Arlequim como um gênero de RPG

--

O formato mais popular do RPG é amigos ao redor de uma mesa enfrentando desafios como monstros, enigmas e batalhões de adversários. Muitos dos termos que temos para designar subgêneros disso são baseados no cenário onde essas aventuras acontecem e são palavras como fantasia, fantasia urbana, steampunk, que descrevem o tipo de paisagem e personagem que serão vistos nesse jogo. Algumas palavras descrevem gêneros como terror, thriller, pulp, aventura romântica, aventura medieval, e são usadas menos para falar de plano de fundo e mais para falar do ritmo da história, do tipo de cena que teremos e os desafios que o narrador vai apresentar. Sendo assim, quando falamos de um RPG de fantasia de aventura medieval, ou suspense de fantasia urbana, ou terror de narrativa histórica, transmitimos uma quantidade imensa de informações para os interlocutores com poucas palavras, agilizando a busca por narradores, jogadores, livros e cenários.

Como alguém que costuma jogar fora do circuito tradicional de jogos de mesa, eu tenho tido dificuldade de encontrar o termo ideal para descrever o tipo de jogo que eu gosto. Minha rotina de RPG é principalmente em duplas ou trios com enredos sem narrador fixo, alternando entre mensagens de texto e combinados, com apenas a ocasional aventura presencial. As histórias que jogamos são baseadas em cenas muito carregadas emocionalmente e enredos que são movidos por conflitos intra-personagens de todos os componentes da mesa. São cenas de brigas, desabafos, entendimentos, curas, e busca de compreensão entre temperamentos antagônicos, entre amigos, aliados e rivais. Nesse panorama, os conflitos externos são feitos como forma de trazer a tona os aspectos ocultos das histórias e psiquês dos personagens. Jogamos para revelar segredos traumáticos e procurar como processar o que foi vivido, como superar o que aconteceu e alcançar um ponto de equilíbrio. É sobre passados obscuros, barreiras e conflitos. É sobre tragédia e sobre renascimento. Sobre laços e relações intensas.

Na busca para a palavra perfeita para definir o que eu gosto, o termo “narrativista” aparece. Hoje é muito usado em RPGs com essa carga de “enredo movido por drama de personagens”, mas eu sinto que ele desmerece a existência de contação de histórias, ainda que mínimas, em jogos mais matematicamente focados e metódicos. O mais óbvio como alternativa seria apostar em dramático, mas sinto que a palavra drama envolve mais do que esse recorte específico de roteiros de história. Decidi tentar bolar uma palavra própria para isso, do mesmo modo que “dadaísmo”e “surrealismo” significam hoje linguagens específicas a partir da decisão arbitrária de alguém no passado. Entretanto, percebi que já existia um termo usado para designar histórias como as que eu gosto de jogar: romances arlequim.

O termo, que é o nome da editora que publica esse tipo de livro, se popularizou com os famosos “romances de banca”. Com o tempo passou a indicar um gênero de romance como um todo, gênero este que é feito com uma fórmula essencial para o seu sucesso de mais de cinquenta anos. Essa fórmula é baseada no encontro de um casal de personagens cheio de personalidade que carregam uma bagagem intensa de sentimentos mal processados de seus passados difíceis. Fatos do enredo os forçam a conviver, geralmente envolvendo conflitos de caráter e um duelo de vontades, e esses conflitos catalisam que os sentimentos ocultos acabem transbordando (caso o conjunto seja mais ou menos harmônico, a catarse pode vir de fora, do antagonista ou do desafio da trama). Nesse caos entre lidar com o passado e lidar com o presente ao mesmo tempo, o casal de protagonistas encontra um aliado improvável em sua contraparte. Eles se apoiam quando o mundo já foi tão cruel, e juntos enfrentam a ameaça externa mais fortes não porquê estão juntos, mas porque se ajudaram e se tornaram um porto seguro mútuo.

Não importa qual sub-gênero do arlequim você leia, dos históricos aos sobrenaturais, a fórmula é sempre essa, e embora essa lenda da cura através do amor (e esse clichê gótico do passado sombrio que mal consegue se manter oculto) seja um fator interessante para romances, ele funciona bem para amizades ou aliados de todo tipo, como é comum acontecer em grupos de aventureiro de RPG. Se resumirmos a fórmula para “Personagens tem o seu meet cute, o enredo os força a permanecer como aliados improváveis, a convivência e os desafios trazem a tona fatos interessantes e dramáticos de suas histórias até eles aprenderem juntos a crescer e superar”, é mais fácil imaginar esse desdobramento para uma campanha.

Um roteiro muito cru de um início seria algo assim:

  1. Um desafio inicial une nossos personagens. Eles descobrem que esse primeiro embate é apenas o início de uma jornada e decidem ou acabam tendo que trabalhar juntos.
  2. No caminho para o próximo desafio, eles conversam e trocam ideias. Se a campanha tem flexibilidade de tempo e cenários, podemos permitir que eles se encontrem nos ambientes uns dos outros. Nessa etapa, percebemos os primeiros sinais de informações ocultas pela pose social dos personagens.
  3. O segundo desafio é mais complicado que o primeiro e expõe vulnerabilidades. Talvez eles enfrentem um antigo rival, ou descubram informação relevante para algo que é extremamente importante para um deles.
  4. Confrontado com essa surpresa, os personagens deixam escapar mais alguns detalhes. Pode ser que alguém finalmente se sinta confortável para revelar a sua camada oculta — se não, é legal que esse desconforto acumule até se tornar insuportável.
  5. Quando a revelação finalmente ocorre, o grupo é transformado por ela, podendo se tornar mais unido ou desconfiado, dependendo do enredo combinado pelos jogadores. Personagens maus vão se aproveitar das informações, personagens bons vão acolher e se propor a ajudar. Aqui, pode acontecer uma crise, seja porque o passado ainda se mostre terrível demais ou a chance de esperança se revele muito frágil. Confrontos dentro do grupo podem rachar ou fortalecer relações.

Então, digamos que você se identificou com o que eu escrevi até aqui, como fazer um jogo com essa interação rica acontecer?

Jogando arlequim

O jogo arlequim se baseia menos em objetivos como derrotar monstros e conquistar tesouros e mais em ver o que acontece quando seus personagens ficam sozinhos quando estão tensos. Isso envolve deixar os personagens conversarem e terem cenas mais reservadas, por isso, preze por mesas reduzidas com até quatro jogadores.

Esse tipo de jogo precisa de fichas com passados bem bolados para que os jogadores tenham o que contar e descobrir uns dos outros. Os passados não precisam ser longos, mas é essencial que haja alguma experiência de vida prévia à sessão 0.

O que esse passado e os desafios do presente envolvem deve respeitar a compreensão da mesa sobre que temas são ou não aceitáveis para a história. É essencial que todos os envolvidos concordem sobre que sentimentos seus personagens passam ou passarão, e entender que jogar com uma carga emocional pode desencadear em sangramentos.

Evite jogar com o lobo solitário que não conversa a qualquer custo — estamos aqui para ver diálogos legais, não para brincar gato e rato. Evite também o personagem caduco na própria dor, incapaz de interagir ou de se desenvolver — eles tendem a cansar tanto o jogador quanto os colegas.

Jogos arlequim trabalharão muito a vulnerabilidade de cada personagem, por isso é importante que os jogadores se sintam confortáveis para demonstrar essas fraquezas sem deboche ou desprezo.

É legal ler sobre psicologia para ter ideias de comportamentos plausíveis ao arquétipo de personagem, isso ajuda a enriquecer a interpretação e retratar situações em que os outros jogadores vão saber interagir com ele.

Use sistemas que tem boas regras de interação social, em ideal aqueles que têm mecânicas de força de vontade, manipulação e empatia. Pontos extras se são regras que envolvem situações de descarga emocional super bagunceiras e catastróficas como frenesis, paranóias, abismos para os personagens caírem e distúrbios para eles acumularem na ficha — isso aumenta a tensão ao redor de guardar ou revelar sentimentos!

Mestrando um arlequim

Um narrador desse tipo de jogo molda a narrativa ao redor das fichas que é entregue. Ele vai planejar a história para expor o que os personagens querem esconder e para levá-los em jornadas emocionais pelos seus problemas e desejos.

O jogo deve alternar entre cenas de desafios e longos momentos de diálogo para processar tudo que aconteceu, deixando os personagens se conhecerem.

Conflitos surgem pela necessidade ou vontade de atiçar novas cenas interessantes como consequência. A batalha acontece menos pelo loot e pela experiência e mais para termos aquela cena com alguém contando sobre o passado da guerra. Na medida do possível, o narrador vai perceber como atiçar os personagens usando algum outro personagem da mesa. Unir o combustível com a faísca, por assim dizer, em cenas em que vão conviver e se atritar.

Em arlequim, é comum que as questões de cada personagem sejam simbolizados em antagonistas que encarnam tudo que eles desprezam ou temem. Não hesite em criar NPCs memoráveis que vão dar bastante problema, pairando como nuvens sombrias sobre a fragilidade dos personagens, atacando ao mesmo tempo os seus planos como também as poucas barreiras psicológicas que ergueram.

Derrotar o adversário e os desafios simbolizaria a superação das questões antigas. Uma vez que todos os personagens sintam que suas questões pessoais foram resolvidas e eles estão de novo equilibrados e plenos, a história chegou ao seu final.

Resultado de imagem para vampire coterie

Grandes sistemas para grandes jogos arlequim

A linha do Mundo das Trevas e todos os seus jogos foram feitos para campanhas com muitas emoções e vários ângulos de drama. Os cenários são ricos de ganchos para passados interessantes e pesados, especialmente na lista de Qualidades e Defeitos. As mecânicas de degradação da psiquê dos personagens são um grande ponto de tensão para uma narrativa Arlequim.

7º Mar é um mundo rico onde seu personagem entra em cena já com um passado bem definido pela criação da ficha. O cenário tem vários pontos de tensão entre nações e facções que podem ajudar a intensificar o drama, e é comum que os protagonistas tenham valores de vida bem dissonantes, aumentando essa sensação dos “aliados improváveis que precisam se entender”.

Lenda dos Cinco Anéis se beneficia da mesma riqueza de criação de personagem de 7º Mar dentro do contexto do Império de Rokugan, que possui regras sociais interessantes para aumentar a tensão.

--

--