Sobre jogar RPG errado e personagens quebrados

Existe esse consenso um tanto melodramático de que não dá para jogar RPG do jeito errado, no sentido que é possível encontrar espaço para todo tipo de jogador e personagem com a combinação correta de companheiros, diálogo e estilo de jogo. Entretanto, após muitas conversas e textos sobre o aspecto lúdico e catártico do RPG, chego à conclusão que não é só possível jogar errado, como muita gente não sabe lidar quando isso acontece.

Primeiro, é preciso entender o termo jogar errado como algo subjetivo e por qual aspecto eu vou usá-lo nesse texto. Eu já observei ele ser usado tanto como ferramenta de exclusão e como descrição para o sentimento de ser o excluído, indicando que o julgamento sobre o estilo de jogo (a combinação de temas de criação de personagem como sua abordagem na narrativa) de alguém é uma maneira de rechaçar pessoas da comunidade. Afirmo então que eu não estou falando dessas atitudes e nem concordando com elas, pois RPG é uma mídia cheia de subjetividades e diferentes interpretações de mesmos conceitos e não quero nem devo forçar as pessoas a observar qualquer regra ou enredo por um funil pessoal.

O termo jogar errado nesse texto é usado unicamente sobre a ótica de “jogar com um personagem que vai, pelas regras da lógica do jogo e pelo consenso do universo narrativo, encontrar sua injogabilidade derradeira pela morte ou isolamento”.

Aos que chegam agora na discussão, faço a recapitulação de que o RPG é uma modalidade de jogo de contar histórias em que pessoas se reúnem para criar personagens e desenvolvê-los através da superação de desafios diversos como monstros, duelos, desentendimentos, negociações, guerras e tratados. Por se tratar de uma experiência coletiva de troca de cenas que mistura tanto a sensação de imersão quanto a de satisfação e insatisfação de completar ou arruinar objetivos, o RPG é uma mídia de constantes catarses positivas e negativas. Quando sentimentos da narrativa passam para o jogador, engrandecendo a experiência inicialmente proposta de diversão, também dificultam a comunicação sobre ele.

Essa sensação difusa entre interpretar e ser o personagem costuma criar barreiras para que as pessoas notem as incoerências na maneira como jogam e para receber críticas sobre o assunto. Quando corrigimos o personagem de alguém, não é incomum que a pessoa se sinta pessoalmente ofendida, atacada ou cerceada no seu momento de lazer.

O lazer deixado sem críticas, porém, costuma “dar ruim”. Se o personagem força as regras, ou elas terão de ser mudadas para evitar a punição pesada, ou o personagem será punido de acordo. O problema é que a punição pode ser algo que o jogador não esperava e não gostaria de lidar.

Jogando errado contra a periculosidade do jogo

Um princípio de desenhar um RPG é colocar tantas regras quanto se é necessário para se contar de história que se quer contar. Isso envolve não só um elemento matemático de distribuir pontos numéricos em espaços certos para sustentar o personagem nas probabilidades, mas também os elementos narrativos que o colocam como parte da história. Há uma falácia da importância de um lado sobre o outro dentro desse ou aquele sistema, mas a verdade é que é preciso ambos para o personagem de RPG existir, independente se a campanha cobra mais a matemática ou o enredo.

Jogar errado envolve fazer um personagem cujo conceito não se sustenta a longo prazo em algum dos lados das regras, ou os dois. É o famoso caso da pessoa que quer jogar com um caçador de dragões, mas não tem pontos o suficiente em vigor para sobreviver ao primeiro golpe de um desses. É também a história de um vampiro novato que ousa sentar com os pés na mesa na casa de um vampiro mais velho. Ambos compartilham mesmo defeito de maneiras diferentes — eles não compreenderam a periculosidade do RPG que estão jogando e não se preveniram contra ela.

Isso é muito comum de acontecer em jogos que apenas dispõe pontos e listas aos jogadores sem explicar as consequências das escolhas, mas também por jogadores que não levam a sério os riscos do universo em que ele está prestes a entrar. Quando o narrador desce com a punição lógica exigida pela narrativa (o golpe mortal do dragão, a humilhação e tortura pelas mãos do vampiro mais velho), não é incomum que o jogador se sinta injustiçado.

Quando a situação é baseada na matemática (uma rolagem de dado de dano que ultrapassa os pontos de vida do personagem), é mais fácil driblar esse sentimento, mas quando ela é por parte das regras narrativas, que são passíveis de interpretação e subjetividade, pode-se interpretar que o Narrador exagerou na resposta violenta.

De qualquer maneira, coloca o narrador numa questão difícil de decidir roubar as regras, ou não, para corrigir o erro de planejamento do jogador. Ou pior, torna a mesa inteira refém de uma situação mal construída. Logicamente, o que deveria acontecer é a destruição do personagem, mas ninguém deseja magoar o amigo. O personagem quebra, ou quebra o jogo.

Jogando errado contra o grupo

Jogos de RPG, em muitos casos, são desenhados para a interação de um grupo que trabalha junto. Logo no início da história, os personagens de todos os jogadores recebem uma missão ou objetivo que une diversas motivações diferentes por um tempo variável de acordo com a história. Em prol da diversão geral — do mestre que narra a história e de todos os jogadores que querem as glórias de resolvê-la — concorda-se que deve haver um mínimo de harmonia para prosseguir a história.

Entretanto, detalhes deixados de lado na discussão inicial de objetivos e propostas de personagens podem sabotar essa harmonia. O caso mais clássico é o do personagem maléfico num grupo de personagens honrados. O desejo do jogador de criar um avatar que não esteja preso às regras da moralidade e da justiça pode desandar de um conflito pastelão entre amigos para uma situação impossível. Alguns crimes não podem ser ignorados sem destruir a base moral que pauta a interpretação e a personalidade do personagem, além de criar uma situação de cumplicidade com o malefício feito.

Vilania não é o único jeito de desafiar o status quo do grupo até rompê-lo. Comportamento de intriga, esconder informação por bons motivos narrativos ou não, planejar pelas costas, querer puxar o tapete, roubar a maior porção do tesouro… Não apenas pela falta de esportividade, mas porque esse tipo de comportamento costuma ser imperdoável de um ponto de vista lógico, ninguém mais vai querer ter ele como parceiro de aventuras. E aí temos um personagem que, quando trazido à luz suas atitudes desagradáveis, vai ser rechaçado, perseguido e punido. O espaço dele na narrativa foi perdido.

Jogando errado contra a diversão

E enfim, toda atitude que ameaça a diversão geral da mesa e de cada um dos jogadores pode ser vista como jogar errado. Nisso entra a etiqueta de chegar na hora, respeitar seu turno e o do colega, não interromper, ajudar todos a andarem com seus enredos, fazer as leituras que lhe são devidas para se integrar no cenário e nas regras, e tantas outras atitudes listadas em diversos posts pela rede da comunidade de RPG.

Além disso, pode acontecer que seguir a lógica do cenário e da narrativa cria situações que prejudiquem a diversão. Talvez o cenário seja pesado demais para o conjunto dos personagens, colocando eles em situações muito ameaçadoras, ou criando reações que só os colocam em mais prejuízo. Talvez dois personagens tenham caminhado para um ponto de ódio mútuo que evita que trabalhem juntos e os jogadores não conseguem pensar em como resolver isso dentro narrativa.

Evitando o jogo quebrado

A questão do personagem ou do jogo que quebram pela lógica da ação e reação é que as situações desagradáveis dificilmente acontecem de repente. Os sinais podem ser percebidos antes e contornados para evitar o ponto sem retorno das escolhas difíceis e impossíveis, aquele momento em que a conflito e a dor são inevitáveis.

Se o conceito do personagem desafia a periculosidade do jogo, o jogador deve e pode ter a liberdade de alterá-lo a qualquer momento. Um pouco de deus ex machina em nome de manter a jogabilidade da aventura não é tão ruim. Porém, é importante que a mudança feita seja em nome de alterar a situação do personagem, não da narrativa como um todo, assim há menos comprometimento da experiência geral. Pense em como resolver sempre acrescentando detalhes interessantes à narrativa e punições alternativas à destruição, de maneira a não quebrar a lógica ou a justiça. Um vampiro que se colocou em risco pode ser salvo por outro mais poderoso, tendo de pagar a dívida depois. O guerreiro que não teve pontos de vigor para resolver o desafio pode ser salvo por um deus do fogo em troca de se tornar seu avatar.

Se o personagem vai na contra-mão do grupo, é preciso que a jornada de redenção aconteça cedo, antes que ele faça algo que o empurre além do ponto sem volta em que se torna vilanesco demais para se redimir. Sinalização é importante — sempre afirmar ao narrador que o personagem realmente vai fazer a atitude negativa e que sim, ele espera a oportunidade de se redimir. Agora, se o personagem é de um jogador problemático que faz isso pelo prazer do HUE, então é melhor repensar mesmo as companhias de jogo se ele também está estragando a diversão geral.

Jogar errado contra a diversão é um problema maior porque costuma acontecer fora do universo narrativo. Uma constante troca de informações sobre o estado emocional dos jogadores e como melhorá-lo é o caminho para resolver. O importante é ter empatia e paciência para uma comunicação clara sobre expectativas e possibilidades. Mínimos desconfortos podem evoluir para situações desagradabilissimas por não terem sido diagnosticados e conciliados logo no início. Nesse caso, é sempre bom repensar a trama, a rotina de jogo e a campanha para corrigir esses fatos que, apesar de lógicos, não ajudam a experiência.

Trate os personagens como carros roubados

Mas digamos que é tarde demais e a situação já desandou. Observamos o abismo da destruição iminente. Os demônios rastejam para fora dele e desejam sangue.

Correção nem sempre é necessário. Às vezes, percebendo o erro de planejamento e evolução, pode surgir o desejo de apenas seguir em frente até que tudo esteja em chamas. Não há nada de errado com isso, se é a vontade e a curiosidade de todos os envolvidos. Somos demasiado condicionados para procurar a vitória sem pensar nas possibilidades narrativas da derrota, sem perceber que pode haver muita diversão de jogar um personagem até seu momento de quebra definitiva. A fuga que não vai dar certo, o julgamento e a execução, a cena pesada de punição podem ser catárticas de jeito inesperados. Só é preciso coragem e vestir a camisa do seu conceito quebrado. Assumir os erros. Levá-los às últimas consequências.

Personagens de RPG são como carros roubados — você está usando eles para um fim, mas depois devem ser abandonados em algum lugar. Pode haver muita diversão se você quiser enchê-lo de batidas, correr até queimar os pneus e colocar a carcaça em chamas depois…

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