RPG sem ideologia

ou “aquelas mentiras que a gente repete pra si mesmo na vã esperança que seja verdade”

Aline Silva
Matilha da Garoa
7 min readJun 19, 2020

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Tampo de uma mesa empoeirada com uma vela à esquerda, um livro antigo aberto e uma caneca de metal
(até a mais inócua das imagens carrega uma subjetividade latente que está entrelaçada numa ideologia)

Faz sentido falar em RPG sem ideologia?

TL;DR — Não.

A versão longa é um pouco mais complexa do que isso, mas vou tentar ser breve e didática aqui (HAHAHA, BREVE).

Primeiro, vamos começar destrinchando o termo “ideologia”.

Ideologiaaaaaaa, eu quero uma pra viveeeeeeer

Muy resumidamente:

  • Na antiguidade, pensadores na Grécia e Roma já entendiam “ideologia” como um conjunto de ideias e opiniões de uma sociedade;
  • 1801, o Conde de Tracy ficaria conhecido por definir ideologia como sendo a ciência das ideias — e por ser perseguido por Napoleão Bonaparte, que considerava ele e seus seguidores “deformadores da realidade”;
  • Marx aparece com uma concepção crítica da ideologia, considerando-a uma consciência falsa; intelectuais agiriam a favor da dominação das classes deformando a compreensão das pessoas sobre como funcionam as relações de produção e isso levaria à inversão ou camuflagem da realidade — o que favoreceria os ideais da classe dominante;

Mas Aline, quais os ideais da classe dominante? O que eles querem tanto assim defender? Do que você está falando, você me pergunta.

Oh sweet summer child
O que você sabe sobre a Dominação das Classes?

Você sabe, o de sempre — dominar os meios de produção, explorar o trabalho das pessoas, convencê-las de que é seu direito divino estar numa posição privilegiada, convencê-las de que são as pessoas mais aptas a decidir como as coisas devem ser já que elas são as pessoas com o direito divino ao privilégio.

Ou seja: é seguro afirmar que nem a utilização da palavra ideologia está livre de ideologia.

(BADUM-TSS)
(sim, eu esperei muito tempo na minha vida pra fazer essa piada)
(não, eu não sou muito popular em festas)

Por isso que dentro dessa concepção crítica do que é ideologia não faz o menor sentido falar que uma pessoa ou um grupo de pessoas possui uma ideologia, ou que existem ideologias diferentes e cada um tem a sua, por exemplo.

Ideologia não pode ser disseminada como uma ideia.

Dentro da concepção crítica, ideologia é sempre um meio utilizado para criar ou sustentar essas relações de dominação através de qualquer instrumento simbólico que estiver disponível.

Esses “instrumentos simbólicos” podem ser discursos, livros, filmes, frases, peças de teatro, novelas e sempre vão contar a mesma história ou analisar as coisas através do mesmo viés — sempre servindo os ideais da classe dominante.

Eu já falei num texto anterior sobre como a nossa visão de mundo é muito estreita e baseada majoritariamente na percepção e experiências de homens brancos, heterosexuais e não-periféricos e essa visão permeia absolutamente tudo na nossa vida: desde o tamanho dos smartphones que usamos, os espaços públicos e privados que ocupamos, as histórias que consumimos e também nossa organização política e social. Sinto muito em lhes informar mas isso não é apenas fruto do acaso e do esforço de todos os homens que vieram antes de nós, mas parte de um projeto de dominação social que é mais antigo que a gente.

Extrapolando: segundo essa concepção crítica, quando alguém fala de “RPG sem ideologia” seria necessariamente um RPG isento da defesa/glorificação das estruturas de poder político-sociais vigentes. Ironicamente (ou nem tanto), não é esse tipo de coisa que a gente vê quando ouve pessoas bradando que querem ver seu hobby livre de ideologia e que RPG é seu momento de escape da realidade mórbida da vida.

Eles não desejam que isso seja politizado, o que eu entendo.

Só que infelizmente, mesmo essa argumentação pertence à um projeto de dominação que vai muito além das nossas vontades.

A Indústria Cultural de Adorno

Theodor Adorno foi provavelmente uma das primeiras pessoas a entender e analisar a indústria cultural do período pós-guerra e é o estudioso que de fato cunhou o termo nos idos de 1944, junto com Max Horkheimer. No livro Dialética do Esclarecimento, os filósofos dedicam um capítulo inteiro à discussão sobre como a Indústria Cultural — aquela de cultura massificada e mainstream — nada mais é do que um sistema que cria bens culturais padronizados que servem à um projeto de controle da sociedade de massa, tornando as pessoas mais complacentes mesmo em meio às adversidades econômicas.

Não, Blade Runner não era só um filme sobre homens brincando de deus

Adorno alerta para a forma como a razão humana do Iluminismo é progressivamente substituída pelo domínio da razão técnica. Valores humanos vão sendo deixados de lado em troca dos interesses econômicos e a vida e todos os aspectos sociais são regidos pelos interesses do mercado. Ao forçar as pessoas que não são capazes de seguir esse ritmo e ideologia de vida à margem da sociedade, cria-se um ambiente fértil e propício para o nascimento do Individualismo.

Afinal de contas, é um mundo selvagem lá fora, só os mais fortes sobrevivem. Soa familiar?

Para isso, a Indústria Cultural se apropria da exploração dos bens culturais — cinema, por exemplo — num processo sistemático que transforma algo que era considerado arte num meio muito eficaz de manipulação.

E qual o objetivo disso tudo? Atrapalhar a percepção das pessoas. Indústria Cultural é a própria Ideologia em ação, nesse caso. Todos os valores são regidos e orquestrados por ela, incluindo a felicidade das pessoas. Essa, inclusive, é a grande força que ela tem: criar nas pessoas a necessidade de consumir sempre, te convencendo que a sua felicidade está sempre a uma viagem, um filme, um celular, um par de tênis de distância.

Nenhum bem cultural está livre dessa bias; livros, cinema, rádio, televisão, revistas, jornais e agora, os mais recentes participantes dessa estrutura, jogos.

Os videogames, aliás, foram rapidamente cooptados pela Indústria Cultural uma vez que se percebeu que eles tinham vindo pra ficar, estimulando inclusive a corrida em busca de mais tecnologia para produzir jogos cada vez mais parecidos com um tipo muito específico de realidade.

É só você pensar em como as empresas basicamente alternam entre si quem está fazendo o lançamento de console da vez, alimentando a ilusão da necessidade de consumo sob uma pressão puramente técnica e arbitrária de que mais tecnologia = jogos melhores. Só que ao mesmo tempo, a estrutura básica das histórias contadas nesses jogos (quando tem alguma) são essencialmente as mesmas, sempre com o great white savior surgindo pra salvar um mundo, uma cidade, uma galáxia muito, muito distante, sua família, si mesmo, etc, etc, etc.

Separados no nascimento ou criados pelas mesmas pessoas? Um mistério

Tá, mas e o RPG?

Na sua essência, por se tratar de uma experiência necessariamente coletiva, o RPG funcionalmente se opõe à lógica da Indústria Cultural. Não é um material facilmente produzido, não é um material facilmente massificado e é um material muito bom em alienar as pessoas de outros pontos de contato com a Indústria Cultural. A capacidade das grandes editoras em tornar o RPG pop e um tipo de conteúdo amplamente consumido tem tido muitos sucessos nos últimos 3 ou 4 anos, mas ainda é recente demais pra efetivamente categorizá-lo como mais uma engrenagem da Indústria.

Foi Johan Huizinga quem disse que o lúdico em si tem uma relação de prazer e dor, alienação e emancipação, liberdade e opressão, levando pessoas de todas as idades a um momento lúdico com suas experiências de vida e com situações de descoberta do mundo — que são oposições diretas à lógica da Indústria Cultural. E mais: oposições muito poderosas.

O Individualismo da Indústria Cultural não só impede que as pessoas olhem pra si ou para os outros, mas corre um risco imenso de fragmentação quando isso acontece.

Mas aqui o Individualismo e a Indústria Cultural estão na vantagem.
O processo de auto-conhecimento é doloroso e o mundo ocidental é muito bom em ignorar a necessidade de fazê-lo, através de um sem número de preconceitos e falácias pautadas na lógica de que não podemos demonstrar fraquezas — lembra, lei da selva.

Então sim, funcionalmente o RPG ainda resiste à Indústria Cultural, mas as pessoas que jogam estão imersas nela. Para mim, é essa dualidade que cria algumas das dissonâncias cognitivas mais comuns que estamos acostumados a encontrar em mesas: a lógica da fantasia medieval que aceita dragões e magia, mas não pessoas queer. A lógica que de o machismo é inerente ao passado da sociedade — mesmo quando a sociedade em questão não tem o menor compromisso de ser um paralelo da nossa. Todas as inferências morais que vem do cristianismo mesmo quando esse é inexistente nas obras e por último, mas não menos importante, que RPG pode ser livre de ideologia — onde “ideologia” é tudo que questiona o status quo internalizado nas pessoas.

Pra pensar essa dissonância de forma ainda mais explícita é só lembrar de todas as mesas de WoD que você tentou jogar na vida, mas que flopparam porque as pessoas só focaram na parte do conflito entre clãs/tribos/kiths/etc e esqueceram que o jogo ainda é uma experiência coletiva e todos precisam das outras pessoas com quem estão dividindo a mesa pra contar uma história.

Gamers estão convencidos de que só existe apenas: duas raças: branco e “político”. Dois gêneros: Homem e “político”.

Esse status quo tem muitas formas e nós as denunciamos no RPG cotidianamente: O machismo que as pessoas enfrentam nas mesas. Assédio físico e moral. Homofobia. Transfobia. Racismo. Gordofobia. Preconceito e exclusão de pessoas pobres ou periféricas. Capacitismo. Fascismo. E aí estamos sendo “políticos” demais, trazendo discussões pro hobby que não são necessárias.

Mas não são necessárias pra quem mesmo?

Quero encerrar esse textão com uma consideração muito cabível que foi posta por Adorno em seus estudos através da Teoria Estética: a única antítese possível para nossa sociedade selvagem é a arte. Para ele, apenas a arte era capaz de libertar as pessoas do sistema e colocá-las como autônomas e humanas, já que é só na arte em que as pessoas são livres para pensar, sentir e agir.

-> Pra entender mais sobre Adorno e Indústria Cultural, tem esse vídeo da Rita Von Hunty que eu acho bem indispensável.

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