Este boi ficou escondido em uma praia deserta e fora comprado para as últimas farras do boi daquela semana — quem sabe do ano/foto: Matheus Vieira

O boi tarda, mas não falha

Matheus de Moura
Matheus de Moura
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18 min readMay 4, 2018

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A história do que realmente acontece numa farra do boi, a polêmica tradição açoriana que resiste há 300 anos em Santa Catarina.

Diferentemente do que pinta o noticiário, a tauromaquia catarinense conhecida por Farra do Boi — proibida há 21 anos — não é um ato lamentável, muito menos prática sangrenta. É uma tradição trazida a Santa Catarina por colonizadores açorianos que tentavam manter vivas as diferentes brincadeiras praticadas com bois nas ilhas portuguesas. Hoje em dia, a farra se reinventa com impressionante iniciativa juvenil, principalmente no distrito de Ganchos, no coração de Governador Celso Ramos — uma cidade moldada em praias rodeiam morros de mata fechada e rochas lisas, que, junto à brisa do mar, geram frescores noturnos que alguns comparam aos das Ilhas dos Açores. De todos os municípios que costeiam SC, este tem as farras de maior porte.

O caminho para a festa por si só já é cansativo: quinze quilômetros pela sinuosa Avenida Ganchos, cuja iluminação é tão esparsa quanto a pista é estreita e as subidas escorregadias, apesar do asfaltamento recente. No trajeto, abrem-se pequenas ruas barrosas, povoadas por casinhas de madeira ou alvenaria.

Qualquer parada para ir ao banheiro ou comer antes de chegar em Ganchos vem com um aviso dos moradores dos outros bairros: cuidado com os gancheiros. Eles são violentos, dizem os donos de botecos, restaurantes e lanchonetes. Dão o aviso, mas não informam onde a farra ocorre, desviam olhar, dizem não ser da cidade e disfarçam o sotaque manezinho típico dos nativos da costa da Grande Florianópolis. Suados graças ao labor das noites de verão, não têm saco para alimentar a curiosidade dos não-nativos curiosos pela farra, e se cansam após as insistências, reforçando o aviso e dando um aceno de adeus.

A altura em que a festa decorre fica no âmago de Governador Celso Ramos, no bairro central de Ganchos, os Ganchos do Meio. É sexta-feira santa e desde as nove horas da noite latas-velhas da década de 70, carros populares e caminhonetes cujo habitat natural é Jurerê Internacional vão estacionando. Eles se posicionam na frente do quiosque localizado no lado direito da rua, o Hooks (isso mesmo: Ganchos, em inglês), no estacionamento do arqueado galpão laranja da indústria do pescado, nas vagas frente ao parapeito do cais e ao redor da pracinha bem arborizada, no lado esquerdo da rua.

Os porta-malas se abrem e a música sai.

Festa de som automotivo. Cada automóvel irá reproduzir um gênero musical, e assim se manterá até o dia raiar. A repressão policial tem levado a brincadeira com o boi a acontecer cada vez mais tarde, por volta das seis ou sete da manhã.

Prevendo a longevidade do evento, as pessoas chegam em grupos e vão se separando em núcleos, o que é visível na organização geográfica. Frente ao prédio da indústria da pesca e do restaurante Hooks fica a maior parte da massa: homens de boné aba reta, vestindo bermudas tactel e camisetas típicas de skatistas, tão largas e compridas que quase tocam os joelhos; há aqueles que preferem as regatas, expondo os braços rasgados pelas horas de malhação intensa; outros andam com nariz empinado e ar pomposo, vestem gola polo e calça jeans colada; as mulheres, shorts jeans rasgados com pontas desfiadas e blusas regatas; pelo menos cinco garotas vestiam o exato mesmo look: blusa branca com a marca Supreme escrita sobre uma tarja vermelha e short jeans rasgado. Aqui o funk disputa espaço com a batida eletrônica clássica de todas as festas de som automotivo da Grande Florianópolis: o tuntstunstuntuntuntuns genérico, de duração indefinida.

Na região do cais, zanzam tropeçando os velhinhos bêbados, muitas vezes descamisados, expondo corpos trincados pelo trabalho braçal e enrugados pela idade que chegou mais cedo justamente pela labuta pesada. Eles rondam com latinhas de cerveja na mão, interagindo e brincando com as outras tribos do cais: os jovens “alternativos” e os de classe-média-alta.

Entre os alternativos estão garotos de fora, como é o caso da dupla de Itapema que viajou só para ver a farra; típicos hipsters universitários: têm barba longa, alargadores nas duas orelhas, usam regatas da cultura hip-hop e tattoos por todo o corpo. Os dois bebem e conversam com um grupo de garotas LGBT, com aparência queer, composto por um casal que vive em constante tensão, um misto de meninas de amor livre, que vez ou outra ficam entre si e uma menina ruiva altamente enérgica, que dança e domina todos os funks com o corpo e a alma e lidera o grupo com sua voz rouca e calça militar. Todos os alternativos ouvem funk, principalmente as meninas, que subvertem o sentido das letras para sua própria sexualidade, cantando-nas umas para as outras.

Já os jovens de classe-média são rapazes que usam brincos, têm barba bem aparada, corpos sarados e roupas de corte fino. Dançam com o copo de bebida na mão, passos tímidos. Costumam estar acompanhados ou por amigos do mesmo porte, ou por namoradas com corpinho panicat. Formam casais marombas. Eles preferem sertanejo, mas também ouvem o batidão.

A região da pracinha e o interior do quiosque são áreas de convívio comum. A praça serve para descanso, enquanto o Hooks para abastecimento de bebida, comida e uma eventual ida ao banheiro unissex, que até o fim do expediente (duas da manhã) já virou uma pilha de papel higiênico acompanhada por uma privada entupida por vestígios de absorvente interno. Em outras noites, a parte da frente do Hooks serviu para homens como o jovem ruivo de barba rala conhecido por Du angariarem os fundos para a compra dos bois. Os amigos contribuem com o que tiverem, vai de cinco até cinquenta, cem reais. Hoje, esse não é o caso. O arrecadamento já se deu por várias noites. Du só quer curtir.

Todo mundo já tem seu saquinho de gelo separado aos pés e, ao lado, garrafas de uísque, vodka e engradados de cerveja. Os bem de vida carregam os drinks em coolers. Quem é VIP, entretanto, tem acesso a uma casa de três andares, dos quais um serve para comércio e dois para moradia. Ali dentro, todos têm bebidas conservadas na geladeira, dançam com amigos seletos e comem comida fresca. Dali de cima, vê-se todo movimento — inclusive o dos homi.

A meia noite chega e alguns policiais param a viatura frente à pracinha, saem do carro e ficam eretos de braços cruzados, franzindo o cenho e cerrando os olhos para os farristas. Têm a graça e simpatia de rottweilers. Quase ninguém dá bola para os fardados, ignoram-os como um filho ignora os pais ao ir numa festa sem permissão. Os únicos a se estressar de verdade são os farristas com paixão ardente pela tradição. Eles são facilmente reconhecidos pelas peças de vestuário que fazem alusão à brincadeira. A mais comum consiste em uma camiseta ou manta de cores preto e vermelho separadas por uma listra amarela e os dizeres “12 anos de farra, quer espaço vira astronauta”. Também recolheram dinheiro durante os dias que antecedem a semana santa.

Enquanto a PM e os tradicionalistas trocam farpas no olhar, três rapazes moldados em suplementos e 80kg no supino passam sem camisa, arqueando o braço para valorizar a musculatura. Eles caminham devagar na frente das garotas queer no cais, desinformados quanto à sexualidade delas, inflam os músculos mais e mais. Desapontam-se ao perceber que ninguém se importa com seu corpos. Assim, os músculos murcham, a postura relaxa, o olhar se perde no chão e eles seguem cabisbaixos.

Às duas horas, o Hooks fecha e as pessoas continuam a dançar. Subindo um pouco a rua, uma caminhonete estaciona a uma distância considerável da festa principal. Saem dela duas quarentonas montadas em acessórios de oncinha. Estão acompanhadas de homens também de meia idade, com barrigas salientes, fruto de muitos anos de cervejinhas. Eles deixam as portas abertas, recostam-se no capô e ligam o som mais destoante de todos: músicas dos anos 80.

Um rapaz gordo, junto a seu amigo severamente magro, passa rindo dos “coroas” que mexem os dedinhos para o alto ao som da banda Eurythmics. Ao vivo, os versos de “Sweet Dreams” se mesclam aos do funk “Boca de Pelo” em um cadinho tipicamente brasileiro.

Ninguém se incomoda ou pede para abaixar o som.

A única coisa que irrita alguns é o Vrrooom das motos que passam empinando. Com os escapamentos abertos, elas abafam as músicas momentaneamente.

Noutras noites, quando o relógio batia três horas, as calçadas ficavam lotadas de pessoas cansadas, sentadas com as mãos no rosto e os cotovelos apoiados nos joelhos. Na sexta-feira santa, não. Parece que elas se retroalimentam de seu próprio cansaço, gerando, curiosamente, mais energia ainda. A essa altura, o suor desse frenesi já está profundamente misturado com o fedor emanado pelo mar abaixo do cais: merda decomposta com peixe e lixo humano. Isso impregna as roupas junto ao tabaco queimado dos cigarros. Estranho é como nenhum desses cheiros impede as pessoas de se amarem com veemência.

Nem de se odiarem com mesma intensidade.

Craack!

Os cacos da garrafa de vidro se esfarelam no asfalto umedecido pelos chuviscos esporádicos. Instintivamente, todos que ouviram o barulho retraem o tronco, levando a mão à cabeça.

“Porra!”, grita alguma voz grossa e masculina.

Questão de segundos. Mais de cinquenta pessoas correm para perto da escadaria que dá acesso ao casarão de três andares, onde ocorre a festa mais privê. Xingões sacodem a multidão. Soco aqui, soco acolá. De início, muitos se batem, ninguém vê quem apanha. Aos poucos, só os dois insistem na briga.

A polícia observa, inerte. Os únicos músculos que se movem são os do rosto. Esboçam sorrisos caninos. Quatro policiais em pé, ainda na frente da praça, enquanto quase cem pessoas tentam separar dois homens altamente agressivos, um no pé da escadaria outro no topo, saindo da casa.

“Filho da puta!”, urra um deles.

“Para, por favor!”, suplica uma mulher com voz trêmula.

Dois minutos desde que a briga começou. São três horas da madrugada e a polícia ainda não fez nada.

Três e dois. Os quatro policiais se aproximam, a multidão se abre como o Mar Morto.

A dispersão é rápida. Alguns rapazes explicam, “ninguém quer se meter em confusão aqui, né. Eles que se virem.”

Todos observam a polícia acalmar o homem que fora atingido pela garrafa. Ninguém está feliz. Sentem que não dá para confiar nos PMs, ao mesmo tempo que estão enojados pelo cara que jogou a garrafa. “Tem que estragar a festa! Sempre tem um folgado. Esses gancheiros são uns folgados mesmo”, diz outro. Estranhamente, todos os gancheiros ali presentes parecem concordar com a afirmação.

Rodas vão se formando para comentar a briga. No fim, é quase consenso: a farra do boi mudou nos últimos dois anos. A violência aumentou juntamente à repressão, afirmam os moradores de Governador Celso Ramos.

Mais um grito de “filho da puta!” na beira da escada. O homem, com um corte na cabeça, continua a xingar o agressor. A polícia não gostou da atitude. A nem um metro de distância, um militar pega seu tubo de spray de pimenta do tamanho de um extintor de incêndio e desfere o gás nos olhos do agredido. Ele sai aos cambaleios, some na multidão. Outros se reúnem para conjecturar a motivação da briga.

Não são muito criativos. Acreditam piamente que tudo gira em torno de um único fator: mulher. Quando uma coisa assim acontece, têm certeza de que foi motivado por traição.

Dito e feito. A garrafa nada mais era que o símbolo da relação que se desintegrara após uma pulada de cerca. Desde o começo da tarde, o agressor vinha procurando o homem que teve um caso com sua mulher, a fim de “ensinar uma lição”. Não sucedeu. De noite, viu na festa uma oportunidade, a altura da casa ajudou. Foi só mirar e torcer para machucar de verdade. Ninguém respeita talarico, mas ao mesmo tempo, todos desaprovam o uso de violência para resolver o problema — mais por medo da polícia usar como desculpa para brutalizar a festa do que por acreditarem em paz e amor.

Cacetete numa mão, spray na outra. Militares vão se ajeitando. Parados na frente da casa onde ocorreu a explosão de “virilidade”, eles riem dos farristas. De quatro aumentam para oito policiais. Outros dois esperam frente às viaturas.

O volume da música está levemente mais baixo. As pessoas continuam dançando — com menos malemolência. Os rebolados de quadradinho já não tremem como há minutos, as bebidas já não são ingeridas como antes do estatelar do vidro. A luz das pontas de cigarro se destacam no meio da tensão.

Chega uma van da PM.

Quinze minutos se passaram desde a briga. Algumas bundas estão voltando a rebolar com intensidade. Alguns quadris a sarrar. O som volta com força.

As meninas no cais continuam bebendo suas vodkas com energético. Os rapazes dos carros voltam a rir e falar amenidades.

O esquecimento é rápido e intensificado pela bebida.

Militares continuam a conversar e gargalhar. Um deles treme a botina com impaciência.

Três e quarenta. Chega a caminhonete do Tático da PM. Normalmente, a dita repressão policial não passa de meras encaradas e, durante o dia, resgates de alguns bois — esse ano foram capturados 21. Hoje, entretanto, é uma daquelas exceções brutais. Saem dela homens fortes, sisudos, usando suas boinas a la francesinha — fofos. Eles carregam escopetas com balas de borracha. Marcham ao grupo de militares que espera na frente do prédio onde ocorrera a briga.

Juntos, os doze vão à principal fonte de barulho: os carros estacionados na frente do galpão da indústria da pesca.

Alguns jovens ainda riem. Inebriados pela vodka, dizem que não vai dar em nada, no máximo uma discussãozinha. Outros já se preparam para sair. Papinho aqui, papinho ali, os militares os forçam a desligar a música.

Em tom firme, um policial ordena:

“Deu rapaziada! Todo mundo pra casa!”

Som de decepção: “Aaaah…”

Uma a uma, as pessoas vão caminhando avenida adentro, na direção da praça. Ninguém demonstra resistência. Têm bom-senso — a polícia, não.

O estouro é um só. Bomba de efeito moral.

A névoa esbranquiçada passa o efeito de superexposição. O gás invade as narinas alheias e queima até a última veia do rosto. Os olhos se umedecem, as lágrimas se acumulam. Mesmo assim, todos correm. Não há tempo para parar. O perigo é iminente.

Alguns se escondem atrás dos carros, outros se protegem nas paredes. Três rapazes jogam garrafas na direção da PM, mas elas caem longe. Os militares marcham com calma. Atiram para o alto com bala de borracha e lançam gás de pimenta num grupo fora do campo de visão.

Um homem se pendura do lado de fora da cerca do cais. Ele encosta o pé numa pedra, mas escorrega e se machuca. Continua parado, tem medo de levar um tiro — saiu para brincar, não para ser preso. Sem funk e eletrônico, a música de agora é o grito de desespero dos que correm. Ele treme. Passo a passo, a polícia se aproxima. O pé dói. Seu amigo se pendura ao seu lado, não teve o azar de se machucar. Até pensaram em se jogar e cair na areia da praia, pois a altura é baixa e a água é rasa, mas o fedor os deixa receosos. Gás de pimenta com mar fétido, que mistura não seria essa? “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”, disse o do pé machucado. Assim como as pessoas que estavam se escondendo atrás de carros e paredes, eles são encontrados. Eles pulam de volta ao cais. Os militares, a uma distância de dois metros, apontam as armas carregadas com borracha para os rostos contraídos em medo. Os rapazes levantam as mãos e caminham com calma. Avisam “estou indo, estô indo, com calma, tô indo”. Não veem a hora de sair dali.

A mais ou menos cem metros da pracinha, as pessoas param de caminhar. Os policiais se instalam na praça novamente. Uma família se encosta na calçada de uma loja. Pai, mãe, filha, filho e primo, todos maiores de idade — alguns há pouco tempo. O patriarca reclama que a polícia sempre foi assim. “Até pegaram leve dessa vez”, diz. Eles deram sorte, sequer inspiraram gás de pimenta.

As tribos, antes separadas em diferentes áreas, agora se homogenizam em um grande grupo: os amantes da farra.

Eles entram na rua Canal do Engenho, onde o boi será solto. Cigarros de maconha se acendem, de tabaco também. Os carros são estacionados novamente. O funk volta a ressoar nos ouvidos alheios. É a volta do fervo. Os corpos suados e, até pouco tempo, trêmulos de pavor, agora se misturam no que os mais velhos dali chamam de libertinagem.

A polícia assiste a tudo. Eles assistem à polícia. Ninguém enrasca.

A maior concentração de gente fica bem na boca da rua, frente ao mercado Mônico, um edifício tipicamente açoriano, de arquitetura simples e retilínea. Sua parede está descascada, expondo a alvenaria antiga. A aparência decadente é intensificada pelo excesso de lixo despejado na lateral. Há ali caixotes, restos de comida, garrafas plásticas e de vidro, urina e colchonetes rasgados, infiltrados pela umidade restante das chuvas que monopolizaram o clima da Grande Florianópolis na última semana. Para os farristas, pouco importa. Mostrando-se sem nojo, algumas meninas decidiram dar sarradas no ar enquanto pulam nos colchonetes.

Motos e carros não param de chegar, brigam por espaço nas laterais da rua. Os recém-chegados rumam ao interior do Canal do Engenho, o fluxo muda. Aparentemente, uma família decidiu preparar um churrasquinho de última hora às quatro e tantas da madrugada. Os vizinhos saem à janela, portas e varandas, seja pelo cheiro da carne, seja pelo barulho.

Há uma certa calmaria meio ao caos. Estão todos serenos.

Passadas rápidas disputam espaço com as ondas sonoras do funk. Uma multidão corre para a rua.

“Polícia!”, grita uma voz masculina e aguda.

Em segundos, metade dos ali presentes se escondem nos becos. Descobrem que é alarme falso. Só uma viatura indo embora. Comemoram aos urros.

Seguindo a energia da festa, um caminhão-toco passa buzinando.

A polícia se atiça e força o motorista a parar. Abrem a carga. Nada.

Os farristas caem na gargalhada, aumentam o funk e voltam a dançar. Rebolam na cara das autoridades.

Em fila indiana, as viaturas passam pela rua, lentamente, com as janelas abertas. Os policiais encaram os farristas, mas não recebem a encarada de volta. Estão impotentes.

Vão embora.

O fervo continua até às seis horas.

Chega uma van com um grupo de mais de vinte homens altamente alcoolizados, jogando rojões perto das pessoas. Eles descem provocando, “não vai ter, não vai ter!”, se referindo à chegada do boi. Em suas mãos, cada um tem uma garrafa de bebida. Fazem parte de uma “família” — ou grupo, ou gangue — na qual cada um contribui com um valor próximo de 300 reais para comprar um boi. Uma forma mais elitizada de arrecadação.

A temperatura cai um pouco. O clima continua úmido. Mas o calor humano sobe, as buzinas vêm do além. Cessar de som. É agora. Seis e cinco da manhã. Não existe mais diferença entre as tribos, entre as pessoas, todos são farristas, até um policial que entrasse ali agora seria um. Em ritmo frenético, um caminhão-gaiola invade a rua buzinando, com o pisca alerta ligado. Marrom, pequeno e precário, ele treme como um avião em turbulência. Se acelerasse um pouco mais e empinasse o bico, talvez voasse. Os bois estão ali, eles não mugem, mas se irritam, debatem-se contra a madeira mal pintada do caminhão decadente. Como gatos, as pessoas pulam para fora do caminho da máquina. Seguem correndo atrás dele. Farristas saem de todos os lugares, das casas, dos telhados, dos cantos, das paredes, dos carros, debaixo dos carros, das vielas. Gente nunca vista antes, uma multidão. Na corrida, alguns perdem o celular, a carteira, o chinelo. Um jovem rapaz que já morou em Governador perdeu o smartphone, voltou para buscar na mesma hora, não estava mais lá. Sua namorada tentou consolá-lo, mas ele deu de ombros, desapegado. Ela foi trazida ali pela primeira vez. Natural de Rio Grande do Sul, foi cooptada pelo namorado a conhecer uma farra.

Dois homens sobem no caminhão para abri-lo, porém o fazem na direção errada. Ligeiro, um dos bois pula rumo à liberdade, fugindo pela mata. Ninguém é capaz de alcançá-lo. As pessoas estão na expectativa pelo segundo boi. Os corajosos tiram a camisa e se preparam para a tourada improvisada. Os precavidos já arranjaram lugar para se esconder: em cima de muros e grades, atrás de carros, pendurados em varandas — tudo para não levar uma chifrada.

Assim como nas tauromaquias que ocorrem nas Ilhas dos Açores, o boi sai correndo e a população foge dele. Jovem, o animal custou em torno de quatro mil reais. Ele é magro, tem pelagem marrom, chifres longos, com capacidade de atravessar uma pessoa e ainda machucar outra junto. Dotado de muita energia, está agitado, ao mesmo tempo que assustado — só quer fugir. Suas pupilas estão dilatadas e os olhos arregalados. Ele titubeia, olha de um lado para o outro, atravessa a camiseta de um toureiro à brasileira e segue correndo ansiosamente. A população vai atrás. Um fluxo interminável de pessoas atravessa o Canal do Engenho.

Um homem cujas feições estão todas concentradas e contraídas no meio da cara provoca dois jovens cabeludos que se aventuram na farra pela primeira vez. “Anda logo, vai lá, corre atrás do boi também”, diz ele. Eles se entreolham e decidem seguir o conselho. Mas antes, um deles pergunta, “você não vai?”. O homem ri e responde, “eu não, rapaz. Eu vendo droga, tenho mais o que fazer!” E atrás do boi eles vão, correndo junto aos trezentos farristas. Passando por cima dos objetos caídos e já pisoteados.

O boi tardou, mas não falhou. Ele sobe na mata lateral da Avenida Ganchos. Alguns farristas destemidos vão atrás, sem sucesso. Ainda sob efeito da adrenalina, os festeiros zanzam de um lado para o outro, desolados. A farra foi meteórica, se durou cinco minutos foi muito. Para onde irão agora? Voltam à festa, a bebida ainda não acabou.

Aquele menino que perdeu o celular chama sua namorada e seu melhor amigo, cujo bigode mais ou menos loiro parece fruto das últimas gotas de uma embalagem de água oxigenada. Eles pegam carona com os dois rapazes que corriam atrás do boi pela primeira vez. Seguem para o bairro Canto dos Ganchos, onde ocorrerá uma nova farra em poucas horas. Chegam cedo demais. Não são nem sete horas.

Encontraram mais um amigo no caminho, um jovem de cabelo curto e bigode-de-nescau, algumas espinhas na bochecha, provavelmente menor de idade. Os rapazes cabeludos seguem com o grupo. Entediados, os seis decidem visitar os bois em cativeiro. Vão à praia e atravessam um amontoado de pedras lisas e escorregadias. A namorada não está muito satisfeita. Ela reclama que pode cair a cada passo que dá. Seu humor não é dos melhores, ainda não se recuperou do pavor que sentiu durante a farra propriamente dita. O namorado tenta acalmar, mas seu amigo do bigode mais ou menos loiro não ajuda muito, ele ri da situação e faz comentários maldosos com os cabeludos, que só ouvem, rindo de canto, assim como o garoto do bigode ralo. Após muita negociação e discussão entre o casal, eles seguem pelas pedras. Atravessam três praias até finalmente chegar em uma deserta.

No fundo, entre as árvores, atrás de dois barcos estacionados: dois bois de grande porte. Estes são maiores que os trazidos para a farra daquela madrugada. Eles tem cupins avantajados, troncos largos, olhos ferozes, chifres compridos, proeminentes, do tipo que serviria para conquistar qualquer fêmea, se fosse necessário. Apesar da imponência, estão amarrados por cordinhas de pescador. Um é branco e o outro mesclado de branco com marrom. Assim como o silencioso boizinho da farra, não mugem. Juntos, os dois valem algo em torno de quinze mil reais. Se tudo der certo, após a temporada de festas, eles passam o resto de 2018 em um pastinho. De lá, ou serão vendidos para comprar um maior ainda, ou voltarão às ruas, para novas brincadeiras. É visível no olhar dos bois que eles conhecem seus destinos melhor que os próprios humanos. Olham para os homens com cansaço, como um prisioneiro sem energias.

“Eles gostam de brincar, só tão cansados”, comenta o namorado. A companheira fica em dúvida. Ele ratifica: “maldade é matar o bichinho depois de capturar”. Refere-se ao fato de que até 2017 os bois resgatados eram sacrificados. Hoje, veterinários da Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina (Cidasc) analisam se o animal oferece risco sanitário, para então decidir ou não pelo abate.

O casal se distancia dos animais, os outros quatro se mantêm ali. Um dos cabeludos caminha para perto d’água, o garoto do bigode-de-nescau vai junto. O rapaz do bigode meio loiro se aproxima do boi e joga nele o resto de uma cerveja Lokal que vinha segurando a viagem toda. O boi bufa, o homem caçoa, um dos cabeludos vê e fica quieto, desconfortável. Os quatro vão ao casal. Eles sobem por um caminho alternativo, um morro de degraus de pedras já camuflados na mata. No portão de entrada, uma cambuca vermelha que serve para alimentar bois.

Os cabeludos vão embora, o garoto do bigode-de-nescau também. O casal e seu amigo que agrediu o animal se sentam na praça e conversam com alguns pescadores conhecidos.

Sete horas da manhã. O bairro ainda está vazio. Se a farra não começar até às nove, desistirão. Precisam descansar.

Ao lado, uma dupla de meninos com menos de dez anos se move em um balanço de madeira, com correias bem lustradas e uma possível queda na areia grossa. Eles fitam o terreno baldio com um montinho de lixo a uns vinte metros de distância. O sol está nascendo sobre costas. Um deles quebra o silêncio.

“Amanhã vão trazer um boi só pra gente”

“Será?”

“Sim, sim, vai ser um pequeno. Certeza”

“Só pra gente?”

Ele assente.

Uma mulher mais velha senta-se no terceiro e último balanço. Ela olha para os garotos, ambos são carecas e finos fios de luz se refletem em suas cabeças negras.

“Do que vocês estão falando?”, ela pergunta.

“Do boi que vem amanhã”, responde o mais assertivo.

Ela sorri. Eles também. Se o boi vem, ninguém sabe. A farra está acabando, depois da Páscoa vira coisa de meia dúzia, quando tem. Mas para os farristas é tradição. Se não vier esse ano, tem o que vem.

No fim, o boi sempre vem.

*nomes foram omitidos para proteção de fontes

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Matheus de Moura
Matheus de Moura

Jornalista. Escritor. Neguinho. Catarinense no Rio. Co-criador de: N.E.U.R.A Magazine e Não Há Respostas Quando Morre uma Pobre