POR QUE BISÕES? (II) Teto da caverna de Altamira, na Espanha, imagem estilizada a partir da que foi produzida à época de seu descobrimento. Detalhes no abre desta série, cuja finalidade é discutir, com base na ideia de edição, a prática de processos entre pessoas — nas atividades comuns, corporações, na política etc.— ao questionar: afinal, por que bisões?

Nós e a rede: a ideia de gatekeeping (II)

c.
matriz marketing
Published in
19 min readFeb 14, 2016

--

Leia a introdução a essa quase série, com bibliografia e outras infos, por aqui; o que segue são reflexos do meu livro Matriz de Marketing, Comunicação e Negócios, citado no fim desse texto, considerações provocadas a partir de uma conversa a respeito de 25 mitos sobre as redes sociais; na prática, o livro e esses textos buscam caminhos para entender nossa vidinha on-line e a interatividade das pessoas nas corporações, negócios, partidos e tudo o mais.

Seguindo na questão ampla tratada nos 25 mitos ou crenças sobre as redes sociais, meu incômodo fundamental acontece a partir do momento em que a discussão tenta se restringir às redes em si mesmas, sem considerar os humanos que as integram. Visto de outro lado: por mais que o debate pareça o tempo todo estar concentrado nas pessoas e suas ações, fica a sensação—melhor dizer, a certeza — de que não: a conversa trata da rede por ela mesma. Assim, a pauta para onde tudo converge é a “topologia” dessa rede, algo que podemos entender como a qualidade e as características das tais interações — ou “fluxos”, como seus teóricos gostam de nomear. A decisão individual está fora da mesa: até existe, mas é irrelevante nos resultados. Pode isso, produção?

Este texto coloca na mesa da conversa de uma forma um pouco mais detalhada o conceito de gatekeeping, a partir do qual tento esclarecer como chego — ao discutir sobre redes sociais e como podemos interagir de forma mais produtiva por meio delas — na sensação de estar me deparando com um papo que desanda fácil para algo muito cabeça, mas que não acrescenta muito no dia a dia das pessoas, na medida em que elas se deparam com a única alternativa de acreditar que a rede e as interações têm uma capacidade algo esotérica de libertação e convergência de ações ou ideias. Como não é isso que se vê na prática, sempre fica aquela sensação de que “somos inútil”: as pessoas comuns é que não conseguem alcançar o nirvana, algo evidente para quem já chegou lá.

Em tempo: gatekeeping não tem tradução exata no Português, mas abrange o que se entende por edição ou processo editorial, no sentido de identificar e selecionar informações; na falta de uma tradução melhor, essa série mantém a palavra em inglês. Cunhado em 1947 pelo psicólogo alemão radicado nos EUA Kurt Lewin, a partir de um estudo sobre psicologia social, o termo foi popularizado nos estudos de comunicação em 1950 por David M. White, ao analisar o trabalho jornalístico de um editor, apelidado de Mr. Gates, o Sr. Portão, numa tradução livre. O conceito influenciou outras áreas de conhecimento, além de subsidiar teorias sobre jornalismo, embora tenha perdido força ao longo dos anos (mais sobre isso abaixo). Se quiser cortar caminho, pule o contexto abaixo e siga direto para o próximo subtítulo.

como chegamos aqui? a realidade de um negócio em transe

Ver o processo editorial como o melhor fio condutor para o gerenciamento da informação é o fundamento do meu estudo sobre internet, consolidado no tal livro abaixo. Minha preocupação, digamos, mercadológica com a internet começou em meados da década de 1990 e vinha do fato de eu ter como foco a sobrevivência de um jornal regional de porte razoável. Até hoje, o jornalismo não conseguiu encontrar caminhos sólidos nas veredas da rede mundial, em função do seu impacto nos negócios; não é difícil imaginar o que isso significava para uma empresa de comunicação em 1994, nanica se comparada com veículos como O Globo, Estado de S. Paulo, Folha, Abril ou Zero Hora; irrelevante frente a um jornal como o The New York Times e outros títulos. Diante da internet, empresas jornalísticas, a imprensa tal qual a conhecemos, dançam até hoje suas valsas de terror, desconstrução, morte e ressurreição — com a agravante de que o último capítulo ainda está sendo escrito por roteiristas na escuridão ou no máximo à luz de velas. Ninguém do setor tem muita clareza de nada. É um capítulo sem fim, aliás: a imprensa irá se reinventar de alguma forma; o caminho, porém, não é simples e muitos ficarão para trás, como mostra o desaparecimento de jornais e a queda acentuada da circulação impressa dos títulos ainda existentes.

A imprensa passou por uma maratona de métodos tecnológicos a partir do final da década de 1950: saiu do processo conhecido como “chumbão”, em que as letrinhas eram montadas como no exemplo acima para formar as páginas, um trabalho amplamente facilitado pelo advento do linotipo, uma máquina que literalmente escrevia em chumbo; ela saiu desses anos de chumbo para um procedimento conhecido como past-up, quando os textos eram produzidos em tiras de papel semelhante ao couché e montados em pranchas; depois jogou novamente tudo fora para adotar a total informatização das redações e dos processos de impressão. Quando tudo ia bem, veio a internet — e a agonia da atualização tecnológica começou novamente, por um flanco totalmente novo e desconhecido, invadindo todos os processos e impactando até mesmo seu produto final, que ganhou as telas de celulares, notebooks e tablets. Foto de Relly Annet-Baker; + info: Idsng.

Em 1994, a internet chegou no Brasil como um tsunami; a mesma onda já havia batido forte na imprensa americana, uns dois ou três anos antes. Entendê-la do ponto de vista marketing era uma questão não apenas de sobrevivência empresarial como também de antever a incômoda sensação de já ter visto um filme sem graça: o terror da evolução tecnológica e o risco de se investir em tecnologias erradas. A imprensa é uma indústria de uns 400 anos de existência—o jornal mais antigo ainda em circulação foi fundado em 1656—que enfrentou a partir do fim da década de 1950 duas revoluções de processos, do chumbo para o past-up e do past-up para uma redação 100% informatizada (antes disso, o grande salto tecnológico na produção de jornais havia acontecido com a genial invenção do linotipo, por Ottmar Mergenthaler, em 1884). A internet seria a terceira onda tecnológica, num espaço de uns 30 anos, e o risco era ver novamente um filme dirigido por consultores de matizes variados, com suas soluções espetaculosas e nem sempre certeiras. Rios de dinheiro foram embora na brincadeira do avanço tecnológico de processos na indústria jornalística em apenas três ou quatro décadas. Com a internet não seria diferente: o risco de besteirol e investimentos errados era enorme. E foi.

Isso é outra história, mas na época era uma boa justificativa para tentar ser um pouco mais científico e ir ao encontro de livros e estudos de negócios, para ficar no básico amplo e fugir da tecnologia específica. O necessário estudo de marketing diante de um problema inusitado foi o caldo que, alguns anos depois e de várias lutas perdidas, resultou no meu próprio livro sobre a internet, consolidado numa edição pessoal com impressão sob demanda.

somos todos editores: a ideia de gatekeeping

Feito esse contexto, no tal livro Matriz de Marketing, escrito a partir de 2000, com revisões e adendos constantes feitos até 2008, identifiquei meio por acaso—embora para fins da comunicação corporativa—o que considero crucial na análise proposta nos 25 mitos e no entendimento das redes sociais e seus nodos: a importância do processo editorial como método que explica o ato natural das pessoas de selecionar as informações.

Esse exercício é nomeado gatekeeping, segundo o olhar teórico que estou adotando, e ele implica basicamente em uma escolha entre uma informação ou outra, não raro a partir de uma inata priorização, o que não deixa de ser um jeito de hierarquizar a realidade, mesmo que isso seja feito de forma quase automática e um tanto inconsciente. No livro abaixo, a despeito do meu foco nos primórdios da internet no Brasil ser o ambiente de negócios sobre o qual se pode construir uma indústria jornalística, acredito ter tropeçado num conceito mais amplo, quase um subproduto oriundo da síntese de uma visão matricial criada para servir de pequena ferramenta de análise de marketing e negócios, e dos processos de comunicação que possam atendê-los.

O tal subproduto é a sugestão de que os métodos usados em uma redação podem ser adotados em outros ambientes, necessidades ou projetos. Na verdade, isso já ocorre de forma incipiente e algo destrambelhada, até porque nem sempre gestores e acadêmicos de matizes variadas percebem o detalhe. O conceito estava incorporado empiricamente no texto original do estudo, tanto que em 2007 os bisões de Altamira já ilustravam uma palestra minha sobre arquitetura da informação. Adotei os bichinhos desde então. Porém, essa função editorial só ficou mais clara como fundamento teórico em 2009, quando fui investigar as origens desse que era um dos pilares criativos do estudo para aplicá-lo na minha tese de mestrado em relações públicas. Ao fazer essa busca acadêmica, encontrei a proposta de gatekeeping, fundamento que julgo estar faltando na conversa sobre as redes sociais e mesmo na sofisticada Nova Ciência das Redes, ao menos com base nas provocações publicadas a partir dessa área de conhecimento e na bibliografia sugerida.

Voltando ao ponto, a tese fundamental é: somos editores por natureza, uma característica intrínseca à condição humana. A ideia de gatekeeping é uma das várias formas de se teorizar como isso acontece em qualquer atividade, sendo que a existência de veículos de comunicação — jornais, revistas, rádio, tevê, qualquer coisa assim — faz dessa atividade uma produção em série, tal qual a linha de montagem de uma fábrica de automóveis. No caso das redações, existem outras teorizações a respeito dos métodos usados nesses ambientes, mas a proposta do gatekeeping me agrada em função de sua simplicidade e também por não necessariamente excluir outras visões sobre o mesmo tema.

gatekeeping: definição, modos de usar e quem adota a ideia

Gatekeeping, num resumo rápido, postula que o tempo todo nós — você, eu, qualquer humano, sendo essa talvez uma razoável diferença frente ao instinto básico dos animais—nós selecionamos as informações, passando adiante algumas, retendo outras, e refutando outras ainda. Ou seja, nossa ação enquanto nó ou nodos em uma rede é essencialmente editorial e até certo ponto soberana: olhamos algo e escolhemos entre sim, talvez ou não. O talvez pode representar não apenas a dúvida sincera, como também a decisão de reter uma informação para uso posterior e aqui é possível incluir nesse uso todas as maldades e bondades inerentes aos humanos.

Somos então os senhores do nosso portão, os leões de chácara da nossa história pessoal e da nossa interação social. Ditamos os “fluxos” da nossa própria existência, com acertos e erros, maior ou menor sensibilidade ou atenção ou apenas mera intuição para a importância sutil de algum detalhe, . A rede pela qual fazemos isso, pensando bem, não importa: creio que tanto faz. Quanto aos animais, esse processo talvez esteja lá, de forma latente, e em alguns casos de forma bem sofisticada, como nos golfinhos ou corvos.

Aplicado ao jornalismo e comunicação social, gatekeeping é uma teorização do processo de seleção de notícias, portanto, das informações, muito discutida pela dupla de pesquisadores atuante nos EUA Pamela Shoemaker e Tim Voz, bem como outros pesquisadores, que citam ou aplicam o conceito em livros e artigos acadêmicos diversos e para os mais variados fins—consulte um pouco dessa literatura no final do primeiro artigo dessa série. Até onde percebi, Shoemaker contribuiu enfaticamente pelo resgate do conceito para os estudos de jornalismo, com seu livro Gatekeeping, Communication Concepts 3, de 1991, também na bibliografia, assim como um atalho para minha tese intitulada Gatekeeping Applied to Public Relations: How a Newsroom Behavior Improves Knowledge Management, desenvolvida na Universidade da Flórida, EUA, entre 2009 e 2011. A despeito desse resgate, o conceito não é muito popular nos estudos acadêmicos contemporâneos, talvez porque coloca as pessoas no centro decisório — num ambiente universitário dominado pelo pensamento de esquerda, dar ênfase à individualidade é certamente um caminho fatalmente combatido, mas não é o caso de aprofundar isso aqui.

quem dá as cartas na internet: as pessoas, a rede ou ambas?

Pois bem: esse trabalho de selecionar a informação disponível, algo ininterrupto, intrínseco e universal entre os humanos, existe igualmente frente ao tal fluxo tratado pela Ciência das Redes, com uma diferença fundamental: na minha visão, quem dita o fluxo somos nós, os gatekeepers, não a topografia da rede ou ao menos, podemos confabular aqui, esse enfoque analítico não responde por tudo de forma tão autônoma ou determinista, como levam a crer seus divulgadores ou defensores.

Visto assim, não se pode descartar a possibilidade de a topografia de uma rede social de qualquer natureza ser, ela sim, resultado da edição pessoal de seus integrantes, pela soma cruzada de suas decisões. Visto pelo lado oposto, também não desconsidero que a topografia estabelecida ou construída para um determinado ambiente interativo irá sem dúvida influenciar o curso das decisões pessoais, portanto, há uma dialética, para usar uma palavrinha chique, entre essas duas forças, pois elas se influenciam mutuamente.

Seja qual for o ambiente em que o gatekeeping se encontrar, uma topografia mais ou menos livre ou centralizada, não haverá necessariamente santidade na sua mecânica: a edição pessoal poderá ser exercida também para reter informações que seriam mais nobres se fossem compartilhadas ou simplesmente para propagar a desinformação. Ou seja, nem sempre é verdadeira a existência de uma interação tipo paz e amor muitas vezes sustentada nas conversas sobre as redes sociais e talvez até mesmo nas teorias. Mesmo na remota hipótese de um ambiente totalmente livre, as pessoas poderão ainda assim reter informações que julgarem importantes para seus planos malignos ou benignos e farão isso sem pedir licença ou bênção à suposta liberdade dada pela topografia ou configuração planejada. Coisa feia ou coisa bonita, tanto faz: a topografia não tem como anular, impedir, prever, ou fomentar isso; pode, sem dúvida, se adaptar e fará isso melhor se entender as decisões pessoais na sua amplitude.

Outro detalhe decorrente do exposto acima: minha aposta é que os nodos influenciam a rede antes de a rede influenciar os nodos; o que vem primeiro na construção de uma interação é o nodo, a individualidade e as decisões de cada um, não a rede — mesmo que esta última exista antes na cronologia dos eventos, até porque o ato de criar uma rede também é em algum momento uma decisão pessoal. Por que afirmar isso? Ora, se alguém montar uma rede social, seja qual for a topografia planejada ou adotada, ela só terá serventia e “vida” a partir da interação das pessoas; se a rede ficar quietinha ali, sem a intervenção de ninguém, nada acontecerá. Essa é uma conclusão tolinha e dispensável, não fosse uma obviedade necessária frente a essa exaltação dos padrões sobre todas as coisas, pessoas inclusive.

Por fim, interação não é garantia de dias melhores: muita conversa com muita gente ao mesmo tempo pode significar também muita briga, dispersão e poucos resultados, se o plano era ter algum plano de concluir algo sobre algo. E vale também o oposto, visto que podemos ser bem felizes e produtivos como ogros solitários e cultivar uma rede tendente a zero.

o inconciliável, o tango e a rua

O fato é que minha defesa do conceito de gatekeeping gerou uma vertente insanável no propósito da primeira edição do curso em questão, que ocupou algumas semanas a partir do finzinho de outubro de 2015: embora o projeto estivesse (e está, visto que há uma segunda edição) fundamentado na interação on-line entre seus integrantes, o aparato teórico pressupõe, como adiantado no tópico acima e também no primeiro texto, que o conteúdo individual pouco importa diante do padrão de interação. Contestar essa visão gerou uma bifurcação inconciliável que levou a um azedamento da conversa, assunto que deve ser detalhado em outro artigo, na medida em que indica as limitações dos ambientes remotos on-line. O mais engraçado é perceber que os dois pontos de vista—a topografia da rede versus o gatekeeping das pessoas como condicionante principal de um resultado — muitas vezes veem o mesmo problema e chegam em conclusões muito próximas, porém sob ângulos ou caminhos opostos. Bem, ao menos é a minha percepção disso… :)

Em relação aos ambientes remotos, suas limitações indicam adicionalmente que a dança entre os pares ou grupos de uma conversa on-line e “interativa” funciona muito bem na concordância, mas tende a desandar na discordância. É preciso dois para se dançar um tango. Panos para outras mangas.

Mais ainda: o meio continua a influenciar a mensagem — ou, como dizia Marshall McLuhan, o meio muitas vezes é a própria mensagem. Por esse viés, uma simples piada, que ao vivo resultaria apenas num ambiente mais amigável, no ambiente on-line corre o risco de ser interpretada na sua literalidade, provocando uma cadeia de mal-entendidos que se arrastam por horas, dias e podem minar qualquer possibilidade de bons resultados. Claro que o azedamento não aconteceu em função de uma piada, mas da defesa de uma ideia e da sua aplicação radical no experimento: se a intervenção pessoal não tem condições de ditar o fluxo de uma interação, visto que esta é totalmente guiada pela própria topografia da rede, o que acontece com o fluxo de uma conversa on-line se o conteúdo que estava lá sumir?

Ao fazer esse experimento, o bolo desandou, o chantilly virou manteiga, o bonde saiu dos trilhos. Escolha, leitor, a imagem que preferir: se não fica evidente num laboratório acadêmico livre que — a partir de uma piada, de um contra-argumento tão provocativo quanto a assertiva inicial ou da radicalização desse experimento on-line — o conteúdo que cada um carrega para a conversa é capaz de modular os resultados dessas interações, a despeito de qualquer poder da “topografia” ou do “fluxo”, então não sei o que mais é necessário ponderar para que isso seja considerado. Passo.

Passo como discussão de viés acadêmico feita por um grupo aleatório de pesquisadores reunidos a distância, mas deixo aqui na rua, no ambiente aberto da web, o rescaldo da parte que me toca, até porque o encontro foi muito produtivo, gerando vários insights e textos que não teriam ganhado alguma existência se inexistissem as provocações. Visto que há um investimento de tempo e esforço mesmo para quem se diverte com o simples escrever, o que já está dito e contradito talvez mereça deixar o confinamento de um local restrito e circular um pouco mais, com uma nova roupinha. Além disso, não deixa de ser uma retomada complementar do livro já citado, cuja produção foi também resultado de artigos publicados por alguns anos. A ver.

gatekeeping existe, tem gravidade, mas ninguém vê?

A tese que resta ou nasceu do embate é indagar se os quereres pessoais, o gatekeeping de cada um, é uma força que existe, tem gravidade, mas não se vê — ou não se quer ver. Sinceramente, foi quase uma surpresa ver tanta aversão a essa conceituação razoavelmente simples. Acrescente-se a isso o fato de que minha imersão acadêmica é meio temporã: talvez por ingenuidade, inexperiência ou mera ilusão entrei na conversa julgando que essas teorias sobre as escolhas individuais fossem ideias academicamente notórias, mais ou menos como a evolução natural proposta por Darwin ou outras teses de peso semelhante na história da civilização ocidental, ao menos. Pelo visto, não.

No caso da decisão pessoal, nem é o dilema de saber quem nasce antes, se o ovo ou a galinha — como já dito, defendo que o gatekeeping é soberano mesmo quando guiado pela percepção de realidades virtuais, ilusórias ou verdadeiras, valendo incluir aqui o contexto ditado pela internet, o espaço preferencial das redes sociais praticadas no presente contínuo ou no modo assíncrono, quando nem todos estão no ambiente ao mesmo tempo. Ao contrário da realidade tangível de uma pedra ou um pau no fim do caminho, a realidade das informações, tal qual as cores vistas por cada um, é sempre uma construção mental única e impossível de ser captada por terceiros.

O azul que Maria vê é dela e somente dela; o verde que Pedro enxerga é dele e de mais ninguém. Esse é o caldo da agonia decisória e do discernimento de cada um, algo tão único quanto a história individual e o setup pessoal ditado pelo hardware que herdamos de nossos pais, para o bem ou para o mal. Séculos de experiência civilizatória levaram a consensos construídos socialmente sobre a maioria dos conceitos intangíveis, tanto quanto existe um consenso entre o que é verde e o que é azul. Mas pequenas diferenças de nuance podem levar a grandes reverberações de entendimento, tal como uma borboleta na Austrália pode ser responsável por um tornado na Flórida. Muitas ideias atravessaram milênios e ainda hoje formam consensos sociais frágeis como um castelo de cartas: democracia, poder, república, liberdade, tolerância, acrescente suas próprias sugestões, a lista é imensa.

Sob essa ótica da decisão única e turvada sobre todas as coisas, o fluxo de uma rede social é apenas a soma exponencial de quereres tortos, conduzidos, aí sim, pela maior ou menor capacidade que a topografia tem de ampliar ou inibir essas escolhas. Aqui, a internet mostra-se como a grande novidade civilizatória contemporânea, tal qual a invenção dos tipos móveis por Gutenberg: ela tem o poder de amplificar e ligar pontos distantes, pessoas reais e pensamentos idem, aqueles que dão concretude à ação humana.

Pois bem: destituir a decisão individual da necessária importância não invalida os estudos subsequentes que são foco acadêmico da Ciência das Redes, na forma ao menos citada nas discussões ou do que se depreende da bibliografia sugerida pelos organizados do curso sobre os 25 mitos — não deu para estudar tudo, mas a amostra ditada pela condução das conversas dá uma boa noção. Pesquisar a topologia das redes pode levar a conclusões interessantíssimas, ao se identificar características tais que levem a uma situação ou outra: mais liberdade ou menos, entendendo-se liberdade como o oposto à hierarquia vista no sentido, digamos, clássico, de manipulação e instrumentalização do poder, mando ou autoridade; por exemplo, uma decorrência muito importante desse enfoque é o centralismo que caracteriza muitas experiências de ação comum entre humanos, em redes on-line ou não.

Como estão orientados a encontrar e discutir um “padrão” e uma “topografia”, os organizadores dos 25 mitos, porém e por exemplo, conduzem a conversa para quatro características estruturais que eles consideram da maior relevância quando se trata de chegar a aplicações práticas sob um novo modelo de interação entre as pessoas—mais detalhes sobre esses quatro itens no texto de abertura. Pode ser da maior importância, mas essa condução, no entanto, é questionável sob a perspectiva do gatekeeping. Esse é o ponto: a aleatoriedade das pessoas versus a previsibilidade matemática das redes. Pode até haver uma convergência, a tal dialética, mas um lado não tem poder de prevalecer totalmente sobre o outro. Mera opinião pessoal e turvada, ok?

Nada contra mapear padrões ou topografias, o que pode feito a depender do que se encontra ou do que se provoca — embora, assim como furações ou ciclones, essas serão análises sobre fatores ou fatos que podem ocorrer ou não. Já gatekeeping, ou que nome se queira dar para à avaliação das pessoas sobre tudo, essa é uma expressão que sempre ocorre, caso contrário não haveria bisões pintados em Altamira: aquelas paredes capturam também um ato de escolha em estado primitivo, não?

Também a ação deliberada de montar uma rede de discussão e dar a ela uma topografia—totalmente livre, mais ou menos ou cheia de entraves — é uma decisão pessoal em algum momento, mesmo que seja o consenso possível entre um pequeno grupo de organizadores. Com a ressalva de que o totalmente livre da tríade anterior é apenas uma opção teórica inatingível: a própria existência de pessoas num ambiente supostamente livre já condiciona o ambiente à noção de liberdade praticada por estas mesmas pessoas — de novo, o gatekeeping age a priori e sem pedir licença. Isso guarda algum paralelo com o tal Zenão Quântico, a ideia de que a simples observação já altera e condiciona aquilo que está sendo observado (autoironia ligada: recorrer à física e, em especial, à teoria do caos e à mecânica quântica para tratar de um tema em Humanas é sempre um jeito de passar a impressão ao leitor que se está diante de algo muito profundo; recurso irresistível, abuso da prática aqui, mas a causa é boa! Ou não :)

No estudo das redes sociais e seus padrões, há uma diferença nada sutil entre reconhecer esse lado editorial e organizar as análises e teorias de forma a, ao menos, não anular sua existência no horizonte de eventos. Isso interessa principalmente ao aplicar esses conhecimentos nas práticas que importam: no arranjo entre pessoas, nos negócios, nos projetos, na vida, enfim. A frase não é uma condição, é apenas um pequeno alerta, principalmente para quem sonha em dar uma vida prática a esses aprendizados. A análise das redes sociais pode, sim, ser um exercício acadêmico necessário e importante mesmo que não se queira dar ênfase à função ou ação editorial, classificatória, hierarquizante (mas despido do sentido de poder), dos gatekeepers, ou seja, nós mesmos. Porém, uma coisa é não dar ênfase ou relevância, outra é negar sua existência e implicações: por exemplo, defender a topografia da rede como valor supremo é anular nas conversas a singularidade de cada um.

O que segue é outra opinião: defender postulados assim é como anular a gravidade na construção de pontes ou aviões. Não deixa de ser uma visão totalitária sobre os comportamentos, ao tirar da pessoa seu instante decisório, seu insight sobre as coisas, sua criatividade, seu próprio agir sobre o mundo. E atenção aqui, essa é a principal assertiva desse longo artigo, embora seja igualmente mais uma opinião: colocar em prática propostas de interação entre as pessoas sem considerar a força oculta do gatekeeping simplesmente não dá certo. É o que todo mundo faz, sim, mas para que serve a teoria senão para entender e tentar melhorar as coisas, a partir de alguma análise?

O telescópio Hubble olha o espaço atrás da matéria escura, como é o caso dessa imagem do cluster Abell 1689. Dentro de cada galáxia, milhões de estrelinhas, que podem muito bem representar as pessoas e suas relações com os demais sóis ao redor e como isso gera galáxias e agrupamentos de galáxias ou hubs. No meio de tudo, a tal matéria escura ocupa seu espaço e faz o serviço de aglutinar tudo ou o contrário. No fundo, não é nada pessoal :)

Nas teorias citadas na conversa sobre mitos das redes sociais, a decisão individual parece ter um efeito similar à tal matéria escura que os físicos consideram atualmente como a única forma de dar coerência ao universo: algo que existe, tem força gravitacional, mas ninguém a vê. No caso dos pesquisadores envolvidos com o projeto dos 25 mitos, é mais do que isso: parece que ninguém quer vê-la, talvez porque essa força invisível manifestada pelo gatekeeping, a julgar pelas defesas expostas, atrapalhe um pouco o arcabouço teórico atual. É mais ou menos como a tal constante universal, algo que nosso querido Albert Einstein parece ter relutado em aceitar. Esse tema pode pautar um outro texto: se um teórico de redes sociais define que o conteúdo individual não importa, essa decisão, por si mesma, é também uma opção editorial, pessoal e intransferível. E agora, HAL 9000?

caramba, mas por que bisões?!

Por fim mas não por último: gatekeeping é uma ideia impregnada nas paredes de Altamira, para ficar apenas nesse exemplo milenar, tal qual a tinta que dá feitio àqueles bisões. Os artistas de então poderiam ter pintado a lua, o fogo ou relâmpagos, porém, decidiram pintar bisões. Por quê? A resposta parece bastante evidente e traduz, no rol de prioridades daquelas comunidades, a informação mais relevante ditada por estômagos que roncam famintos. A manchete dos humanos de então eram bisões, provavelmente a única fonte de alimento que pudesse resolver no atacado e rapidamente a fome de uma aldeia inteira. Para propagar essa informação, eles usaram como suporte as paredes de uma caverna e a tecnologia disponível. Fosse hoje, poderia ser um iPad, a tela de um computador ou a primeira página de um jornal impresso.

Éramos editores; somos editores. Faz sentido?

— c., 14/02/2016

cursos, workshops, palestras e atendimento de projetos

Capas do livro Matriz de Marketing, Comunicação e Negócios, estudo dividido em três partes e sua versão integral (capa branca). O livro é uma autopublicação, uma edição pessoal cujos exemplares são impressos sob demanda pelo serviço Lulu.com…na Europa! — com o dólar na estratosfera, quase impossível ter exemplares por aqui a um custo razoável. A solução: peça um workshop sobre o assunto, para seu empreendimento! Envie um email para cassianopolesi@matrizmkt.com. Mais infos sobre os livros na loja Lulu.com em bit.ly/livraria-matrizmarketing; siga em facebook.com/matrizmarketing

Matriz de Marketing, Comunicação e Negócios — Como propagar sua marca na internet com alma é um livro, mas pode ser um curso interno na sua empresa ou grupo de trabalho. O foco é o gerenciamento do conhecimento e da comunicação da sua marca. O trabalho consiste em workshops internos, para alinhar suas equipes, seguido de um atendimento para consolidar as demandas ou projetos; com as engrenagens lubrificadas e ajustadas, fica mais fácil construir sua comunicação e muito pode ser feito a partir daí.

Se interessar, entre em contato pelo email cassianopolesi@matrizmkt.com ou envie um recado via whatsapp para o celular (011) 9 6929–8888.

próximos passos. ou não

Essa série não tem hora para terminar, nem tenho compromisso de publicar tudo de uma vez. A conversa poderá render uns seis ou sete textos—ou dois ou dez: não tenho a menor ideia. Na medida do possível, em havendo novos textos, esses serão publicados ao longo deste 2016. A ver. Já as revisões serão constantes, enquanto houver algum sentido para o esforço; sempre haverá um caco ou outro ou uma ideia que não tenha ficado clara, algo, aliás, muito comum quando se discute as interações humanas, on-line ou não.

— Atualização em julho, 2018: segue o jogo!

++++ /// ++++

--

--

c.
matriz marketing

Cassiano Polesi, mkt:vendas: marketing, marcas, vendas, agora com foco em gestão patrimonial imobiliária // || \\ 011 9 6929–8888 cassianopolesi@matrizmkt.com