É bobeira querer que eventos de RPG sejam espaços seguros?

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Espaços seguros de acordo com a definição dada num artigo do Washington Post:

"Um lugar onde geralmente as pessoas que são marginalizadas em algum grau podem se unir e se comunicar e dialogar e desmembrar suas experiências.”

“Você está tentando criar um ambiente que promova que as pessoas se sintam confortáveis ​​o suficiente para falar sobre coisas das quais normalmente não se fala … Onde as pessoas podem falar, onde elas sentem que nada do que vai ser dito será tomado de maneira negativa e usado contra elas”.

Desenvolvendo mais esse pensamento, o espaço seguro surge no contexto da militância com a função de quebrar a percepção dos frequentadores em relação a agressões. Sua existência parte do princípio que todo lugar exterior a ele é inseguro para a pessoa marginalizada já que nossa sociedade internalizou preconceitos de tal maneira que violências da linguagem e do comportamento não são percebidas na sua brutalidade. Ele não é um convite ao opressor para reavaliar sua expressão, mas sim uma promessa de momento pacífico para o oprimido. O espaço seguro se revela vital quando se está tentando articular uma comunidade, um discurso e um movimento, pois para se construir algo novo é preciso não gastar todo o tempo reagindo ao comportamento tóxico da opressão. A figura opressora sempre tem mais espaço e atenção de fala, e o espaço seguro oferece um palco sem restrições para o discurso do oprimido.

Fora do contexto de espaço de articulação militante, o termo é usado para indicar lugares gerais onde minorias não se sentiriam agredidas por suas identidades — um bar gay, uma biblioteca queer, uma academia body positive, o centro cultural de identidade preta.

Garantir um espaço seguro é muito complicado porque:

  1. Envolve um acordo social de todos os envolvidos em sua frequentação, e para isso acontecer os frequentadores devem ser informados e educados na etiqueta social do lugar.
  2. A administração tem de ser capaz de estabelecer as regras que criam a sensação segurança e reforçá-las com os métodos que tiver a disposição.
  3. Identidades se sobrepõem e o mesmo indivíduo não é desconstruído em todos os preconceitos. Como agressões estão naturalizadas na nossa cultura, então não é incomum que espaços amigáveis às causas queer sejam problemáticos com questões raciais, que espaços pró-raciais sejam problemáticos com as questões transgêneras, e pessoas gordas se sintam pouco inseridas em praticamente todos os movimentos.
  4. O limiar de tensão aumenta quando começamos a pensar em como reforçar a segurança sem o aparato legal necessário. Nossa sociedade trabalha em sua estrutura em grande parte com repressão policial — num cenário ideal, quando há um problema, removemos os indivíduos envolvidos do ambiente para realizarem queixas e moverem os aparatos legais para a justiça determinar razões ou não. Num cenário mais realista com pessoas que já sofrem com invisibilidade generalizada, que a justiça já não contempla, e cujas dores são subjetivas demais para a maioria da população, quanto mais para policiais e juízes; como sentir algum senso de segurança real e justiça quando algo acontece, seja uma pequena ou grande violência? Como pedir que esse tipo de correção e proteção aconteça em espaços privados? Como pedir comportamento acolhedor de um público frequentador deseducado em todas as questões da desconstrução de preconceitos?

(Por isso que a cultura de exposição e boicote é a principal arma das minorias para se protegerem. É o recurso que resta quando a máquina do estado não as ajuda… Mas isso é assunto para outro texto).

Ou seja, apesar de boas intenções, é comum que espaços que tenham em si a proposta de serem seguros acabem se revelando não tão seguros assim e não tão seguros para todas as pessoas.

Agora, imaginemos o problema de espaços que não tem a proposta de serem seguros para minorias, não têm organizadores educados na linguagem de militância, não são desconstruídos de preconceitos e que são frequentados por um público que também não se envolve com essas questões? Espaços de cultura nerd tem a proposta de serem espaços seguros para nerds curtirem seus hobbies, mas raramente o discurso vai além disso. Nerds não necessariamente são envolvidos em uma cultura de desconstrução de preconceitos, não necessariamente são engajados em algum tipo de transformação social. Ele pode ter enraizado em si os mesmos preconceitos e mecanismos agressivos de convivência como qualquer outra pessoa.

E mais, exigir essa compreensão e atitudes de pessoas que não passaram por todo o processo educativo e sensibilizador da desconstrução é muitas vezes contraproducente, e acabamos com apenas inimigos que estão irritados com o discurso “esquerdopata floco de neve”.

Por isso, a menos que exista alguma posição de organizadores de eventos, donos de lojas, grupos de amigos ou a presença de alguém que levante a bandeira das causas identitárias nos ambientes, é tolice sim esperar que espaços nerds e eventos relacionados sejam seguros.

Isso não significa que não podemos construir esses espaços ainda.

Precisamos de aliados

Se sentimos a falta de alguma mínima garantia de segurança nos espaços que frequentamos, é preciso que nos organizemos para lutar por eles! Toma aqui seu bottom de Social Justice Warrior e vem comigo.

A impressão que a maioria tem dos SJW’s é que vamos criar brigas defendendo o politicamente correto, quando na verdade a nossa proposta é resolver problemas e melhorar o clima do espaço como um todo ao diminuir a quantidade basal de agressões. Então vamos ser menos Social Justice Warriors e mais… Bards! Vamos vencer com nosso carisma.

Espalhando contos de esperança

O importante é apresentar sua proposta como algo que vai melhorar a convivência naquele lugar, não gerar mais trabalho e conflitos. Mais do que impor regras, devemos sugerir métodos. Mais do que brigar com agressores, devemos acolher os injustiçados. Embora não tenhamos nenhum aparato legislativo do nosso lado, temos como hackear o sistema para melhorá-lo.

Todo Social Justice Bard precisa de uma taverna, mas você não pode chegar ocupando um espaço a qual não pertence. O primeiro passo é conversar com os líderes de comunidade e donos de espaços. Embora textões na redes sociais façam alguma diferença, já ficou provado que empatia acontece mesmo no cara a cara. Por isso, é preciso se organizar e frequentar lugares. Andar em grupo a princípio se a sensação de insegurança for tão aguda assim. Com a convivência fica mais fácil diagnosticar o problema: talvez todas as mesas de jogo sejam organizadas por mestres que gritam e são intensos demais com os novatos, talvez não tenha a presença de meninas, talvez todos os jogos são de sistemas internacionais não traduzidos.

Reconhecendo as questões, é mais fácil montar planos práticos para conversar com seus organizadores e explicar a proposta: “queremos tornar a sua loja ou evento um lugar mais legal para ________ frequentarem e diversificar o público”. Dessa conversa já é mais fácil sentir o que é possível mudar, ou não, e o quanto aqueles líderes poderão ser aliados.

Planos práticos

O trabalho do espaço seguro é tirar as pessoas do paradigma da zoeira e da agressão desapercebida para o paradigma de acolhimento, e ensiná-las que debochar do amiguinho é legal, mas o que cria laços mesmo é ser uma pessoa confiável, gentil e gente boa. Se alcançarmos isso, a empatia delas vai se abrir para discussões mais pesadas.

Tendo os aliados e os espaços, é possível fazer ações positivas. Ótimos primeiros passos são pequenos eventos focados em tal público minoritário, mesas de RPG com sistemas acessíveis e linguagem sensível, palestras que sempre são bem vindas como técnicas de comunicação não violenta e autocuidado. Ensine as pessoas a comunicarem seu consentimento ou falta dele de maneira simples, equipe elas com mecanismos para dizerem se estão confortáveis ou não, converse com o dono do local para ter uma área de descompressão. Aumente seu círculo de aliados — explique para as pessoas o seu objetivo, os métodos envolvidos e eduque com sinceridade.

O importante é ir transformando aos poucos. Sabendo que os donos do espaço e evento mesmos não são adeptos de nenhuma pauta identitária, talvez você e seu grupo realmente sejam a unica presença que tornem aquele espaço desconstruído, por isso é preciso ter comprometimento com o método que vocês escolheram. Não é um jogo de curto prazo, por isso, não se canse e nem deixe as pessoas se doarem tanto a ponto de ter burnout. O ideal é seguir no ritmo confortável.

E a galera do “politicamente incorreto”?

Infelizmente é bem difícil fazer todas essas coisas sem algum tipo de ataque, quando remexemos em um ambiente é inevitável que façamos algumas pessoas se sentirem ameaçadas. Eles podem realmente ser pessoas desagradáveis e manipuladoras, mas a maioria será mesmo gente que estava confortável no seu espaço feliz e que não quer mudanças. É sempre bom ter alguém no seu grupo que é mais sereno e disposto a educar para conversar e explicar o que está acontecendo — de novo, com sinceridade e clareza.

Dito isso, é comum que grupos de militância tenham rotatividade de membros à medida que um deles ganha fama e se torna “ponta de lança”, ou seja, a pessoa que é o rosto e que recebe a maioria dos ataques. Trolls e goblins infelizmente não são criaturas apenas de jogos, e lidar com eles pode ser difícil. Existe um pouco mais de conhecimento e legislações sobre perseguição sistemática e cyberbulling, mas ainda é algo rudimentar e nem sempre garante a sua segurança. Essa é a parte perigosa de tentar criar um espaço seguro. Infelizmente, nem sempre os líderes que abriram espaço para você vão poder apoiar sua causa e, especialmente, sua disputa com trolls e goblins, seja por questões morais, profissionais ou de conforto mesmo.

Talvez seja a hora de levar o projeto para outro espaço, talvez seja o momento de sair de cena e deixar outra pessoa com menos bagagem emocional assumir a ponta de lança. Lembrem-se sempre de cuidar de vocês primeiro. Não tem nada de errado em perceber que é seu momento de se afastar, esfriar a cabeça e passar suas responsabilidades para outra pessoa.

Cruzadas e boicotes

Embora seja importante discutir e falar abertamente de atitudes tóxicas, escolher inimigos e eleger avatares daquele mal para serem expulsos, boicotados e cancelados é complicado. Primeiramente, porque sem o processo legal devido, você não pode cancelar o ir e vir de alguém, nem exigir que o dono do espaço que vocês estão ocupando faça isso.Critique atitudes, produtos e mantenha-se atento para alertar potenciais vítimas.

Segundo que começar a criar ícones é o primeiro passo para dividir uma comunidade, ainda mais em tempos de polarização e se o agressor for alguém igualmente carismático.

Terceiro é que o último problema do caminho da cruzada é que você pode descobrir que não tem fim. Você começa a boicotar a pessoa, depois o que ela produz, os amigos dela, as pessoas que consomem e gostam do que ela produz… E embora seja o certo e você tenha certeza disso no fundo do seu coração, a energia perdida com isso e os desafetos vão roubar sua energia de passos muito mais importantes, como promover e proteger quem realmente torna o ambiente melhor.

Infelizmente, ir além disso sem envolver a justiça pode ser bem difícil.

O que eu posso fazer hoje pelo meu espaço?

Se existe um espaço que tem interesse em se tornar mais inclusivo, considere convidar coletivos e observadores sensíveis para ajudar a diagnosticar os problemas de acessibilidade, segurança e acolhimento. Não tenha a ansiedade de tentar acolher todas as pessoas possíveis logo de cara. Comece pelas questões que estão mais próximas e são mais simples, com pequenos passos transformadores. Espaços para as crianças permitem que as mães vão com tranquilidade, atividades moderadas por mulheres, pessoas LGBTQ+ e não-brancas ajudam a acolher essas minorias, espaços de descompressão dão uma maneira dos neuroatípicos frequentarem sem medo de terem crises.

Não dá mais?

Projetos chegam ao fim, seja porque os participantes tiveram de ir para outro lugar, seja porque a oposição foi mais forte. Isso não significa que eles não foram válidos e não ajudaram alguém no tempo que existiram. Tente focar que suas ações afirmativas são como música — não é porque elas tem uma duração definida que não são transformadoras e importantes.

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