Eu gosto de jogar RPG com personagens vulneráveis, mas ainda não achei uma mesa que perdoe isso.

Uma discussão sobre interpretação e brincadeiras, mas também sobre abuso e relações entre jogadores.

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Algumas pessoas jogam RPG para poder serem heróis e vencer os desafios do mestre. Até aí, é fácil se relacionar, né? Mas aminha fantasia escapista não envolve vencer, realmente, sendo uma heroína que é capaz de derrotar tudo. Eu gosto de perder mais do que eu gosto de ganhar. Eu jogo RPG para me ferrar.

Ficcionalmente falando, é claro.

Nesse tipo de jogo, meus personagens costumam ser os peões rasos, empregados, aprendizes, humanos mortais, neófitos mal treinados, sempre trabalhando o tema da vulnerabilidade diante de uma estrutura de poder. É comum eu ser o personagem mais frágil da sala, no meio dos personagens do narrador de poder muito maior.

É uma vertente diferente de RPG. Eu costumo usar a palavra narrativista para explicar. O jogo que eu gosto é focado em ação e reação de uma rede complexa de personagens cheios de segredos e sentimentos. É mais sobre lidar com as consequências das suas ações tanto quanto as recompensas. Ter de conversar com as pessoas que você enfurece, ter de aguentar os inimigos tripudiando em cima do seu plano ruim, ou tomar bronca pelos inocentes que você machuca na história. Superar isso e seguir em frente.

A consequência direta é a transmissão (ou sangramento, como quando a tinta sangra no papel para o outro lado) de sentimentos entre eu e meu personagem. Eu me divirto em usar o espaço da narrativa para poder ser falha, travar, sentir ansiedade e medo num ambiente controlado. Envolve poder perder sem me sentir uma falha. Envolve me sentir exposta sem estar realmente expondo nada.

Eu tenho gostos estranhos, você não entenderia.

Mas um outro tipo de transmissão também ocorre de maneira não planejada ou desejada: quando comportamentos entre os personagens passam para os seus jogadores. A princípio se trata de uma continuação da brincadeira fora do espaço de interpretação, mas consequentemente a reprodução dessas “piadas” se torna também uma reprodução dessas estruturas tóxicas de poder a qual nos expomos em jogo.

E adivinha quem sobra do lado de vítima da piada? O elfo fraquinho, o vampiro sem poder, o filhote perdido. Adivinha quem gosta de jogar isso? Eu. Adivinha quem não gosta de ser interrompida quando está explicando algo com um xingamento que meu personagem costuma receber?

Pois é.

Para quem não está acostumado com RPG ou está chegando agora no hobbie, é preciso explicar alguns conceitos. O espaço em que o jogo acontece é chamado de ON (como ON AIR, de uma transmissão, ou como ligado) em alguns círculos de jogadores. Fala-se de ON, círculo mágico, contrato social, suspensão de realidade, quando todos os jogadores concordam que, durante aquele momento, eles falam dentro do espaço narrativo. Quando se trata disso, tudo que um jogador diz ou faz de piada é considerado que acontece dentro da história. Dependendo da mesa, isso é reforçado com alguma seriedade. Fica estranho se o João começar a falar do compromisso de dentista quando ele deveria estar interpretando Fiona, a elfa, por exemplo.

O contrário, porém, não é tão bizarro. Caso João comece a zoar falando da maneira como ele vai esfregar o rosto do Orc na mesa de bar, é uma piada interna fazendo referência ao jogo. Nesse espaço meio cinzento de brincadeira que mescla realidade e jogo, jogadores falam da vida ao mesmo tempo em que usam fatores do jogo para zoar. Isso é comum em várias esferas da comunicação, não exclusivo do pessoal que joga RPG. Grifinórios e Sonserinas trocando farpas, embora Hogwarts não exista e ninguém tenha passado pelo chapéu seletor. Amigos torcedores de times de futebol rivais se ameaçam, embora a amizade deles nem passe pela esfera de discutir esportes.

Isso se torna tóxico, ao meu ver, quando reproduz um comportamento que já é tóxico no ON, transportando a estrutura do jogo para a vida. Fica mais confuso e complicado ainda quando o sangramento de sentimentos é intenso e o ato da brincadeira transporta os jogadores para o estado mental do personagem. Por mais complexo que minha explicação possa parecer, é um processo que acontece espontaneamente, porque a entrada no lúdico é muito natural, e o jogador de RPG de longa data acessa o estado mental do jogo rapidamente.

O problema acontece quando uma relação que é tóxica no espaço do jogo de repente é reproduzida fora dele com essa desculpa do lúdico. É perigoso porque usa a mesma desculpa de que é apenas uma brincadeira, ancorado em um sistema em que as pessoas realmente concordam formalmente com a brincadeira em um determinado espaço de tempo.

Mas como você explica que aquela brincadeira previamente acordada não vale mais? E depois, quando o comportamento já está naturalizado e nem precisa mais da desculpa para acontecer?

Para o meu desconforto, infelicidade e “flertando” com gatilhos de self-harm, as ocasiões em que eu arrisquei realmente a jogar com meu tipo de personagem favorito (vulnerável, fraco, tolo, desastrado) eu me vi, depois, em ocasiões não relacionadas ao jogo, sendo empurrada de volta para o estado mental de medo e ansiedade pelas mesmas pessoas que tinham minha permissão para me tratar “mal” dentro do jogo, mas jamais fora dele.

E isso não é um fenômeno raro, não acontece apenas com jogadores como eu que se colocam propositalmente na posição de receber o ataque. Ouso até levantar a hipótese de que foi o que levou muitos grupos de Live Action para uma falência moral de jogadores se machucando e se atacando. Não é incomum ver a arrogância de personagem e jogador sendo usada em ambos os lados do jogo para exercer o pouco poder que é possível e possibilitado pela narrativa, nem ver a zoeira entre personagens perder limites até alguém ser empurrado além dos limites da paciência e da resistência.

Penso que nem é um problema do jogo e do RPG exclusivamente, mas de uma estrutura social generalizada. Vivemos uma cultura de zoeira constante, usamos piadas e degradação para quebrar o gelo e puxar conversa com as pessoas. A maioria nem percebe que está trocando intimidade e acolhimento por humor barato, preenchendo o conforto da convivência por uns segundos de Turn down for what.

Me preocupa, me entristece e me adoece ver as estruturas do lazer, do drama pela diversão e das histórias de aventura sendo usadas como ferramentas de ataque e de abuso, ainda que não intencional, ainda que “de brincadeira”.

E eu, que sei o que me afeta e faço o possível para deixar isso claro na minha convivência social, consigo diagnosticar o problema e me proteger dele. Mas também sei quantas pessoas já vi saírem da brincadeira, machucadas e enfurecidas, sendo acusadas de “não saber brincar”.

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