O Corpo dos Inocentes

A era em que a pornografia infantil era legalizada

Matheus de Moura
Matheus de Moura
9 min readMar 21, 2017

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Revista dos anos 70

Esta reportagem foi publicada originalmente em 28 de Outubro de 2016, no site “Blog do Quatro”. — Matheus Vieira, com a participação de Lorena Wendel –

Pornografia infantil vende. Não estamos falando de sites da deep web, não. O buraco é muito mais embaixo, nas entranhas de uma Europa confusa com seus limites. Estamos falando de uma era na qual isso não só era legalizado como era impresso e vendido em estado de normalidade.

A começar pela Dinamarca, que há 47 anos foi o primeiro país a tomar essa medida. Se a legalização ocorreu em 1969, os negócios só começaram a ganhar forma em 1971, quando surgiu a revista Bambina Sex — pioneira no ramo. Em apenas duas horas após a estreia, ela vendeu mais de 10 mil cópias às distribuidoras pornográficas. Ao fim da primeira semana, já havia vendido 19 mil.

A publicação surgiu quando o fotógrafo Willy Strauss foi convidado a fazer um ensaio de uma “relação (abuso) sexual” entre um de seus clientes e uma criança. Strauss só achou utilidade para o material quando, através de uma editora que pertencia a um amigo seu, surgiu a oportunidade de criar sua própria revista. E, assim, junto a sua esposa, Leila, nasceu a Bambina Sex.

Os clientes gostaram tanto do material que começaram a subsidiar a revista com fotos amadoras de suas relações com crianças e adolescentes. O negócio explodiu instantaneamente, ganhando clientes e fornecedores mundo afora. Ao fim, os Strauss criaram entre 40 e 50 publicações diferentes.

A indústria dinamarquesa de pornografia infantil se manteve viva em outros formatos de mídias. Em 1975, uma das maiores companhias pornográficas da Europa até hoje, a Rodox/Color Climax, produziu os primeiros filmes legalmente aceitos. A empresa ficou mundialmente reconhecida pelo que se tornou seu carro chefe, a série de filmes e revistas: Lolita.

De acordo com o livro Childpornography — an internet crime (EUA, 2007), os filmes tinham duração de dez minutos e apresentavam cenas explícitas de adultos abusando de crianças na faixa de sete a onze anos — quando não de mais jovens. Mesmo após a proibição desse tipo de material, em 1979, a companhia manteve sua produção a todo vapor, porém na ilegalidade. Durante as duas décadas em que atuaram nesse campo, foram vendidos mais de 100 milhões de filmes e 10 milhões de revistas. A Color Climax só parou plenamente em 1997, após sofrerem processos por manter os títulos Teenage School Girls, Teenage Dream Girls e Teenage Sex.

Origem

Os anos 1960/70 são lembrados pela cultura pop como o período do amor livre, da contracultura e da revolução sexual. Mulheres gritavam pelo direito de serem donas de seus próprios corpos, relacionamentos se abriram em meio às gramas de Woodstock, e as drogas se reafirmaram como um símbolo de liberdade juvenil.

A censura, presente em peso na maioria dos países ocidentais, não escapou dessa atitude combativa, caindo ou se enfraquecendo com o evoluir da contracultura. Isso permitiu que a pornografia não precisasse mais viver no submundo dos ditos “pervertidos” e se tornasse mais uma forma de atender às necessidades sexuais da geração.

A Dinamarca, entretanto, levou esse conceito além e decidiu tornar legal todo e qualquer tipo de material pornográfico, incluindo a infantil. Segundo a estudante dinamarquesa de Música na Musikefterskolen, em Humble, Kristina Henriksen (19), a existência e legalidade desse mercado não chocou muito a sociedade da época, inclusive, passou despercebida por muitos, como seus pais, que pouco se lembram desse assunto. Pedofilia e crimes sexuais com menores de idade não eram grande foco das preocupações sociais até os anos 1980, como é revelado no livro Child Pornography: Crime, Computers and Society.

“As pessoas acreditavam que a pornografia infantil diminuiria o número de casos de agressão sexual contra crianças”, revela a estudante. A ideia pode parecer absurda, mas não é.

Um estudo realizado na Universidade de Hawaii, em 2010, apontou que os países e períodos em que a pornografia infantil foi legalizada demonstraram uma certa queda nas denúncias e nos casos de abuso sexual. Em teoria, o pedófilo se satisfaria com o conteúdo, sem precisar afetar as crianças fora da tela.

A pesquisa foi liderada pelo professor Milton Diamond, premiado pelos seus trabalhos sobre a sexualidade humana. A equipe analisou exemplos de todos os países que já legalizaram a prática alguma vez. Apesar do resultado indicar que a legalização seria uma possível solução, os pesquisadores fizeram questão de esclarecer que não apoiam o uso de crianças reais na produção de conteúdo adulto. A indicação dada por eles é de que os países tornem legal o porte de pornografia infantil virtual, ou seja, materiais com desenhos, computações gráficas, etc.

Essa teoria, entretanto é desconsiderada por grupos cristãos da Europa, que ligam essa legalização ao ateísmo, acreditando que há falta de moralidade na descrença em deus. A Dinamarca é considerada o sexto país mais ateu do mundo, atrás de outros como República Checa e Suécia, que também já legalizaram, mesmo que por pouco tempo, a pornografia infantil.

Outros países:

Esse é o momento em que a cabeça dá um nó e se descobre que não foi um acontecimento isolado. Mais países, dentro e fora da Europa, já o fizeram. A Suécia foi o segundo mais relevante na “vanguarda” dessa legalização, tendo começado seu legado na pornografia infantil em 1971 e re-proibido em 1980.

Este fato não impediu que tanto ela quanto a Dinamarca, que já o fizera em 1979, parassem com esse mercado. O peso de distribuir esses títulos ficou para o submundo da Noruega, que passou a ser o novo polo na exportação desse conteúdo. Isso porque o governo não tinha grande controle sobre esse universo. Logo, pessoas do mundo inteiro recebiam as revistas via o dito “país mais próspero do mundo”.

O grande consumidor de toda essa pornografia era o Estados Unidos. Antes de 1977, sequer era proibido — e rendia mais de 1 bilhão de dólares ao ano, segundo o The Economist. O jornalista John Crewdson, em seu livro Silence Betrayed: The Sexual Abuse of Children in America, conta que mesmo após as leis de proteção às crianças, era possível encontrar em torno de 250 revistas diferentes com esse conteúdo — ainda segundo o The Economist, cerca de 85% esse material vinha da Dinamarca e da Noruega.

Entre as revistas mais populares nos EUA, encontravam-se os títulos Nudist Moppets, Lollitots e Baby Love. As crianças mais jovens forçadas a participar dessas publicações tinham em torno de três anos. Essas revistas eram tão gráficas que o governo estadunidense se viu forçado a tomar medidas punitivas e criar alguma legislação sobre o assunto.

Consumidor

No senso comum a pessoa que consome pornografia infantil é basicamente a mesma que produz, porém, a realidade não é tão cinza. A autora do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) Pedofilia: um conceito para além do direito, Mariangela de Barros explica que na psiquiatria a pedofilia é vista como um transtorno da sexualidade que afeta diretamente as possibilidades de relacionamento amoroso e sociabilidade da pessoa em questão. O pedófilo é uma pessoa isolada que, por vezes, sofre com problemas de autoestima e frustrações em diferentes âmbitos da vida.

Em seus estudos, ela descobriu que nem todo mundo que abusa sexualmente e faz imagens sexuais de uma criança pode ser enquadrado como pedófilo. Muitas vezes, trata-se de um agressor sexual que opta pelas crianças por conta da fragilidade física. O pedófilo, na visão da psicologia que trata essa parafilia como doença, quase sempre abusa quando está em situação de alto estresse emocional e psicológico.

Mariangela se formou em Direito pela UFSC em 2014. Ela conta que entrou no curso com asco extremo por pedófilos, reproduzindo o senso comum. Suas ideias mudaram por conta de seu amigo e professor orientador do TCC, Alexandre Morais da Rosa, que com o evoluir da graduação a foi provocando sobre o assunto. Sua pesquisa durou dois anos e, hoje, há pretensão de transformá-lo em livro. Mariangela explica que por conta das características psicológicas de quem sofre com essa parafilia, a teoria do professor Milton Diamond tem algum sentido.

Entretanto, nem todo mundo que consome pornografia infantil pode ser classificado como pedófilo. Às vezes, a pessoa só carrega traços desse transtorno. Esse é o caso de Pedro*, catarinense que teve o notebook pego pela Polícia Civil com centenas de vídeos e fotos envolvendo crianças e adolescentes de todas as faixas etárias em cenas explícitas de abuso sexual.

Ao começar tratamento psiquiátrico, Pedro descobriu que seu problema tinha nome: Voyeurismo — transtorno sexual que consiste na compulsão de observar as intimidades, geralmente sexuais, das pessoas, de modo que elas não saibam que estão sendo observadas. As primeiras manifestações vieram entre 13–14 anos, quando começou a assistir pornografia. Perto dos 30 anos, Pedro comprou binóculos e diferentes objetos que o ajudassem a observar melhor as pessoas.

Ele conta que em alguns momentos se pegou pensando também em meninas menores de idade, mas que nunca passara pela cabeça ir atrás desse tipo de material. O primeiro contato surgiu por acaso, em 2012, quando procurava por pornografia normal nos sites de torrent, sem perceber, baixou um vídeo contendo o abuso de uma adolescente.

Lentamente, foi compreendendo quais as siglas e palavras chaves para conseguir mais daquele conteúdo e, em questão de semanas, já estava consumindo pornô infantil com frequência. Pedro explica que para não se sentir culpado com o que via, abstraía a ideia de que a pessoa na tela sofreu um abuso pesado e a enxergava como sendo puramente um corpo — num processo que chama de “coisificação”.

Não foram poucas as vezes que pensou em parar de assistir isso. O problema, como ele mesmo diz, é que a compulsividade de seu transtorno o colocava num constante dilema de moral (racional) versus desejo. Apesar desses conflitos internos, seu dia a dia nunca fora afetado pelo o que assistia no computador. Acredita que ter família, amigos e emprego o ajudou a levar uma vida normal. Pedro conta que, apesar do que muitos poderiam pressupor, nunca foi abusado na infância nem nada do gênero.

Os problemas com a lei e a exposição midiática o forçaram a buscar por tratamento. A surpresa em ver que apesar das revelações quanto ao voyeurismo e o gosto por pornografia infantil, muitos de seus amigos e familiares continuaram ao seu lado. Nada ficou como antes, claro, seu casamento desabou, terminando em divórcio. Sua ex-esposa, entretanto, tentou oferecer suporte. Pedro crê que todo mundo que sofre com transtornos compulsivos, sexual ou não, deve procurar conversar com quem é próximo e buscar auxílio profissional.

Hoje

É estranho saber que um dia essa foi uma realidade de muitos países, até nos ‘desenvolvidos’. Mais ainda, saber que o problema se mantém até hoje. Ao menos 92 nações, de quase todos os continentes, carecem de legislação específica para o assunto. Entre eles, estão Bolívia, Congo, Mongólia, Albania, China… a lista vai longe.

Por outro lado, há países, como a Rússia, em que as leis só permitem o consumo e não a produção de pornografia infantil. O Governo dos moscovitas, entretanto, assume que os assédios e abusos sexuais não diminuíram com essa medida e dificilmente são relatados às autoridades — contradizendo, em parte, a pesquisa da Universidade de Hawaii. O conteúdo tanto não é proibido que ainda existem sites com materiais extremamente gráficos na surface web (até onde o google consegue pesquisar) e de fácil acesso**.

Nos EUA a lógica varia de estado para estado, cidade para cidade. Nesse sentido, Nova York já foi considerada um dos locais mais flexíveis da nação. Até 1996, era permitida a posse de pornografia infantil. Depois, manteve-se legal apenas a observação ou admiração desse conteúdo. A lei mudou em setembro de 2012, tornando crime qualquer relação com essa categoria.

O Japão seguiu os mesmos rumos. Até 2014, a lei previa como passível de punição apenas a produção, o consumo não. As pressões externas eram tamanhas que o país se viu obrigado a proibir a posse. Os animes e mangás, todavia, por não portar crianças reais, continuam dentro da legalidade.

Já na Suécia, mesmo após 30 anos desde a proibição, foram encontradas 21 revistas com esse conteúdo na Biblioteca Nacional, em 2010. Em entrevistas, o responsável pelo órgão declarou que aquilo fez parte da história do país e deveria servir para consulta de jornalistas e historiadores. Na época, os internautas questionaram a validade desse argumento dada a facilidade de acesso a esse material.

As discussões quanto à volta dessa indústria para a legalidade se mantêm vivas até hoje. Na Holanda, em 2006, surgiu o Partido da Caridade, da Liberdade e da Diversidade, que promove a volta do pornô infantil, a redução da idade de consentimento de 16 para 12 anos e o sexo com animais. No Brasil, ainda não há partido que defenda isso, mas é possível encontrar internautas que defendem “flexibilização” no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

O futuro desse assunto é incerto no mundo todo. Ao menos, se antes dos anos 80 a problemática da pornografia infantil era ignorada ou considerada pouco relevante, agora, a discussão atinge nível mundial e o combate ao abuso de menores se intensifica.

Aviso: caso você encontre esse tipo de material na web, denuncie à Polícia Federal ou Ongs.

*O nome foi modificado para manter a privacidade da fonte.

**A reportagem prefere não disseminar o conteúdo desse site, por isso, não revelaremos o endereço.

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Matheus de Moura
Matheus de Moura

Jornalista. Escritor. Neguinho. Catarinense no Rio. Co-criador de: N.E.U.R.A Magazine e Não Há Respostas Quando Morre uma Pobre