(shield da CritIt, via Etsy)

Contrato Social

(ou: pessoas não leem mentes, seus pulhas! Conversem!)

Aline Silva
Matilha da Garoa
Published in
9 min readJul 26, 2018

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Quase dois anos atrás, eu decidi montar uma mesa de Dragon Age.

Era Junho, eu estava conversando com um amigue a respeito do Dragon Age: Inquisition (cuja DLC The Trespasser eu tinha acabado de jogar e estava sofrendo pra caralho) e acabei propondo a mesa pra elu — que tinha me dito que fazia algum tempo que não jogava RPG. Foi uma coisa bem in promptu; reuni meia dúzia de gatas pingadas (muitas que eu não conhecia pessoalmente, porque eu meti o louco mesmo) sob a seguinte prerrogativa:

  • Uma mesa segura pra minas;
  • Foco do jogo na interpretação e enredo;
  • F E E L Z

Mesmo sem estar sequer ciente da existência do conceito de Contrato Social aplicado ao RPG naquela época, foi o que eu fiz antes mesmo da mesa começar: estabeleci um conjunto de coisas que a mesa teria e assim as jogadoras já sabiam mais ou menos o que esperar. Aquele era o início de uma campanha que já durou dois anos e que eu considero um pequeno sucesso pessoal por um sem número de razões.

O que é relevante para esse debate é que nós sempre conversamos sobre tudo da mesa. Absolutamente tudo. Desde o que era mais relevante pra evolução da ficha de um personagem dentro do papel que ele desempenhava nos combates até que rumo seguir com determinados enredos. Eu fico muito feliz em dizer que não houve nada dentro da estória que construímos e contamos que não tenha sido feito de forma coletiva e por isso mesmo o envolvimento dos jogadores com a mesa foi incrível.

Isso me levou a pensar em algumas coisas que, dentro da minha experiência, considero bastante importantes para a sobrevivência de uma mesa de RPG.

Expectativa X Realidade

Quando você é RPGista a algum tempo, torna-se comum acumular na conta mesas que não continuam porque os jogadores ou narrador desistem dela. As pessoas gostam de atribuir isso à falta de tempo, a dificuldade de deslocamento urbano ou agendas que nunca se alinham e embora todos esses motivos sejam perfeitamente plausíveis, falta colocar mais uma coisa aqui na conta: o desinteresse.

Enquanto narradora, eu sei a voadora no estômago que a falta de interesse é numa mesa. Eu vi isso acontecer na primeira vez que tentei narrar Dragon Age pra outro grupo de RPG — um que obviamente não estava na mesma vibe que eu — e tudo bem. Ninguém é obrigado a compartilhar do mesmo interesse que eu em algo. E justamente por isso eu juntei meus livros e fui procurar outro grupo pra jogar. Mas dói ter de fazer isso. Preparar o material, discutir fichas, montar todo o setting inicial para o início da campanha e ter que admitir que não vai dar certo. Rinse and repeat.

Mas eu tinha cometido um erro crasso quando decidi montar essa primeira mesa: peguei uma coisa que eu gostava muito e simplifiquei o máximo possível para meus jogadores se interessassem também. Então era óbvio que eu jamais teria uma mesa de Dragon Age vendendo pros meus jogadores a ideia de uma mesa medieval fantástica com uma praga que ameaça destruir todo o mundo de tempos em tempos. Dragon Age pode até ser feito disso, mas definitivamente não é só isso.

Narrador: se você não é totalmente claro quanto àquilo que tange uma mesa que está criando (tema, cenário, assuntos abordados, foco da aventura, etc), não espere que os jogadores atendam a sua expectativa. Ser direto sobre seus objetivos com a mesa e o tipo de personagem que se encaixa melhor dentro dessa lógica é o melhor caminho para encontrar jogadores mais dispostos a fazer parte dessa aventura.

Jogadores: falem sobre os personagem que vocês gostariam de interpretar. Antes de fazer um jovem feiticeiro prodígio, converse com o narrador pra saber se ele é interessante para a crônica, se todos esses pontos que você gastou pra ele ser um filho de nobres não vai desbalancear o jogo de algum modo. Você quer focar mais na vida dele como feiticeiro ou na vida dele como duque? Ou talvez você queira que as duas coisas sejam o foco. Seja qual for o caso, converse com seu narrador.

Além disso, dentro daquilo que eu entendo como uma boa estória contada numa mesa de RPG, é importante manter em mente que todos os seus jogadores são protagonistas dessa aventura. Eu sei, é difícil contar uma estória com tantos focos diferentes, mas o resultado é bastante recompensador. Você mantém seus jogadores atentos, engajados nas estórias uns dos outros e inclusive pode criar conexões entre eles, aproveitar elementos em comum para pensar em rumos que eles talvez nem tenham se dado conta. Gosto sempre de citar uma coisa que aconteceu numa mesa em que eu sou jogadora: minha personagem e o personagem de outra jogadora tinham muitos elementos em comum em seus passados; tinham estudado nos mesmos lugares e tinham histórias de vida que podiam se conectar em vários aspectos. A narradora ficou tão empolgada quanto a gente quando percebeu essas semelhanças (que não foram combinadas de forma alguma — na época eu mal conhecia essa jogadora) e permitiu que criássemos esses pontos de intersecção, desenvolvendo todo um enredo que ninguém tinha pensado. E quando você foca sua mesa em RPGs mais interpretativos, poucas coisas são realmente mais recompensadoras do que ver essas coincidências e intersecções prendendo ainda mais os jogadores à aventura.

Contudo, mesas muito interpretativas são extremamente caprichosas com todos os envolvidos, narrador e jogadores, além de exigirem bastante dedicação. Um jogador que só se dedica parcialmente à mesa nunca vai conseguir nada além de uma parte muito pequena da experiência que lhe está sendo proporcionada e isso pode se tornar frustrante para ele a longo prazo.
É bem provável que essa pessoa seja mais feliz numa mesa que exige menos comprometimento ou mesmo em grupos que preferem jogar one-shots, então vamos bater aqui na tecla de que o combinado não sai caro.

O Devorador de Mentes, bom, lê mentes. Mas você não vai querer que ele faça isso.

Trigger Warning

Ou Aviso de Gatilho, é uma coisa que é sempre muito citada em discussões sobre mesas seguras e que na realidade é uma muito mais simples do que crê sua vã filosofia: trata-se de uma lista de tópicos que podem fazer as pessoas da mesa desconfortáveis — não interessando a natureza do desconforto. Qualquer um dentro da mesa pode — e deve — organizar essa lista junto dos outros participantes e ela pode ser feita de forma anônima ou não, dependendo de como as pessoas se sentirem melhor para abordar essas questões. Uma parte muito importante desse processo todo é que não cabe à você questionar porque algo é gatilho de outra pessoa. Você só aceita e colabora pra tornar aquele espaço mais acolhedor para aquele serumaninho.

“Ah mas Aline! Eu queria tanto colocar uma aranha gigante numa dungeon pros meus jogadores enfrentarem, só que um deles tem pavor! Quê que eu faço?”

Será que essa aranha gigante é tão necessária mesmo? Será que não tem outro monstro que pode ter o mesmo papel na aventura? Repense isso. O RPG é tão vasto e infinito que eu acho realmente impossível que não tenha pelo menos uma criatura que sirva e às vezes você não precisa nem mudar de monstro literalmente. O cara tem medo de aranhas, mas você realmente precisa daquelas 8 patas pra alguma coisa? Usa um polvo. Não tem água na dungeon pro polvo? PELOAMORDEDEUS, ISSO É RPG, FUCK LOGICS, ACABOU DE VIRAR UM POLVO MÁGICO FLUTUANTE.

*caham*

Agora, se você juntou uma mesa pra jogar uma aventura de Ananasi e o cara tem fobia de aranhas… bom. Alguém explicou pra ele o que era uma Ananasi, em primeiro lugar? E mesmo assim ele aceitou? A mesa está preparada pra lidar com isso? Existem formas saudáveis de se trabalhar gatilhos dentro de mesas de RPG para lidar com traumas, criando um ambiente saudável e controlado onde a pessoa é exposta em doses homeopáticas e de modo que ela possa controlar essa exposição e essa narrativa para superar o medo, mas vamos lembrar que você não é obrigado. Sua mesa não é obrigada. Narrador de RPG não tem graduação em psicologia e não é o terapeuta pessoal de seus jogadores, então se você não quer lidar com isso, converse sobre o impasse com seu jogador e convide-o gentilmente a procurar outra mesa.

Eu poderia me estender indefinitamente nessa questão sobre gatilhos e segurança dentro de mesas de RPG, mas prefiro reservar um tempo para aprofundar o assunto adequadamente em outro texto.

arte por Caio Monteiro (https://www.deviantart.com/caiomm)

Cultura do Bullying e Mentalidade de Grupo

Em mesas de RPG muito longas e com muitos jogadores, é normal ver panelinhas de personagens se formarem, seja por afinidade dos jogadores, dos personagens ou alinhamento das quests. Esse tipo de construção e fortalecimento de relações — a forma como o RPG pode hackear o processo de conhecer alguém e passar a confiar nessa pessoa dentro de um cenário lúdico e a forma que isso pode se manifestar na vida real de algum modo — é muito utilizada em estratégias de gameficação dentro do ramo empresarial e educacional para integrar membros de uma equipe/classe e trabalhar a união do grupo de um jeito eficiente e guiado.

Contudo, essa mesma estrutura pode servir para validar determinados tipos de comportamento que talvez não existissem individualmente nos participantes da mesa. Durante a Copa do Mundo falou-se muito de como a Mentalidade de Grupo serviu como terreno fértil para estimular grupos de torcedores a assediar pessoas durante os jogos e isso iniciou algumas discussões importantes, mas pouco se fala sobre isso dentro do RPG — o que me soa engraçado no melhor cenário e irresponsável, no pior deles.

Sistemas de RPG que trabalham com mais profundidade elementos como rivalidades/preconceitos raciais acabam encorajando e endossando alguns comportamentos que, fortalecidos pela mentalidade de grupo, podem se tornar um verdadeiro inferno pessoal para alguns jogadores. Pessoas que já lidam com algum tipo de repressão numa base diária podem ser (e quase sempre serão) mais sensíveis a determinados tópicos e o sangramento é quase sempre uma certeza.

Já a cultura do bullying é uma coisa que qualquer pessoa que tenha passado por uma escola na vida já viu acontecer: trata-se da forma como um grupo, ao identificar algo que deixa alguém desconfortável, cutuca a pessoa atrás de uma reação que normalmente lhe soa engraçada — mas que obviamente só acontece graças ao desconforto da pessoa que é assediada. Esse tipo de comportamento também pode ser exacerbado pela mentalidade de grupo — afinal todos estão rindo, qual é seu problema em não ver a graça disso? — e contribui grandemente para o desequilíbrio da mesa.

Veja bem: eu não estou dizendo que fazer piadas uns com os outros e com as classes/habilidades das fichas de nossos amigos não seja divertido. O que eu estou dizendo é que se a diversão ocorre às custas de alguém — principalmente às custas da mesma pessoa — então isso não é diversão. É bullying.

“Mas Aline, eu não queria que isso acontecesse na mesa! Eu só queria matar e pilhar e zoar com meus amigos, não queria que ninguém se sentisse perseguido só por conta de umas brincadeiras.”

O caso é que essas coisas simplesmente acontecem. Principalmente quando menos esperamos. Todo mundo sabe onde seus calos mais apertam e não querer que algo aconteça não vai simplesmente resolver o problema, uma vez que ele já está lá. Ignorar o desconforto de outro jogador na esperança de que isso simplesmente passe um dia é o mesmo que ignorar o mínimo de responsabilidade emocional que você deveria ter, uma vez que está inserido num grupo. Em situações assim é necessário fazer uma intervenção na mesa para descobrir exatamente o que pode ter causado esse desconforto e como é possível remediar a situação, com a colaboração de todos.

E se seus amigos não entendem seu desconforto… bom.

Talvez seja hora de arrumar novos amigos ou um grupo de RPG novo.

Se alguém não está se divertindo na mesa, é muito provavel que vocês estejam jogando errado. E não digo errado no sentido mais literal da coisa, em relação às regras ou personagens, mas sim no relacionamento entre as pessoas que compõe a mesa. Se as pessoas não são capazes de solucionar conflitos de forma madura com sua mesa ou se as pessoas acham que tudo que você aponta como gatilho é mimimi, fuja logo dessa enrascada.

Versão TL;DR & Conclusão

  • Não seja um bacaca: respeite os outros;
  • Conversem como adultos;
  • Se não é possível dialogar, não perca seu tempo e sua saúde mental.

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