A chuva que desbarranca a Rocinha

Favela mais famosa do Rio de Janeiro é o terceiro bairro mais afetado pelas chuvas

Matheus de Moura
Matheus de Moura
3 min readApr 11, 2019

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A cidade do Rio de Janeiro enfrenta desde segunda-feira (8 de abril) a chuvamais forte em 22 anos. Ontem e hoje a chuva persiste, embora não deixe tantas pessoas ilhadas, mantém-se desestruturando o solo das regiões de risco, aumentando as chances de desabamentos e, por consequência, o número de mortes — até agora são dez pessoas mortas.

Além de questões climáticas, muito desta tragédia se deve à falta de investimento do município. Na gestão do prefeito Marcelo Crivella houve umaqueda de 71% nos gastos com enchentes. Além disso, neste ano, a prefeituranão gastou nem um centavo sequer com drenagem urbana e contenção de encostas. Crivella acabou fazendo uma mea culpa e, numa coletiva de imprensa, admitiu imprudência por parte da prefeitura.

Segundo dados do Alerta Rio, os três bairros que saíram mais afetados pela chuva foram o Alto da Boa Vista, com 355 mm de chuva, o Jardim Botânico, com 352 mm, e a favela da Rocinha, com 347 mm. E, justamente, por se tratar de uma favela, a comunidade é o bairro mais vulnerável dentre os três, tendo recebido 83 mm de chuva já na primeira hora.

No dia 09 de abril, o Cotidiano UFSC foi à Rocinha para ver como as famílias que foram afetadas pelas torrentes d’água estão lidando com a situação.

Rose Anselmo, 37 anos

Era meados de 18h do dia 08 de abril quando Rose ouviu o portão arrebentar e trazer uma cachoeira para dentro de sua casa, localizada na altura 455 da principal rua da Rocinha, a Estrada da Gávea.
Ela mora na Rocinha desde pequena, tendo se mudado para esta casa há 10 anos. O lar pertenceu à avó, a qual morreu há 20 anos. Hoje, Rose divide a residência com sua sobrinha/afilhada Vitória Rodrigues.
Tudo ocorreu porque parte do lixo dos moradores que estava sendo levado morro abaixo acumulou embaixo de um carro preto, o qual se encontrava colado à calçada, pois, como em quase toda favela, não há estacionamento nas casas.
A água, que descia violentamente, teve seu curso desviado, caindo como uma cachoeira, nas residências do número 455. Rose, que era uma das mais afetadas, gritou por socorro a uma vizinha, que assim que entrou na casa teve sua perna prensada contra a parede pelo fogão, que foi levado da cozinha pela correnteza.
Todo material de manicure da Rose foi estragado pela água. Ela trabalha com isso num salão do Shopping Gávea, mas tira em torno de 400 reais mensais extra atendendo mulheres em sua casa no tempo livre.
Ela perdeu inúmeros móveis, entre eles um fogão comprado havia dois anos e um colchão dado de presente pela mãe. Se não fosse as mais de 10 pessoas a ajudando naquela mesma noite, o prejuízo teria sido muito maior.

Kenia Vanessa de Paula, 47 anos

Kenia teve sua casa inundada concomitantemente à sua vizinha, Rose. Ela estava no banheiro quando a água invadiu sua casa pela tampa de baixo.
A água subiu a mais de meio metro em sua casa, mais ou menos na altura apontada pela vassoura.
Kenia, desesperada, correu para fora de casa, clamando por ajuda, antes que a destruição fosse completa. Conseguiu ajuda de um rapaz para furar um buraco na parede do quarto e outro no da sala, para que assim a água escoasse.
O rapaz cortou a mão no meio do ofício, mas continuou até o fim. Assim que feito, pediu que saíssem da casa, afim de evitar que tomassem um choque. Kenia desligou o disjuntor
O estrago em sua casa foi maior do que na de Rose, tendo a lama subido a um nível maior e destruído mais móveis, todos comprados nos últimos dois anos, quando Kenia se mudara de Belo Horizonte para Rocinha, após um divórcio e o falecimento de dois irmãos.
O amanhecer do dia 09 foi todo dedicado a separar o que deve ir para o lixo do que pode ser aproveitado. Nesta função sua maior companheira foi a ex-cunhada, também oriunda de Minas Gerais.
Enquanto isso, seus sobrinhos se dedicavam a retirar toda lama de dentro de casa, balde a balde, numa função que duraria horas a vir.
Kenia segurou o choro do momento do acontecimento até às 15h do dia 09. Sabia que uma vez aberta a porta do sofrimento, não conseguiria se controlar. A catarse veio quando entrou no quarto de visitas, separado para guardar alguns pertences pessoais e receber o sobrinho mais novo. Ali, a água subiu quase um metro. Dentre todas as coisas a serem estradas ali, como roupas de cama e vestes especiais, o que despertou sua dor foi o álbum de fotos da formatura em magistrando.

Moradores do Lamboriaux

Entre às 15h e 16h, uma casa inteira havia desabado de vez na região do Lamboriaux, uma região deveras altas da Rocinha. A família, entretanto, já não se encontrava na residência há muitas horas, tendo percebido os primeiros sinais de desabamento perto das 9h.
Todos os vizinhos na linha da casa caída estavam se preparando para evacuar de vez desde a manhã, quando apareceram as primeiras rachaduras no chão. O Cotidiano UFSC chegou menos de uma hora depois do acontecimento, e a terra escorria, soturnamente.
Na hora de escolher o que levar, a prioridade era o mais caro, ou seja, eletrodomésticos e móveis, em seguida, os objetos pessoais de grande valor emocional, por fim, os mantimentos. Mesmo quem não mora em alguma das casas em risco se dispôs a ajudar.
José Alves, de 41 anos, é um dos infortunados que teve que sair de casa ainda cedo. Encontrava-se sozinho em sua residência quando viu que a rachadura se formando. Ligou para a ex-esposa e pediu que deixasse as filhas com ela até segunda ordem.
Ele trabalha de pedreiro desde que se mudara de Pernambuco para o Rio de Janeiro, há 20 anos, tendo construído a casa com as próprias mãos. Conseguiu salvar só televisão, som, roupas e documentos, os eletrodomésticos maiores ficaram para trás.
Como a maior parte do chão ali é barro, o risco de carregar móveis e outras coisas pesadas é muito alto. Por isso, as crianças foram ordenados a ajudar pegando os tijolos largados pelo terreno, sobras de obras, e quebrando-os nas áreas íngremes, aumentando assim a sustentação do solo.

Originally published at https://medium.com on April 11, 2019.

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Matheus de Moura
Matheus de Moura

Jornalista. Escritor. Neguinho. Catarinense no Rio. Co-criador de: N.E.U.R.A Magazine e Não Há Respostas Quando Morre uma Pobre