Sacrifício Fianna

O parente ao lado dele, um senhor alto cujo rosto estava vermelho de calor e suor, sorriu ao tocar seu ombro. Um tapinha amistoso caiu no ombro do garoto e então o velho começou com o toque da madeira no couro do tambor.

As pessoas na roda ao redor da fogueira acompanharam em palmas e gritos. Rostos misturados, mestiços, diversos, mas todos com aquele mesmo sorriso do sangue féerico. Rafael se ergueu do chão, batendo as palmas juntas, acompanhando a alegria delas. O jovem riu alto, mais alto que qualquer um ali, sentindo o calor do fogo alimentando sua euforia, o calor do álcool lhe dava vontade de crinar.

Os parentes tinham lhe tirado as roupas de homem e vestido nas cores do clã. Seu corpo ferido e distorcido pelas cicatrizes estava pintado nos ogham dos feitiços mais puros de devoção e alegria. Joias forjadas por primos e tios pesavam do seu pescoço e dos seus dedos. Naquela noite, ele não era só um filhote sendo treinado e analisado. Ele era um Fianna, acompanhado por toda a sua família.

E ali, na primeira linha entre ele e a platéia, sentavam-se a sua matilha, os olhares atentos nele. O tambor parou, as vozes cessaram, restou apenas o vento e o crepitar das chamas, o sangue pulsando na sua cabeça. Rafael sorriu e olhou para a lua cheia do Lughnasadh. Sua voz foi alta e límpida, clara como apenas a de um Philodox poderia ser:

Se deve respirar, estai avisado

que cada fôlego ruidoso e alto,

é um verso que se perde, sufocado.

Jamais se ouvirá em outro momento,

como essa balada, sortilégio sagrado,

de poeta tão movido e constrito,

desejos tão puros de novos ventos,

testemunhos ardentes, ferozes intentos.

Mil perigos e males anunciados,

roubam da vida serena, seu riso,

e dos venenos secretos, velados

no seio do amor, brota o vício

no gosto da morte, do terrível pecado

de ver desse mundo podre resquício.

Mas em cerne de terror indescritível

achareis amor da Deusa, invencível.

Perceba filhotes que Gaia elege,

dentes e garras forjados na febre.

Em um sonho puro e belo converge

um grito alto de bravura celebre.

Nos campos e matas de força selvagem,

dos frios castigos de prova fúnebre,

com honra e força a alma transborda

para mudar o destino de toda a horda.

Ainda que trêmulos sejam os passos

e o soluço da dor e tortura, agoniado,

Da vontade da cura somos vassalos,

por justiça e coragem invocados.

Desfeito por pelos, sangue e estalos,

abandonado está o temor passado,

pois somos seus filhos, mãe idolatrada

da nação garou, a fúria encarnada!

Há um deles p’ra cada nove de nós

Mas já não enfrentamos chances piores?

O fim chegou, não é o que dizemos?

Se em meu peito definhar os ardores,

pela batalha e glória que trazemos?

Ora, estamos prontos p’ra tantas dores!

Então que venham, em marcha, em hubris

vamos brindar os derrotados lamurios!

Trema, maldito, corrompido!

Escute nosso uivos, nossos gritos

sinta a força em nossos rugidos!

As presas que rasgam e o espírito

inquebrável, inconquistável, decidido

no voto sincero, no milenar rito,

de lutar, morrer, renascer

em nome de Gaia, por fim, vencer.

Não haverá mais aspirais a dançar,

secou-se a corrupção em sua fonte,

as aranhas não tecem, só a observar,

no escuro silêncio frio e cortante

Boa mãe, desperta, de novo a criar

vida, luz, selvagem e pulsante.

E ali, no cerne do mundo avesso

A cura do mal, o novo começo.

Eis Espiritos, doce oferenda

dum sacrifício mais devoto e servil.

Devorem e saboreiem! Entendam

sangue do meu sangue, desejo sutil,

que os laços da forte família ainda

valham mais que preconceito hostil.

Que seriamos de nós abandonados

se todos fossem fortes isolados?

Dai seu favor ao este atrevimento,

Para qu’estes meus versos, vossos sejam;

Na amarga vitória, lhes deem alento,

E na melancolia, esperança provejam.

Minha matilha, vejam nosso momento!

Que por honra e bravura eles almejam

de se tornarem, da deusa, instrumento.

Di-me Gaia, com sinceridade, te peço

Se tão sublime desejo coube em verso.

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