Como contar sua história

A história é uma jornada dupla pelo tempo. Ela envolve o tempo da leitura, da primeira à última página, e é também o acompanhar do tempo narrativo. Existem dois presentes, o presente fluído e abstrato dos personagens e o presente concreto em que o leitor exerce seu papel. A voz do narrador é a responsável por conectar ambos, criando a linha coerente em que o tempo narrativo é traduzido para se manifestar no tempo real. Ele tem duas maneiras para fazê-lo: contando cenas ou fazendo sumários.

Muitos leitores e escritores não sabem diferenciar os dois, nem perceber a transição de um para o outro. Um aspecto difícil de dominar no princípio é saber balancear a alternância entre eles. Como um contador de histórias, você tem de entender o que cada um pode fazer pela sua narrativa e para a conexão com o leitor.

Numa análise ligeira, o sumário é uma grande quantidade de informação condensada numa forma simplificada. A cena seria um lugar ou uma visão, algo que experienciamos momento a momento, ação a ação. A cena seria um evento recontado em todo o seu tempo e espaço, e um sumário seria um conjunto de eventos resumidos em poucos detalhes. Mas observemos o parágrafo abaixo:

As semanas seguintes à chegada de Danial não foram nem um pouco parecidas com aquilo [a minha rotina normal e regrada]. Vivi no ritmo do meu corpo. Acordei quando quis me levantar, comi quando tive fome. Não tive de arrumar nem limpar nada. Havia sempre uma refeição pronta na cozinha (sobremesas francesas de quatro camadas de creme, saladas de fruta exóticas, carnes cortadas tão fininhas que derretiam na boca), roupas limpas e perfumadas no meu quarto, um livro separado na mesa para ler, por mais que eu nunca visse ninguém fazendo nada. Às vezes, havia um ou outro demônio atravessando o corredor de uma porta a outra, mas nenhum deles estava de fato engajado em uma atividade. Cada vez mais, as coisas pareciam ser feitas por magia e não por gestos. Minha casa era de um silêncio fantasmagórico, de dimensões confusas, e eu me tornara só uma assombração dentro dela.

Esse parágrafo possui algumas marcações de cena. Existem ações concretas (“havia um demônio atravessando o corredor de uma porta à outra”) e detalhes (“…sobremesas francesas de quato camadas de creme, saladas de fruta exótcias…”), mas se trata de um sumário.

A cena é um único e específico espaço. O que eu escrevi acima é a representação de diversas cenas: muitas vezes, ao longo de várias semanas, a narradora caminha por sua casa encontrando coisas inesperadas e alteradas como que por magia, chegando à conclusão que sua casa está fora de controle e que ela é irrelevante como habitante. Ela não nos conta, neste parágrafo, sobre nenhum desses momentos específicos, e nem caminha por um deles com uma atenção detalhada ao ocorridos desse momento. Ela os resume ao mínimo relevante. Note também os marcadores de tempo recorrente como “havia”, “sempre”, “às vezes”.

Repare como o sumário se torna uma cena:

Esse torpor me levou para uma depressão profunda. O tédio do silêncio achou seu caminho até meu peito e fez nele ninho azul e frio. Podem pensar que, estando com aqueles novos quartos e magias estranhas para conhecer, eu ficaria ocupada e entretida, mas qualquer vontade foi sufocada por tristeza. Eu não queria me mexer. Não queria conhecer nada.

Então, um dia, depois de uma fuga ligeira para a cozinha, voltei para o meu quarto e vi a porta aberta. Eu tinha certeza que havia fechado-a quando saí. Senti um arrepio.

Na pressa de fugir, abri a primeira porta atrás de mim e entrei. Na pressa, caí de joelhos. O piso, ali, ficava abaixo do nível do resto da casa. Redondo e pequeno, não maior do que três passos de diâmetro, aquele quarto tinha o formato de uma gota. O teto era alto e cônico enquanto o chão era côncavo, fundo e liso, tão escorregadio que deslizei por ele até o centro. Era de estrutura metálica, como um ninho de aço, feito de fios pretos trespassados e enrolados para segurar as placas de vidro no lugar. Do outro lado, por toda a parte, fluía a viscosidade vermelha e incandescente de um rio de fogo.

Foi como acordar no coração de um vulcão. Os fios de fogo amarelo desciam e, onde fluíam mais lentamente, as cores mudavam para o vermelho e então para o preto, mas essas placas escurecidas e duras eram logo empurradas para baixo e sumiam ao longo do fluxo.

O início do primeiro parágrafo ainda é um sumário. Ele ainda marca um tempo longo e um espaço difuso, entregues para o leitor em forma compacta. Depois, o tempo é desacelerado, marcado por “Então, um dia…” e sua passagem se torna equivalente ao real. A personagem se fecha num instante em que ela encontra algo diferente e como reage dali.

A descrição do quarto pode parecer um sumário pela quantidade de informações, mas é apenas o pensamento momentâneo da personagem absorvendo onde ela está. Algo que a personagem absorve em segundos, se estende por um parágrafo inteiro. O tempo narrativo é desacelera ainda mais e fica mais lento que o real. Esse tempo lento nos permite perceber não apenas o que a personagem vê e faz com detalhes, mas também seus sentimentos, lado a lado com sua presença, ao invés de sermos um observador distante ouvindo sobre o que lhe aconteceu. Há energia e tensão, há intimidade. Agora estamos curiosos para saber que lugar é esse e o que a personagem vai fazer. Esse é o valor da cena.

Sumários devem ser evitados o máximo possível. O sumário é funcional, adiantando informações e acontecimentos que seriam entediantes de acompanhar no formato extenso da cena. Se a personagem vai passar muito tempo apenas refletindo e sentindo pena de si mesma, talvez seja melhor pular logo para a parte em que ela é interrompida por alguém com uma nova informação.

Ali, eu me senti da maneira oposta como me sentia lá fora. Completamente protegida daquele poder imenso, mas livre para ver a aprender por quanto tempo eu quisesse.

Mas logo Samael abriu a porta. Eu me senti despertando de um sonho. Minha pele formigava e eu estava grogue, até mesmo enjoada. O quarto não estava quente, apesar do que seria esperado, mas eu estava suando.

Samael vestia uma camisa social verde escura e calças pretas, polido como um advogado. Sem fazer um barulho sequer no vidro, ele desceu do alto degrau da porta e veio, lentamente sem escorregar. Parou ao meu lado, cruzando as mãos nas costas.

— Eu estava procurando pela senhorita.

No sumário, perdemos detalhes, ação, descrição de cenário, diálogo, pensamentos. Perdemos o momento a momento da mente do personagem. Não há drama e intimidade. Toda informação recebida por sumário é desapaixonada. Se a personagem narra sobre uma tragédia no sumário, não é a mesma coisa que ela abrir a porta e encontrar a cena terrível. Cenas são a melhor maneira de engajar seu leitor numa informação. Sumários facilmente se tornam “muito enredo em pouco espaço”, deixando a leitura entediante.

Uma boa cena é lenta. Ela não tenta contar dez anos em dez frases. Deixe o antes e o depois da cena para o subliminar e dedutível. Ninguém quer saber como foi o dia do personagem todo antes dela chegar naquela sala estranha. O que importa é que houve uma surpresa que a fez entrar naquela porta. Agora ela encontrou um novo ambiente que vai revelar uma verdade sobre si que nenhum dos dois personagens em cena desconfiam.

Lembre-se que seu leitor está sempre procurando outra coisa mais interessante para fazer. Você tem de fazer cada frase valer a pena. Relegue o que é menos importante e simples para um formato fácil de compreender e estenda o que for interessante. Ou não. Usando uma literatura experimental, um escritor proficiente na compreensão de tempo, espaço e informação poderá narrar todo o seu livro em cenas longas, sem o auxílio de sumários.

Eis um desafio para vocês ;) boas escritas!

Saiba quando acelerar ou estender o tempo

--

--