Rpg e estar junto

Uma discussão sobre usar o jogo para amizades

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Enquanto a vida se desenrola, todos nós perdemos amigos pela distância e pelos desencontros. Estudos mostram que após os trinta, fazemos cada vez menos amigos à medida que temos rotinas mais atribuladas que evitam as saídas e entramos em empregos que nos forçam a conviver com times pequenos de pessoas com quem não temos muito em comum. Ficamos mais impacientes com os defeitos alheios, especialmente em tempos de extrema polarização e opiniões muito passionais, e essa intolerância cria mais barreiras.

O RPG é um hobby que vai na contramão dessa tendência por envolver a necessidade do encontro, já que não é possível jogar o RPG de mesa sozinho. O jogo pressupõe um grupo e um tempo livre em que todos estão ali engajados na história. Esse engajamento não tem limite de classe social, idade e temperamento. Unidos pelo apreço do sistema e do formato (mesa, conferência por voz, texto), pessoas muito diferentes encontram um ponto de partida para conviverem por muitas e muitas horas. A necessidade de jogar tira as pessoas das bolhas diárias para interagir com estranhos em novos espaços.

É também uma porta de entrada para conhecermos os gostos e a disposição de cada um. Na convergência de ideias da mesa, sabemos quem é o ansioso e o paciente, o gentil e o impulsivo, quem gosta de drama e quem gosta de ação. Não é o suficiente para sustentar nenhuma relação, mas são primeiros passos sólidos para encontrar a afinidade. Enquanto o jogo persiste, os jogadores se tornam capazes de convergir e de se aliar. Manter contato fica mais fácil e a manutenção dos laços acontece.

Mas a amizade utilitarista do hobby é frágil. Quando acaba o interesse comum, as pessoas vão cada um para seu canto.

A transição para um laço mais duradouro requer mais que o impulso da diversão, mas uma similaridade de valores aliada ao puro senso de se apreciar as qualidades da outra pessoa, de a querer bem, de se preocupar com ela e estar disposto a dedicar tempo e afeto. E mais, esse desejo deve ser mútuo e expresso com sinceridade, sem ansiedades e neuroses. Esses amigos podem evoluir para pessoas com as quais você não necessariamente se diverte junto, mas se tornam aqueles com quem você pode conversar e em quem você pode confiar seus pensamentos.

Argumento aqui que o RPG não precisa ser uma ferramenta apenas para a amizade utilitarista. Se mudarmos um pouco a percepção do jogo para além do lúdico despretensioso e enxergarmos a campanha como uma narrativa que fazemos em conjunto com nossos amigos para nos fazer bem, atentos às necessidades de quem compartilha a história, descobriremos o RPG como uma forma de expressar carinho e cuidado.

Tão bom quanto uma conversa, um café e um alento, uma aventura sob medida pode ter gosto de afeto e compreensão, conectando os envolvidos em laços mais fortes. Mas como se parece esse jogo-cuidado? Ele difere do jogo normal porque surge com a proposta de atender especificamente os gostos dos jogadores com um bocado de indulgência. A proposta é já tecer a trama com o objetivo de provocar alegria, euforia e boas sensações, escolhendo cenários e personagens que sejam dos arquétipos favoritos. Envolve menos acaso e mais apuro.

Se o narrador é o árbitro, ele toma as decisões baseadas nos clichês que os amigos apreciam, e sua postura não é apenas de criar desafios, mas também de embalar os outros com aquela história idílica, como num sonho vívido. A ideia de ser fã dos personagens dos jogadores é a maior aqui — não para protegê-los, mas para colocá-los onde querem estar e dar a eles desafios em que vão passar por emoções interessantes. Emoções que eles desejam ardentemente.

Isso não precisa ser algo complexo e super planejado. Por exemplo, narrar uma aventura feita sob medida para o personagens favorito do seu amigo. Deixar ele pedir encontros com NPCs específicos. Criar um arco de história feito para imitar um filme que ele curte. Ou até mesmo ser um jogador corajoso na campanha de melodrama de terror do seu colega escritor.

Quando discutimos emoções em jogos imersivos, falamos muito da necessidade de confiança e acolhimento para passar pela experiência emocional do personagem. É um momento de vulnerabilidade e desistência do controle. Confiamos na mesa para nos fazer passar por algo sem nos machucar com isso depois. O jogo indulgente pode ser o espaço ideal para essa experiência, afinal, ele tem esse cuidado com a vulnerabilidade na sua estrutura de formação. Enquanto nos embalamos na história, criamos o espaço para a queda e a volta das emoções intensas, pois sabemos que estão todos ali prontos para nos segurar.

Mas esse tipo de postura não deve ser algo que se faça de maneira leviana, sem um acordo, ou sem um altruísmo calculado. A parte da mutualidade é pré-requisito para a postura de “propor um jogo como forma de dar afeto” ser saudável, se não se torna um auto-sacrifício desnecessário. Todos os envolvidos têm de chegar com a postura de se divertir com atenção uns aos outros e parar de jogar quando não estiverem mais cumprindo esse papel. A diversão geral ainda é uma muito importante.

A narrativa de afeto não precisa ser longa. Ela só precisa dar essa sensação boa de conexão e acolhimento.

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