Um texto que não deveria existir

As palavras que você vai ler a seguir são o relato de uma entrevista quase perfeita.

Matheus Machado
Matheus Machado
5 min readDec 10, 2022

--

Captura de tela do vídeo onde entrevisto Branca Vianna, idealizadora do podcast Praia dos Ossos. | Crédito: Arquivo pessoal.

Este texto não deveria existir. Está aqui por causa de um detalhe pequeno, mas muito importante. A história que culmina nestas palavras começou na manhã de 18 de novembro, quando uma conversa importante aconteceu. Branca Vianna, apresentadora e idealizadora do podcast Praia dos Ossos e presidente da Rádio Novelo, me atendeu em uma chamada de vídeo por volta das 10h45.

A conversa foi sobre o podcast, e a primeira pergunta era sobre isso, “o que é o Praia dos Ossos? Um podcast narrativo? Um documentário em áudio? Uma grande reportagem seriada?”. A resposta de Branca Vianna foi categórica, o Praia dos Ossos é um podcast narrativo, e disse em outro momento: “podcast é podcast”. Durante a produção da série, o que acontecia na hora de realizar entrevistas com pessoas de idade avançada, e que provavelmente nunca ouviram falar de podcast, era explicar que a conversa seria usada em um documentário em áudio, ou em uma reportagem.

O Praia dos Ossos é um podcast narrativo, lançado no dia 12 de setembro de 2020 pela Rádio Novelo. Ao longo de oito episódios, os ouvintes conhecem a história de Ângela Diniz que foi assassinada com quatro tiros pelo ex-namorado Doca Street na noite de 30 de dezembro de 1976, na Praia dos Ossos, em Búzios, no Rio de Janeiro. Mas isso é apenas o ponto de partida da história.

As questões chave do podcast eram conhecer verdadeiramente Ângela Diniz e Doca Street. Ambos eram membros da alta sociedade e figuras recorrentes de colunas sociais em jornais e revistas. Fora das páginas e dos eventos badalados, quem eles eram? Para descobrir, é necessário ouvir os oito episódios do podcast onde Branca Vianna debulha as duas figuras. Mas é importante salientar que o Praia dos Ossos não é apenas sobre isso.

O assassinato foi rodeado de outros temas, um deles o movimento feminista, que foi destacado por Branca, e que teve o envolvimento de sua mãe, cujo nome também é Branca — essa curiosidade também é contada no podcast. Naquela época, o movimento foi muito importante, afinal nos anos 1970 a ditadura militar ainda estava em curso no Brasil.

O barato sobre o Praia dos Ossos talvez esteja em desvendar a sua riqueza técnica. Na conversa com Branca Vianna, outra questão sobre o sucesso do podcast foi levantada. No entanto, a apresentadora ponderou que antes do Praia — apelido carinhoso usado por Flora Thomson-DeVeaux, pesquisadora e coordenadora de produção da série, em outra entrevista — já existia o Projeto Humanos, de Ivan Mizanzuk, e que talvez o grande sucesso dos podcasts narrativos no Brasil seja o recente A Mulher da Casa Abandonada, produzido pela Folha de S. Paulo.

Apesar da ponderação da apresentadora, dois pontos não podiam ser deixados de lado: o primeiro é que o Praia dos Ossos já passou de 3 milhões de downloads, número que a própria idealizadora reconhece como algo significativo; e segundo que, na época do seu lançamento, o podcast ganhou um grupo de discussão no Facebook, atualmente com mais de 3,9 mil membros.

A partir disso é possível perguntar: o que esse podcast tem de especial? Segundo a apresentadora, um dos pontos mais relevantes da produção é a sua capacidade de imersão, ou seja, de fazer o ouvinte mergulhar em sua história. Ao encontro disso está o próprio começo do primeiro episódio, onde Branca e Flora estão procurando a casa onde ocorreu o assassinato de Ângela Diniz. O som dos passos das duas, o barulho das ondas do mar e até mesmo os pássaros que estavam próximos do local podem ser ouvidos logo de cara.

É a partir desses elementos sonoros que o Praia dos Ossos aguça a imaginação dos seus ouvintes. A própria apresentadora diz que cada pessoa pode ouvir o mesmo som, as mesmas descrições e imaginar tudo isso de formas diferentes. Durante a conversa, ela usou como exemplo as estórias dos livros, em que as pessoas leem as mesmas palavras e imaginam objetos, personagens e cenários de diversas maneiras.

No entanto, a imersão não fica apenas com os ouvintes. Durante o período de produção, que durou cerca de dois anos, Branca, Flora e toda a equipe que realizou o podcast também tiveram que fazer um mergulho no mundo de Ângela Diniz e Doca Street. Entrevistas, pesquisas aprofundadas e visitas em arquivos de jornais foram algumas das formas de imersão realizadas pela equipe do podcast.

Branca Vianna (esquerda) e Isabela Teixeira da Costa (centro) nos arquivos do jornal Estado de Minas. | Crédito: Reprodução / Rádio Novelo.

Embora tenha todos estes méritos em sua concepção e resultado final, Branca pontua: Praia dos Ossos não foi o primeiro a fazer isso. Não, isso não é um demérito. Na verdade, a apresentadora está reconhecendo a relevância do This American Life, um programa transmitido por rádios públicas nos Estados Unidos desde 1995. Ou seja, nas palavras da idealizadora, o que o Praia dos Ossos fez é o que This American Life faz há mais de 25 anos.

Com isso, o trabalho realizado por ela e pela Rádio Novelo merece um reconhecimento maior do que o de audiência e outros tantos. O Praia dos Ossos traz para o Brasil uma cultura narrativa que não era comum no país. Além disso, através da produtora, há uma consolidação dessa estética narrativa. Prova disso são os outros títulos produzidos pela Rádio Novelo: Retrato Narrado: Bolsonaro, Crime e Castigo, Tempo Quente, Rádio Novelo Apresenta, entre outros. O que eles têm em comum são semelhanças sonoras, pois surgem a partir da mesma estética narrativa.

Não à toa, o assunto virou o tema da monografia do autor deste texto, que procura e encontra a resposta para o seguinte problema de pesquisa: como é composta a estética narrativa do podcast Praia dos Ossos? Só que isso é papo para um outro momento.

Durante a conversa com Flora Thomson-DeVeaux, a pesquisadora disse que a equipe do Praia dos Ossos estava tendo dificuldade de fechar o roteiro. Por conta disso, foram atrás de outros profissionais. Aurélio de Aragão e Rafael Spínola trazem da práxis do audiovisual a expertise necessária para fazer o Praia dos Ossos se tornar aquilo que é - um podcast feito por muitas mãos qualificadas e especializadas que, no fim, garantem uma experiência nova para os ouvintes.

A conversa com Branca Vianna foi de um imenso aprendizado, algo que para um estudante tem um significado enorme. Marcada por receptividade, atenção e simpatia, a entrevista com a idealizadora do Praia dos Ossos foi quase perfeita. Faltou apenas o entrevistador selecionar a opção “monitorar e enviar” para gravar, além do vídeo, o áudio. É por conta deste detalhe que esse texto passou a existir.

Depois de concluída a conversa, pedi para tirar uma foto com Branca Vianna, mesmo que da tela do computador, para registrar o momento. | Crédito: Arquivo pessoal.

--

--

Matheus Machado
Matheus Machado

Um lugar que você, talvez, não devesse conhecer. Sou jornalista. Um alguém que gosta de escrever.