Esta justiça, é o direito.

Em grego, o direito é o justo. ‘Dikaion’ significa o justo. Em uma única palavra, o justo. Ora, mas o que é o justo? O justo, é render a cada um o que é seu. O justo, é definir e atribuir o meu e o teu. Função do juiz, essencialmente organizadora. Como se determina o teu e o meu? Através de uma relação igual entre as coisas. Um sapateiro e um advogado não saberiam receber as mesmas honras, mas a distribuição das honras não é arbitrária, existe uma proporção justa de honras que cada um deve receber segundo sua função e suas realizações. Esta função do direito é distributiva.

Existe também uma função reparadora do direito: se o advogado rouba o sapateiro, ele deve lhe restituir esta justa parte. O juiz restabelece a ordem que foi perturbada pelo ladrão.

Mas por que o direito, o justo, pode ser descrito como ‘natural’? Por que faz parte das coisas que, elas mesmas, são; que constituem a natureza, que determinam a igualdade das relações. O direito romano é inteiramente preocupado com o estudo e a classificação das coisas, porque é o conhecimento das coisas que permite distribuir a cada um o que é seu.

O direito clássico é desta feita objetivo, e não subjetivo. Os indivíduos não têm direito individual como concebemos hoje em dia. Existe o justo, determinado pelas coisas, e é o objetivo do direito realizar esta justiça particular. Não é questão aqui de igualdade de direito, visto que as coisas não são iguais e são diversas.

A justiça particular é abordável e acessível aos juristas, ela é determinável e precisa. O direito não é estabelecido a priori, ele se descobre nas coisas. O direito romano é antes de tudo jurisprudencial mas ele não é absoluto. As coisas mudam: logo o direito muda também. Existe uma discussão do direito, uma dialética do direito, o que implica uma parte de arbitrário e de incerto quando é necessário decidir e colocar término a um processo. O direito positivo vem completar judiciosamente o direito natural, notadamente quando há indeterminação: é justo dirigir à esquerda ou à direita? Somente uma convenção pode determinar.

O direito não se confunde com a justiça moral, demasiadamente geral para os juristas, vaga demais, muito indeterminada e algo que não saberia encontrar seu sentido fora da ação individual. O direito não tem por objetivo a liberdade, mas a justiça. Direito equilibrado, modesto, admitindo a incerteza.

O direito natural de Aristóteles e dos romanos aparece então aos antípodas do direito natural liberal! E contudo, apenas confusões são feitas a seu respeito. E que bofetada recebemos quando nós chegamos com arrogância opondo nosso direito natural aos conservadores quando grande parte deles são defensores deste direito natural aristotélico que nós conhecemos tão mal!

La Femme au Miroir, 1515 (Titien)

O Direito Canônico: Direito Natural da Cidade de Deus na Alta Idade Média

Depois da derrocada do Império romano, o direito natural aristotélico desapareceu em benefício do direito costumeiro (coutumier). Na obscuridade da Alta Idade Média todavia a Igreja brilhava: sua influência era considerável, ela civilizava os bárbaros e mantinha unida a cristandade.

Pouco a pouco toma forma um direito canônico: o direito da Igreja fundamentado sobre as Escrituras Santas. A Alta Idade Média é um período onde a influência de Santo Agostinho é bastante forte: existia a pretensão de realizar uma Cidade de Deus e suas leis sobre o mundo terrestre. A cidade se organiza em torno da Igreja e das Santas Escrituras, e nelas que os princípios de um direito cristão são procurados.

Tomaram a partir de então o hábito de chamar direito natural o direito conforme às prescrições das Santas Escrituras. Ora, as Santas Escrituras não constituem textos jurídicos, ao menos o Direito ali está ausente. Se elas inscrevem e colocam bem questões sobre as leis divinas e mandamentos, tratam-se aí de leis morais que são as leis da Cidade de Deus. O Direito, o justo aqui subentendido como o ideal de render a alguém o que é seu está ausente das Escrituras Santas e da Cidade de Deus. O direito canônico é fundamentado sobre a lei divina, e como dissemos o Direito ali está ausente. Já os romanos, sob influência do estoicismo, que não era uma filosofia do direito, tinham procurado integrar a lei natural, lei moral, dentro dos corpos jurídicos.

Aristóteles não havia cometido o erro de confundir a justiça geral e a procura do Bem Supremo, eminentemente moral, com a justiça particular ou, falando mais claramente, o Direito. Ele as distinguia bem claramente. Mas o direito canônico faz mais que simplesmente os confundir: a justiça geral, as leis divinas, leis da Cidade de Deus apagam completamente a justiça particular, o direito natural verdadeiro, que desaparece substituído pelo direito costumeiro.

Foi São Tomás de Aquino redescobrindo a filosofia de Aristóteles no século XIII que volta a dar ao direito natural, a justiça particular, seu devido lugar. A justiça geral, respeito das leis divinas, e a procura do Bem Supremo, a saber Deus, não podem constituir um direito praticado pelos juristas.

Além da natureza ser uma criação divina, ela é ordenada segundo os planos de Deus: não é desta forma aberrante encontrar aí os princípios para a justiça particular, sem que seja necessário retirar o que quer que seja da justiça geral presente nas leis divinas. Distinção novamente estabelecida, por São Tomás, entre a lei e o Direito.

Se hoje a Igreja não pretende mais estabelecer ou realizar a cidade de Deus sobre a Terra, é todavia verdadeiro que numerosas confusões do mesmo gênero são realizadas por boa parte dos filósofos que procuram ver no direito natural um conjunto de mandamentos morais, uma ética, da mesma forma que os estoicos. Mesmo erro de Rothbard, por exemplo, que intitula seu tratado de direito Ética da Liberdade: mas o que teria a ética a ver com o Direito? Numerosos são aqueles que pretendem que o direito natural decorre da lei natural, o que é uma confusão entre a justiça geral e a justiça particular.

A gravidade desses erros é severa, pois ela omite o personagem central do direito, a saber o jurista, e lhe atribui princípios de direito perfeitamente irrealistas do tanto que são vagos, indeterminados, e profundamente individuais.

Feitas essas considerações, agora serão abordados logo abaixo na segunda parte deste trabalho o direito natural da Escola do Direito Natural e dos liberais clássicos.

La Vénus d'Urbin, 1538 (Titien)

Os Direitos Naturais como Direitos do Estado Natural: Escola do Direito Natural e os Liberais Clássicos

Nós vimos na primeira parte a concepção aristotélica do direito natural, e depois a concepção canônica do direito natural facilmente extensível à todas as concepções morais do direito natural. Essas são concepções clássicas do direito natural. Continuemos o percurso histórico do direito natural com suas principais concepções modernas.

Se São Tomás de Aquino havia restituído a justiça particular, que será, de novo, rapidamente perdida com o advento da modernidade a partir do século XVI. Nos debates escolásticos, novamente entre o Papado e os franciscanos, a noção de direito natural tendia a mudar de sentido em benefício de um direito dentro da natureza antes da cultura (ver The Idea of Natural Rights, Brian Tierney). É verdade que os romanos tinham colocado em evidência que existiam várias categorias de direito: o ius civile (direto civil, a saber o direito da natureza fundado sobre as coisas), o ius genitum (direito das pessoas — ou bem candidamente, direito internacional) e o ius naturale (direito natural, enquanto direito animal, direito não humano). Mas apenas o primeiro constituía um direito verdadeiro, a justiça particular abordável ao jurista, enquanto que os dois outros repousavam muito mais sobre a lei natural dos estoicos e não constituíam nenhuma atividade jurídica.

Ora, então vemos aparecer ao final da Idade Média uma tentativa de definição do ius naturale buscando justificar a ordem existente. O ius naturale é subjetivo: ele é poder da pessoa. As premissas do contrato social fazem sua aparição mas com o único objetivo de dar uma legitimidade ao que existe, e não para inventar uma nova filosófica política. Pretendeu-se que houve um estado natural no qual os cristãos, através do ius naturale, estabeleceram voluntariamente convenções que formaram a ordem existente: os cristão entraram assim dentro da ordem civil. O mito é realmente endossado e não é tomado ao pé da letra, pois o que importa sobretudo é compreender a ordem existente em si, e não suas origens reais, sem dúvida complexas. O mito é apenas um substituto.

Todavia persiste que o ius naturale se torna cada vez mais importante dentro das discussões sobre o direito. E é com a descoberta do Novo Mundo que ele toma um impulso considerável: eis aí os selvagens que não conhecem a ordem civil cristã. Como poderiam eles então estar interessados e envolvidos pela justiça particular? Seria por isto, então, justo de os torturar, os massacrar, ou os traficar enquanto escravos? O neo-tomismo, notadamente da Escola de Salamanca reverte a ordem dos três direitos. Não se fazia dúvida entre os romanos que o verdadeiro direito era o direito civil. Mas doravante, o primeiro direito, este que deve ser examinado em prioridade, é o ius naturale, porque a humanidade não está toda ela inserida na ordem civil e os homens estão ainda no estado natural. Eis aí então o nascimento do direito natural enquanto direito em seu estado natural.

Ora, o que caracteriza o estado natural? Sua ausência de ordem, o múltiplo e o diverso. Não existem homens, existem indivíduos. Não há relações entre estes homens, todos distintos, todos independentes, todos ‘individuais’: não pode então existir o justo e a justiça particular. No estado natural, existem apenas potências e poderes diversos. Eis aí o que é o ius naturale, direito do estado natural: um conjunto de potestas, de poderes. O direito natural, é o poder do indivíduo.

O direito natural advém plural: existem direitos naturais, que pertencem aos indivíduos. Direitos subjetivos que caracterizam a potência dos indivíduos. Direitos ilimitados do indivíduo, ao menos enquanto ele não for submetido pelo constrangimento d’outrem. Um indivíduo submetido a um outro tem menos direito que o segundo, ele tem menos poderes, ele se submete a uma coerção que limita seus direitos naturais.

Surge uma nova definição da liberdade em complemento desta nova consideração do direito natural: a liberdade não é mais o estado do homem que se realiza em seu ser, não é mais beatitude do cristão, é simplesmente o estado onde não há constrangimento ao indivíduo.

É livre não aquele que se realizou enquanto ser, em seu ser, mas aquele que não submeteu-se ao constrangimento dos outros, isto quer dizer, quem pode gozar de sua potência, e então, de seus direitos naturais. Liberdade animal, dirão os conservadores, sem cometer um erro grosseiro. Ora, evidentemente, pois o estado natural é sinônimo de potências ilimitadas, e todo mundo é submetido aos constrangimentos d’outrem, e então, todo mundo é ao mesmo tempo livre e não livre.

É o ponto de partida da filosofia de Hobbes, precursor do liberalismo. O homem goza dos direitos naturais em estado natural na mesma quantidade que ele não goza devido ao erro dos outros: o homem é um lobo para o homem. Insegurança manifesta nesse estado natural que priva os indivíduos do direito mais elementar: aquele de se conservar. É por isso que é necessário abandonar o estado natural por um estado civil, abandonar sua potência ilimitada por um contrato social em benefício de um soberano omnipotente, garantia de segurança. O que não retira em nada o direito de se conservar, quando somos ameaçados diretamente pelo soberano.

Com Locke o estado natural não é tão perigoso quanto em Hobbes, mas lhe falta uma justiça, aquela que fará serem respeitados os direitos naturais de cada um. Donde o contrato social que não visa abandonar os direitos naturais em benefício de uma legislação civil arbitrária, mas que visa, ao contrário, instituir uma potência civil servindo para lhes garantir ao máximo e igualmente a cada um esses direitos. Igualdade de poderes, igualdade de direitos, igualdade da liberdade. Ao mesmo tempo que estas igualdades, vieram direitos ilimitados, direitos absolutos.

O direito natural aristotélico era realista: ele reconhecia nas coisas existentes as relações justas. Ele era organizador, conservador mas capaz de evolução, equilibrado, e sobretudo abordável ao jurista.

Os direitos naturais dos primeiros liberais são inversamente idealistas, e a crítica à isto é cômoda: eles encontram seus fundamentos em um mítico estado natural levado demasiadamente a sério. Eles são revolucionários no sentido em que eles impõe uma realização nova, uma mudança de ordem, eles são niilistas por não reconhecerem nada além da potência, e são muito generalizados, ilimitados, absolutos, inconsistentes para poder serem abordados por juristas. Eles estão eternamente destinados a não ser satisfeitos, como provou a história.

Edificaram numerosas constituições no mundo ocidental, proclamaram direitos naturais do homem ao preço de revoluções sangrentas, e para que resultados? Estados enormes legiferando a torto e a direito. Os direitos naturais fizeram cair as barreiras à potência, e se encontraram rapidamente ultrapassados. Mas já em teoria eles eram insustentáveis, eles serviam para justificar tanto a potência absoluta do soberano (Hobbes) quanto os direitos oponíveis do povo face ao mesmo soberano (Locke), prova de sua profunda inconsistência, e é por isto que ninguém hoje em dia os defende mais, mesmo aqueles que pretendem ser seus herdeiros, como iremos tentar demonstrar logo em seguida.

La Vierge des Cerises, 1515 (Titien)

O Direito Natural Como Direito da Razão: Kant e o Respeito à Pessoa

A mitologia do estado natural tornava os direitos naturais insustentáveis e demasiadamente superficiais. Para conservar as idéias novas que eles portavam contra a potência absoluta do soberano (e é justamente a partir dos direitos naturais que Hobbes procurou justificar esta potência absoluta), era preciso fundamentá-las de maneira diferente.

É através de Kant que os direitos naturais vão encontrar sua nova posição. Em vez de procurar os direitos naturais no estado natural, Kant espera encontrá-los na natureza humana.

O que constitui a essência do homem? Sua qualidade de sujeito: o homem é um ser capaz de determinar seus próprios fins. Esta é a essência mesmo de sua racionalidade e de sua liberdade. Um ser racional não é um ser que faz escolhas racionais, é um ser que é dotado da razão, isto quer dizer, que pode determinar seus próprios fins, fazer escolhas, utilizar os meios para realizar seus fins, por oposição ao animal que não determina seus próprios fins e que reage unicamente em resposta a seus instintos.

Todos os homens são sujeitos: eles determinam seus fins, e em vista de os realizar, eles utilizam meios. Estes meios podem ser ruins, e isto não retira nada do fato de que os homens são racionais.

Ora, se o homem utiliza outro homem como um meio para realizar seus fins, ele o reduz ao estado de objeto. Se Jean reduz Alphonse à condição de escravo, em vista de satisfazer seus próprios fins, ele reduz Alphonse ao estado de objeto e nega sua qualidade de sujeito. Ele se engana.

Eis aqui então fundamentado na razão o dever de cada homem: respeitar a qualidade de cada um. E isto significa: não utilizar outrem como meio para a realização de seus fins. Não reduzir o outro a um estado de objeto e respeitá-lo enquanto sujeito.

Todo o direito deve decorrer desse indiscutível dever fundamentado na razão: a razão nos ordena respeitar as pessoas enquanto sujeitos. Se trata da norma última, a regra de direito da razão pura: respeitar as pessoas.

O direito é antes de tudo o respeito de seu dever. Existe uma fronteira inviolável à ação de cada sujeito que é o outro. O direito se define assim de maneira negativa: o direito de outrem é o respeito que eu lhe mostro, e inversamente, meu direito é o respeito que cada um me mostra. Todo mundo deve gozar de uma zona de autonomia, igual para todos, que é o direito de cada um, porque todo mundo deve respeitar todo mundo. Ou, para dizer o mais simplesmente possível: a liberdade de cada um termina lá onde começa a de outro.

Ser livre, é ser racional, e ser racional implica deveres: o respeito da pessoa.

Isto não nos faz lembrar de nada? Eis aí a filosofia de Ayn Rand, que detestava Kant e retorcia seus conceitos, mas devia a ele quase tudo. Eis aí a filosofia de quase todos os liberais do século XIX: respeito da pessoa, de sua autonomia, de sua natureza de homem. Malgrado as aparências estamos longe da filosofia de Locke, longe de um direito do estado natural.

Esse direito natural é um direito racionalista, que pretende estar fundado sobre a razão pura, sobre o último e indiscutível mandamento da razão.

Ora, quais são as consequências do ponto de vista jurídico? Todo direito deve decorrer da razão pura. O direito não é um assunto do ser, mas do dever ser (devoir-être). O direito não porta nenhum interesse ao que é, às coisas, como no direito de Aristóteles, mas somente ao mandamento último da razão pura. O jurista não tem portanto que descobrir o direito, esse direito lhe é dado: a constituição deve expor o mandamento da razão e todo o direito deve ser pautado na constituição. Hierarquia das normas que o jurista deve validar, confirmar, realizar, com a constituição do direito positivo em mente, ela mesma submissa à razão pura.

O direito civil não é, como na concepção de Hobbes ou de Rousseau, fruto de uma vontade, seja ela particular (esta do soberano) ou geral (esta do povo), mas ele está submisso à norma última, dada pela razão pura. Premissas do positivismo jurídico.

Sendo assim, em Kant, esta norma é definida e é indiscutível, ela não pode ser qualquer coisa ou não-importa-o-que. Kant não confunde também o direito e a moral: o direito não é a moral, ele não é a lei natural dos estoicos ou a lei divina da Cidade de Deus: ele é uma parte da moral desde que ele forneça, em respeito a outrem, o mandamento último da razão pura. O direito é dever, disto decorre que ele é moral.

Bem mais equilibrado que os direitos naturais enquanto direitos do estado natural, o direito racionalista de Kant não é portanto menos frágil. Nele o jurista é reduzido ao estado de executor submisso das fontes positivas e hierarquizadas do direito. Basta que o direito positivo não respeite, por pouco que seja, a razão pura, e já estará criada uma vastidão de juristas submetidos à toda espécie de arbitrário.

Além disso, negando que o direito deve se interessar ao que é, se concentrando somente sobre a pessoa, a filosofia de Kant produziu inconfortáveis ficções jurídicas que deveriam nos parecer hoje em dia ridículas. É o caso, por exemplo, da pessoa moral, vasta piada jurídica servindo para designar as organizações. Ao invés de reconhecê-las pelo que elas de fato são; e como somente as pessoas, na perspectiva kantiana, podem ter direitos; foi necessário tratar as organizações como pessoas. Vivamente, que se faça a mesma coisa com os animais…

Mas é também no que diz respeito ao socialismo que o direito racionalista se descobriu muito fraco, pois respeitar a pessoa pode implicar inúmeros deveres diferentes e contrários. Os socialistas não pretenderiam, desta sorte, fazer nada mais do que respeitar a pessoa melhor do que ninguém. Ora, qual garantia temos nós de realizar o direito liberal quando este aí não é, no fundo, nada mais que um pedaço de papel sobre o qual está escrito ‘constituição’?

Nesta segunda parte do trabalho, nós abordamos então as duas grandes concepções modernas do direito natural: esta do liberalismo clássico, como direito do estado natural, e esta kantiana do direito natural como mandamento da razão pura, se exprimindo como dever de respeito à pessoa. Ora, o que aconteceu com o direito entre o final do século XIX e nossa época contemporânea no começo do século XXI?

Como um complemento desta rápida exploração das quatro grandes concepções do direito natural, eu desejo escrever algumas palavras sobre temas correspondentes ao tópico aqui abordado: o impulso da ciência jurídica; a distinção liberal entre os ‘direitos de’ e os ‘direitos a’; a filosofia do direito de Leoni e de Hayek; a filosofia do direito de Rothbard e dos libertários.

Femme à la Fourrure, 1576 (Titien)

A Ciência Jurídica

Como todos os campos do conhecimento do Homem, o direito teve, ao contrário da filosofia, vocação a se tornar científico ao longo do século XIX. Os juristas tiveram por pretensão fundar uma ciência jurídica longe de toda filosofia, pois como cada um sabe, a filosofia é incerta, duvidosa, contraditória. Nada a ver com a boa ciência, segura, certa, expeditiva.

É assim que vimos nascer numerosas concepções do direito que pretendiam todas ser científicas: terminados os julgamentos de valor: o direito não deve se pronunciar sobre nada além dos fatos. Seu objetivo não é a justiça, um ídolo vago, mas o conhecimento dos fatos jurídicos. O positivismo sociológico pretendeu então que o direito era fundamentado sobre o conhecimento sociológico: é necessário estudar a sociedade para constituir o direito. As coisas aristotélicas, a lei natural, a vontade ou os deveres da razão, nada disso tudo deve ser tomado em consideração pelo direito.

Eis outra forma mais extrema de ‘sociologismo’: pretender que o direito não é nada mais do que a antecipação do julgamento expresso pelo jurista. É direito o que o jurista estima ser o direito. Sociologia do direito ao lugar e ao invés de uma ciência do direito.

Depois veio o positivismo jurídico: o direito é um dado objetivo: suas justificações ou suas raízes não são objeto do trabalho do jurista. Este aí tem apenas um objetivo: utilizar o direito positivo nos casos que lhe são expostos. Isto não significa necessariamente que a justiça não existe, mas isto não diz respeito ao jurista de saber se o direito é ou não é justo. O Estado de direito é o Estado onde o direito é escrito e definido, nada mais do que isto, ele é também aquele no qual o jurista tem todos os dados objetivos para fazer seu trabalho. A Alemanha nazista era então um Estado de direito. O jurista não era mais do que um técnico do direito, da mesma maneira que o político se tornou, com a ciência política, um técnico da política.

Cientismo jurídico ao qual já passou do tempo de colocarmos um fim. A filosofia é para isso de primeira importância.

“Direito a” e “Direito de”

A distinção entre os “direitos a” e os “direitos de” é utilizada pelos liberais contra os socialistas. Seriam verdadeiros apenas os “direitos de fazer qualquer coisa” enquanto que os “direitos a qualquer coisa” não seriam verdadeiros direitos porque esses exigiriam que outrem deixe de gozar plenamente de seus “direitos de”: se eu pretendo que existe um “direito ao alojamento”, eu entro em contradição com o “direito de propriedade”.

Trata-se aqui da retomada sob outros termos da filosofia kantiana do direito: determinar zonas iguais da autonomia de cada um para todos. Mas nós poderemos observar, com grande facilidade e conforto, que os liberais entram imediatamente em contradição com eles mesmos quando eles defendem o “direito à vida” e não vêem que este direito justifica tudo e qualquer coisa que possa permitir preservar a vida de cada um.

E certamente, os “direitos de” são exclusivos uns dos outros, e é evidente que o “direito de matar seu vizinho” entra em contradição com o “direito de viver tranquilamente e segundo sua maneira”. O caráter ilimitado dos “direitos de” é tão evidente que nos perguntamos por que nos atamos a uma distinção tão inepta. Kant era mais rigoroso.

Leoni e Hayek

A filosofia do direito de Leoni e de Hayek apresenta um caráter realmente original, mesmo que estejam bem próximas da concepção anglo-saxônica do direito. O direito de Leoni e Hayek é essencialmente jurisprudencial. Os juízes devem talhar durante um processo: criação de uma jurisprudência. Se a jurisprudência se apresenta inapta (multiplicação dos conflitos, profunda injustiça ressentida, etc.), ela deve ser abandonada. O direito é então um processo de validação e abandono das jurisprudências: como em ciência onde a verdade só pode ser aproximada, mas não determinada de uma só vez, o justo não pode ser compreendido de uma só vez, se aproxima dele paulatinamente com a eliminação das jurisprudências injustas.

Processo dinâmico de validação mas que apresenta alguns inconvenientes. Vemos mal como é determinada a injustiça sem que se tenha idéia do que é justo. Um sentimento de injustiça não é suficiente para dizer que uma coisa é injusta. Não é o sentimento de erro que, em ciências, torna um enunciado falso. Dizer que a injustiça é o que não é justo não permite determinar as injustiças, enquanto que a ciência tem um grande privilégio: o erro é o que não é verdade, e a razão é bem capaz de determiná-la.

Ora, se o direito não é racional, vemos mal como poderíamos definir o injusto. Igualmente, a procura de um equilíbrio jurídico não é satisfatória, sobretudo hoje em dia onde, precisamente, os insatisfeitos se encontram em toda parte e os grandes sistemas ideológicos têm pretensões de definir o direito. Em Hayek e Leoni beiramos o ‘sociologismo jurídico’.

Da mesma forma, este direito como processo de validação não oferece nenhuma distinção entre lei e direito. A palavra ‘law’ em inglês confunde inteiramente os dois, diga-se de passagem.

Hayek estava portanto bem próximo da solução, quando aprofundou suas investigações na filosofia grega. É exatamente na cosmos, ordem espontânea, que o direito deve ser procurado, mas Hayek se interessou unicamente à nomos, à lei grega não-escrita. Em nenhum momento em Direito, Legislação e Liberdade temos em questão o dikaion de Aristóteles ou o ius dos romanos!

Rothbard e os Libertários

Rothbard goza de um imenso prestígio entre os libertários e os liberais contemporâneos. É preciso dizer que Rothbard trabalhou, por toda sua vida, à procura da realização de uma espécie de síntese última do pensamento da liberdade, evidentemente, favorável às suas teses anarcocapitalistas. Eu penso poder dizer sem correr o risco de me enganar que todos os erros e confusões cometidas pelos liberais quanto ao direito natural se devem à influência de Rothbard. Eu me desculpo por atacar o ícone libertário, mas Rothbard era, com toda honestidade, um péssimo filósofo.

A Ética da Liberdade é um ápice em matéria da absurdidade estendida ao extremo. A começar pelo título. Um tratado de direito, qualificado de ética. E não ética do direito, mas da liberdade. Como se o direito e liberdade fossem sinônimos. As leituras feitas de Aristóteles e São Tomás de Aquino são grosseiras, elas são feitas dentro da pura tradição progressista que ou reconhece no passado apenas idéias ultrapassadas, ou apenas idéias validando conceitos modernos. Não podemos compreender o que quer que seja do direito natural aristotélico lendo Rothbard.

Em seguida, sem a menor dúvida, se desenvolve ao longo do tratado de Rothbard a geometria do raciocínio, o racionalismo ao absurdo, a teoria axiomática grosseira, Rothbard não nos poupa de nada. Ideias fortemente estimulantes, certamente, mas tão distanciadas do mundo real e do trabalho jurídico que não vemos qual seu interesse e importância. Rothbard mostra muito desdém pela História da filosofia do direito, e isto é uma pena, ele poderia ter evitado de cometer tantos erros. E pensar que, em epistemologia, Rothbard se reclamava discípulo de Aristóteles quando tudo nele cheira ao kantismo e ao racionalismo!

Os libertários pretendem ser os continuadores do liberalismo clássico, se contentando de ir à raiz de suas idéias, donde o anarcocapitalismo. Erro evidente, porque o direito dos libertários é um direito axiomático saído da razão a priori, malgrado suas pretensões de serem fiéis à Aristóteles (verdadeiramente, nos perguntamos às vezes por que Aristóteles não era libertário…), e não é certamente um direito do estado natural. Quando Locke invoca o direito de propriedade, ele não faz um axioma, ele o considera simplesmente um direito do estado natural. O liberalismo clássico não pode não ser favorável ao Estado, pois o direito é concebido nele como uma potência ilimitada que deve ser controlada e constrangida, donde o papel necessário do Estado. Se Locke ainda estivesse vivo, ele não se tornaria anarcocapitalista, à condição de abandonar toda sua filosofia, ele não se tornaria anarcocapitalista simplesmente a seguindo.

É desta forma de grande necessidade que os liberais contemporâneos tomem consciência das grande nuances entre as escolas liberais, adotando uma atitude realista a seu respeito, evitando as pulsões idealistas e ideológicas da… Grande Síntese Liberal?

Bibliografia

Michel Villey, Leçon d’Histoire de la philosophie du Droit

Michel Villey, Philosophie du droit (I et II)

Michel Villey, La Formation de la pensée juridique moderne

Michel Villey, Le Droit et les Droits de l’Homme

Alain Sériaux, Le Droit naturel

Aristote, Éthique à Nicomaque

Brian Tierney, The Idea of Natural Rights

Hobbes, Léviathan

Locke, Traité du gouvernement civil

Kant, Métaphysique des mœurs

Bruno Leoni, La Liberté et le Droit

Hayek, Droit, Législation et Liberté

Rothbard, L’Éthique de la Liberté

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