O repertório da sua imaginação, RPG e a automutilação do escapismo

Foi em 2016 a primeira vez que eu joguei um RPG em que a Narradora seu deu o trabalho de criar um vasto elenco de PdM’s (Personagens do Mestre) e fez um documento de referência com fotos para eles. Entre o elenco, atores de Hollywood e modelos, todos altos, simétricos, malhados, magros, cheios de personalidade. Durante os turnos, nos mandávamos fotos com referências glamurosas de roupas e lugares. A sensação de imaginar e recordar o jogo logo se aproximou à de ver uma série, cada personagem com seu ator e seu figurino, seu set, sua expressividade.

Aquele jogo, como a maioria dos jogos de RPG que me envolvo, se tomou uma parte muito grande da minha imaginação durante os seus sete meses de duração. E quando o jogo acabou e eu pude parar, me distanciar, e ver o que eu tinha focado tanto tempo e tanta energia, percebi como eu tinha entrado num mundo que não fazia bem para mim como pessoa. Em parte porque era uma campanha de Mundo das Trevas com todo o seu elenco de crápulas, monstros e tragédias. Em outra porque… Bem, eu estava comprando uma narrativa que me excluía completamente como pessoa.

Eu explico:

RPG é um hobbie de indulgência. Um lazer em que você é tão livre para exercer sua vontade e seus gostos que pode fazer essencialmente qualquer coisa. Na sua capacidade de moldar os mínimos detalhes da história, acontece um processo natural de, no estilo Marie Kondo, excluir o que não se gosta e deixar apenas o que traz alegria. Esse processo de seleção fica bem visível no RPG, onde ativamente estamos escolhendo elementos para contar a história. Porém isso é algo que fazemos com tudo da nossa imaginação e nossos gostos. Como nerds e com acesso à internet, temos um vocabulário infinito para provar e, com um mínimo de autoconhecimento, refinar cada vez mais nossos prazeres até achar a centelha fundamental, a fórmula exata, das nossas respostas de endorfina.

Mas o que acontece quando o que é excluído é, basicamente, seu corpo, sua aparência, ou sua expressividade? Eu e essa narradora somos ainda duas moças gordas, baixas, sem nenhum glamour no nosso guarda roupa. Era só olhar aquele universo do jogo para perceber que não havia ninguém nem levemente parecido com a gente.

Afastar aquilo que incomoda é a estratégia mais simples para se livrar de um problema. Essa é uma das grandes questões da natureza humana que eu nem tenho espaço nesse texto para elaborar em toda a sua problemática. O que eu posso falar é sobre usar essa estratégia para lidar com nós mesmos. Através da grande loteria genética, cada um de nós recebe um corpo com sua imensa variedade de possibilidades e problemas. Quando crescemos, a pessoa formada por mil moldes diferentes vai decidir sua opinião sobre a entidade corpo+mente que ela percebeu ser em algum momento da adolescência. A auto estima é resultado de várias forças formadoras, mas, no final, é uma ideia geral que você sustenta sobre si mesmo. Embora nós possamos desgostar do resultado final e odiar o corpo+mente que somos, e por mais que desejemos nos afastar dele, o que nós somos é virtualmente inescapável, exceto no campo puro da imaginação, onde podemos de nos visualizar sempre fora dele e em outra experiência de vida.

Parte do apelo do RPG é esse! Viver outra vida nos conformes de uma narrativa divertida. Deixar de ser quem somos por alguns momentos. Não vejo o RPG jogado desse ou de outro modo como um problema, veja bem, o que eu penso é que esse jogo como uma ferramenta de indulgência e liberdade serve como uma boa forma de diagnóstico para algumas coisas. O tipo de personagem que queremos jogar e o mundo que construímos pra ele diz muito sobre quem somos e o que gostamos.

Então o diz sobre nós se o nosso lazer envolve o apagamento de quem somos completamente? Se, sutilmente, construímos um universo narrativo que excluiu o que percebemos como nossas “fraquezas”?

Pensamos na criatividade como um exercício do mirabolante, mas ela é um artifício diário simples de enxergar possibilidades e se conectar com o mundo ao redor para procurar novas soluções. Ela é um mecanismo de sobrevivência antes de tudo. Porém quando a solução que encontramos é o escapismo, de novo e de novo, esse esforço perde seu aspecto lúdico e tem sua dose de tóxico. Se a relação com o corpo e sua identidade é sempre de fuga, de rejeição, de ódio, alimentamos uma voz que vai se fortalecendo. E, de novo, quem somos é algo inescapável. Querer realmente fugir, ao invés de lidar, é um caminho de frustração e dor.

Vendo por outro lado, imaginação é uma parte importante da nossa relação de autocuidado. É através da criatividade que vemos saídas para nossas angústias, inventamos soluções para nossos problemas e reconstruímos símbolos para nos fortalecermos. Ela é também um exercício de coragem — não se pode ser criativo sobre questões que evitamos pensar a respeito. Evitar uma questão porque “é assim que as coisas são” é o primeiro passo para desistir da sua criatividade em algum aspecto, e desistir de uma batalha de mudança para melhor.

A busca, então, por pensar e ser criativo quando se trata de aspectos dolorosos da vida de cada um, é também uma terapia para curar e mudar nossa percepção em relação aos problemas. Uma pequena revolução interna.

Por exemplo, quando em 2011 eu percebi que teria de inventar um estilo e uma estética próprias para mim porque se dependesse do que era entregue pela mídia, eu me sentiria feia e desajeitada para sempre. A primeira vez que criei uma personagem gorda foi um exercício do poder de moldar um símbolo, jogar com alguém desavergonhado e poderoso que era forte e, ainda assim, acima do peso, mas nem por isso considerado menos na sociedade do jogo por isso. Com ela eu posso ensaiar para pensar em questões mais complexas. É mais fácil bolar o estilo de um personagem que o meu pessoal, mas começando pelo personagem eu ensaio para fazer o mesmo comigo. Foi um exercício de repensar toda a minha disposição de pessoa gorda com o espaço que eu frequento.

Se o RPG é a prática da criatividade, que façamos dele uma ferramenta de criatividade positiva, feito para refletir sobre quem somos de maneira construtiva. Não para nos machucarmos ainda mais. Assim, fica o convite de reflexão, para pensar criticamente a respeito das nossas escolhas, e entender que o jogo que montamos é uma extensão de um processo complexo que está, sim, muito vinculado a auto estima.

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