Whey, Malto, Gluta e outras paradas

Uma breve passagem pela cultura maromba e suas complicações

Matheus de Moura
Matheus de Moura
6 min readNov 24, 2017

--

A cultura maromba é quase uma religião. Décadas de reuniões nos templos que chamam de academia levaram fisiculturistas, musos fitness, exibicionistas e rappers a criar dogmas, vertentes e até mesmo cantigas. Nesse culto, deuses e semideuses são quase tão diversos quanto as 330 milhões de divindades hinduístas. Eles se manifestam em pôsteres e vídeos do youtube. Alguns admiram os pomposos músculos do ator e fisiculturista Arnold Schwarzenegger (versão 80’s), outros se espelham nos esforços do profeta youtuber Léo Stronda, há também mulheres que procuram na musculatura da modelo Gracyanne Barbosa exemplos de perseverança e amor próprio.

Nessa onda de idolatria mora o perigo do fanatismo — que neste caso é marcado por uma doença psicológica chamada vigorexia. Ela é definida pela forma distorcida que o esportista vê seu próprio corpo, não se satisfazendo com o tamanho e a definição dos músculos, independente de quanto as pessoas ao redor o elogiem ou apontem sua evolução física.

Rapper Leo Stronda recebe fãs em loja de suplementos (Matheus Vieira/Zero)

A quem diga que a doença seria masculina, apesar de mulheres também sofrerem com vigorexia. E, assim como na anorexia, inexistem dados precisos da quantidade de pessoas com esse problema. Treinadores de academia afirmam, entretanto, que a doença é mais comum do que se imagina. O único número que encontramos sobre o assunto se encontra em um livro chamado The Adonis complex, traduzido no ano 2000 pela editora Campus. Nele, três doutores em medicina calculam que, nos EUA, um milhão dos nove milhões de frequentadores de academia (número da época) sofrem de vigorexia.

Entre os sintomas da doença psicológica estão: isolamento, rigidez com a alimentação, fobia de gordura, agressividade, passar mais de uma hora na academia, trocar situações de convívio e relaxamento pela musculação, exagerar nas cargas e adquirir a síndrome de overtraining (o extremismo religioso da academia, no qual o esportista rompe os limites físicos).

O mágico Jorian Peçanha, por exemplo, quase perdeu amizades por não deixar ninguém podia tocar em sua comida ou ajudá-lo a cozinhar. Ele evitava qualquer programa que envolvesse comida ou álcool e brigava com quem insistisse em fazê-lo experimentar algum alimento diferente. Hoje, leva a musculação com mais calma e usa o tempo livre para investir em sua mágica. Faz shows no teatro Centro Integrado de Cultura e em eventos marombas, como a chegada de Léo Stronda em Florianópolis.

Tem que ser Blindão
Pela musculatura ainda em desenvolvimento, três garotos de 16 anos, com menos de 1,70 metros de altura e nem 70 quilos se destacavam na multidão de homens grandes o suficiente para transformar camisetas normais em baby looks. Vagner, Patrick e Marcus são seus nomes, e, assim como todo mundo ali, na rua São José, do bairro Estreito, eles esperavam pela chegada de Léo Stronda, contratado para a inauguração da loja Fábrica de Suplementos, no número 223 da rua.

Amigos de escola e brothers de academia, uniram-se pelo ode à musculatura humana — principalmente de Léo Stronda e do ator Kleber Bambam. O afinco pelos ídolos levou os três a saírem de suas casas na cidade vizinha Palhoça, passarem por mais de uma hora em três ônibus de um dia escasso em horários que é um sábado em Florianópolis, para permanecerem duas horas em pé numa fila que virava o quarteirão e só então tirar aquela selfie com Stronda. Mataram o tempo repetindo os versos da música Blindão, sucesso do Stronda com mais de 28 milhões de views no Youtube.

“Ele [Léo Stronda] é mais que um ídolo, o cara passa conhecimento. Sempre avisa pra ir num nutricionista, e procurar um médico nos videos”, lembra Marcus. Ele, assim como Vagner, sonha em evoluir de um raquítico “frango” para um “monstrão” com musculatura igual a de Léo. Patrick, por outro lado, busca um corpo menos exagerado. Seu ídolo fitness é Kleber Bambam — cuja musculatura é visivelmente similar a de Stronda, de quem é amigo.

Os meninos ignoram que cada ser humano tem um tipo físico diferente e uma variação de ganho e perda de peso dividida em três categorias: ectomorfo, que emagrece fácil e engorda pouco; mesomorfo, invejado por muitos devida sua habilidade inata em controlar peso como quiser; e endomorfo, capaz de grandes ganhos de massa, mas com baixa taxa de emagrecimento.

O superintendente de musculação da filial da academia Aloha, localizada no Estreito, Ricardo Branco, conta que seus 20 anos de profissão serviram para esclarecer que os iniciantes são desinformados e, portanto, estão mais propensos a ultrapassar limites físicos.

“Os caras acham que malhar três horas todo dia vai adiantar. Depois se machucam e não entendem porque. Isso é porque querem imitar musos fitness, como o Felipe Franco, marido da Juju Panicat. Mas nem todo mundo vai chegar naquele corpo”, explica o treinador.

Não à toa, ainda nos primeiros meses de academia, Patrick rompeu os músculos do peito quando tentou levantar cem quilos no supino, quantidade muito além do seu normal. O estalar do rompimento do músculo parecia uma barra de supino caindo no chão. Todos olharam assustados, conta. Isso aconteceu quando ainda tinha quinze anos, e havia começado a academia há três meses. Passou por um ano de tratamento para recuperação muscular, o que não o impediu de continuar seguindo o sonho de atingir um corpo que naturalmente não será seu.

No fim, pouco importam as barreiras naturais. Tanto ele quanto Vagner e Marcus recorrerão às substâncias anabolizantes quando atingirem o que os especialistas definem como limite físico (quando, após décadas malhando, os músculos atingem seu tamanho máximo, alta densidade e definição extrema).

Eles não se veem como viciados. Jamais largariam a musculação — mesmo que fossem diagnosticados. Explicam que a vida melhorou desde que iniciaram a busca pela corpo ideal. Bullying nunca mais.

“Antigamente os caras tiravam a gente, hoje eles tem medo, né?”, afirma Patrick.

Marcus complementa: “e as mulheres amam um cara musculoso, né?”

“Tu nem pega ninguém”, provoca Patrick.

“Nenhum de vocês pega”, brinca Wagner, que em seguida é ridicularizado pela inabilidade em movimentar voluntariamente os músculos do peitoral.

Sua necessidade de reafirmar a masculinidade é vista como um quadro típico dos vigoréxicos, segundo estudo “A obsessão masculina pelo corpo: malhado, forte e sarado”, realizado em 2005 pela doutora Maria Elisa Caputo Ferreira. O texto aponta que reafirmação de estereótipos de gênero fazem parte da origem do problema: “esse quadro parece, acentuar-se nos últimos vinte anos, quando passamos a ser bombardeados com imagens de corpos “abastecidos” com esteróides, homens com corpos extremamente musculosos”.

É como diz o rapper maromba B-Dynamitze na música Corpo Blindado:

“Alguns até olha um pouco meio assustado”

‘’Parece herói de filme, olha o cara é bombado’’

Não por acaso, o rapper toma esteróides para imitar o corpo dos heróis de ação. O portalegrense, de 30 anos, começou a compor e a malhar na mesma época, quando tinha 13 anos de idade. Apesar de ter sofrido muito com dores musculares após a primeira sessão de musculação, se sentiu em casa. Afim de atingir o corpo de Vin Diesel em Velozes e Furiosos, malhou até não aguentar mais e apelou para ciclos de esteróides. Antigamente, fazia o ciclo algumas vezes por ano, mas com o tempo começou a procurar um médico que receitasse a melhor forma de tomar testosterona, diminuindo para um ciclo por ano. Apesar do orgulho de ter mais de 43 centímetros de braço, B-Dynamitze ainda busca um corpo ideal, mais bombado, dessa vez tomando como parâmetro o ator The Rock Johnson — também presente na franquia Velozes e Furiosos.

“Eu curto muito o shape daquele cara. Um dia vou chegar lá, preciso. Vou pra academia seis vezes por semana, e quando não vou, fico puto. Começo a descontar na família, nos amigos. Tudo pra chegar entre os grandes”, revela o rapper. Ele tem noção que seu tratamento quase religioso à musculação não é visto como saudável, mas não se importa. “Poderia estar bebendo muito, usando drogas, várias coisas negativas, mas sou viciado em malhar”.

Ele se esforça em dar bons exemplos aos seus fãs. Alerta em músicas os perigos dos esteróides e indica acompanhamento médico para uma carreira profissional, ou não, de fisiculturismo. Além de lembrar a todos que é importante ter um dia de descanso por semana, geralmente domingo, pois é o único dia em que academias não abrem.

B-Dynamitze não pôde continuar a conversa, precisava atender aos fiéis fãs. Foi contratado para participar da inauguração da Fábrica de Suplementos junto ao amigo Léo Stronda. Marombas de toda Grande Florianópolis se reuniram aquele dia para tirar selfies e abraçar os rappers. Alguns levaram família, pedindo para os artistas beijarem a cabeça dos bebês, como quem solicita bênção. A cultura maromba é quase uma religião.

Originally published at medium.com on November 24, 2017.

--

--

Matheus de Moura
Matheus de Moura

Jornalista. Escritor. Neguinho. Catarinense no Rio. Co-criador de: N.E.U.R.A Magazine e Não Há Respostas Quando Morre uma Pobre