À todos os narradores com quem jogarei

(ou: parem de ver os narradores como deuses de seu próprio mundinho de fantasia porque definitivamente não é o que eles são)

Aline Silva
Matilha da Garoa

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Recentemente o debate sobre a cultura tóxica dentro do RPG e a criação de espaços seguros para minorias marginalizadas tem crescido bastante. Discussões sobre contrato social e sangramento tem aumentado e isso reforça a questão de que o RPG precisa urgentemente rever comportamentos antigos para continuar sendo o lugar mágico de acolhida e fantasia que sempre foi.

Dito isto, me chamou a atenção o fato de que muito se fala sobre como o narrador deve fazer isso ou fazer aquilo, sobre como o narrador é a pessoa que deve ter x, y e z obrigações, mas pouco se fala sobre quais são os direitos do narrador. Porque heh, já que o RPG é um contrato social, tais questões devem ser vistas e tratadas como uma via de duas mãos. Narrador e jogadores não são forças antagônicas, não estão competindo entre si; eles são forças que trabalham juntos pra que todos se divirtam e construam aquela estória juntos.

(Há quem vá dizer que a balança de poder dentro de uma mesa de RPG sempre pende pro lado do narrador, mas sério. Se isso tá acontecendo na sua mesa, provavelmente tem algo de errado com ela #prontofalei)

Querido narrador, você não é obrigado.

A nada.
Realmente nada.

Você não é obrigado a aceitar aquele kobold monge cego na sua mesa de D&D só porque o jogador quer. É você quem está planejando a narrativa e sabe melhor do que ninguém se a sua crônica vai ter espaço pro jogador com a síndrome do floquinho de neve diferentão ou não.

E dica: na maior parte do tempo, não tem.

Porque o jogador diferentão não tá realmente preocupado com a mesa ou com os outros jogadores. Ele quer que o personagem dele e a história dele se desenvolvam como ele pensa e muito provavelmente ainda vai querer que você leia a sua mente pra adivinhar isso tudo. O jogador diferentão costuma ser muito oneroso numa mesa e se você não cortar as asinhas dele de cara, é bem provável que ele atrapalhe a sua diversão e a diversão das outras pessoas quando sua (suposta) genialidade e sofrência não forem reconhecidas e recompensadas.

Você também não é obrigado a aceitar jogadores que sangram nas suas mesas.

Você só queria rolar dados e de repente tem essa pessoa fazendo esse personagem super complexo e sofredor, cheio dos self-inserts e sentimentos e tudo que você queria era um hack’n’slash sem compromisso? Deixe isso bem claro desde o início. Não deixe as pessoas fazerem suposições sobre a sua mesa, sua crônica ou sobre o tipo de história (ou ausência de) que você pretende contar. A gente sabe como é difícil conseguir reunir pessoas pra jogar — principalmente presencialmente — e por isso mesmo ser o mais claro possível sobre o tipo de mesa que você está planejando já vai te poupar muito tempo e dor de cabeça na hora que os jogadores começarem a não comparecer por desinteresse. Por acharem que suas expectativas não foram cumpridas.

O contrato social do RPG é um acordo comum entre todas as partes envolvidas e ninguém deveria aceitar um contrato sem saber exatamente quais são as cláusulas (menos os termos de uso de serviço, esses aí ninguém lê mesmo). Não há mal algum em dizer com clareza que tem coisas que você não quer ver na sua mesa (alôôôôôuuu, narrador também tem gatilho) ou assuntos que você não gostaria de ter que abordar. Todos sabem (ou deveriam saber) onde seus calos apertam mais e nós não deveríamos nos sentir envergonhados ou desconfortáveis para dizer que existem determinadas coisas que não queremos ver numa aventura. Já é hora de pararmos de ver o narrador de RPG como um ser absoluto e onipotente com a única função de servir a mesa ou como uma divindade a ser cultuada.

(poderes cósmicos fenomenais dentro de uma lampadazinha)

Narradores e jogadores não são nada além de duas partes de uma mesma narrativa, dois (ou mais) pontos de vista diferentes sobre o mesmo enredo. Ambos tem papéis pré-determinados distintos, mas isso não torna um melhor ou mais poderoso que o outro. Esses pontos de vista distintos e esses papéis pré-determinados são justamente o que tornam possível a construção da estória, e RPG — para mim — é sobre isso.

Então, antes de sair arrebanhando jogadores pra sua mesa, pense com sinceridade naquilo que você quer fazer e o que cabe dentro daquele espaço que você pretende criar e dedicar seu tempo. Você não é obrigado a continuar sustentando essa power fantasy de criatura onisciente, onipotente e onipresente.

Lembre-se: você também só quer se divertir e esse é um direito seu.

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