O teto da caverna de Altamira, em imagem produzida à época de seu descobrimento. Afinal, por que bisões?

Nós e a rede. Ou: por que bisões? (I)

c.
matriz marketing

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Série de textos sobre nossa nova vida on-line e o que tirar de prático disso: organizar ou reorganizar empresas, negócios, partidos e tudo mais.
O segundo texto é sobre gatekeeping; entre por aqui.

Capas do livro Matriz de Marketing, Comunicação e Negócios, estudo dividido em três partes e sua versão integral (capa branca). O livro é uma autopublicação, uma edição pessoal cujos exemplares são impressos sob demanda pelo serviço Lulu.com…na Europa! — com o dólar na estratosfera, quase impossível ter exemplares por aqui a um custo razoável. A solução: peça um workshop sobre o assunto, para seu empreendimento! Envie um email para cassianopolesi@matrizmkt.com. Mais infos sobre os livros na loja Lulu.com em bit.ly/livraria-matrizmarketing; siga em facebook.com/matrizmarketing

Entrei num curso sobre redes. A ideia era (é) debater 25 textos provocativos sobre as redes ditas sociais; o curso, que curso não é, teria um complemento dado pelas conversas, ou interações, entre seus integrantes—por isso, não era exatamente um curso, mas uma construção, ou um laboratório, no jeito que prefiro adotar. De certa forma o resultado foi, sim, uma construção, mas nem tanto, pois alguns fundamentos das teses principais não puderam ser contestados e o resultado foi um debate algo acalorado. Para não ficar confinado àquele ambiente on-line, o que vai aqui e outros textos desta série são notas, comentários e apontamentos feitos durante a primeira edição dessa experiência transmutada de conversa: são insights puxados pelos ganchos das redes, mas vão e voltam nas voltas que meu livro percorreu e minha tese de mestrado cavucou um pouco mais. Mais infos nas capinhas acima e no complemento que vai abaixo. Não há plano de publicação: essa introdução é de dezembro, 2015, o restante ficará para 2016; o segundo texto, por exemplo, ficou pronto só em meados de fevereiro. Sem pressa.

Entrei de gaiato na primeira edição de um curso on-line sobre redes, organizado pela turma do Redes.org.br, os autoproclamados Nexters; integrar a discussão sobre 25 mitos em torno das redes sociais foi um certo desafio. O curso iniciou-se em 28 de outubro, 2015, e avançou por quase duas semanas. A experiência foi brilhante de alguns lados e um tanto opaca de outro. O resultado foi (é) intrigante. O balanço geral foi pra lá de bom, pois me fez escrever um monte de coisas que já deviam ter sido escritas e que começo a desovar aqui. Isso explica em parte por que o resultado é intrigante: foi menos um “resultado”, com sabor de fim, e mais um aquecimento para novos caminhos.

E por que houve um lado opaco? Pelo simples fato de que a interação proposta pelas teorias defendidas na concepção do projeto não deu conta de abraçar uma argumentação que, por motivos vários, soava dissonante. O lado opaco deveu-se porque, num dado instante, a interação travou em função de uma oposição fundamental, que chamei de bifurcação insanável: do meu lado, a ideia de que o discernimento pessoal é a pedra fundamental para a construção de qualquer troca, que por óbvio inclui uma atuação em rede, seja qual for; do outro, a ideia de que uma rede adquire uma configuração própria ou autônoma, como na explicação de um dos mentores do projeto: “A rede não é a internet; a rede não é o social, não é uma tecnologia: é um padrão de organização”. Ok. Mas isso não explica tudo. Ou melhor, deixa de fora uma parte pra lá de importante: o discernimento que leva à decisão pessoal, soberana e intransferível, feita o tempo todo, sobre tudo.

Entre outras passagens, a explicação entre aspas acima liga-se ao que foi defendido em um dos 25 textos de provocação, iscas temáticas publicadas para alimentar o debate. O texto #11 é um exemplo do tom dos argumentos, e ajudam a compor o espírito do tempo reinante nesse segmento acadêmico aninhado sob o título de Nova Ciência das Redes; segundo o texto, com base em evidências apuradas em pesquisas, o que se tem é o seguinte:

“. . . [O]s fenômenos que ocorrem em uma rede não dependem das características intrínsecas de seus nodos*. (. . . ) Assim, não é o conteúdo do que flui pelas suas conexões que pode determinar o comportamento de uma rede. É o fluxo geral que perpassa esse tecido ou campo, cujas singularidades chamamos de nodos, que consubstancia o que chamamos de rede. Esse fluxo geral não tem nada a ver com mensagens contidas em sinais emitidos ou recebidos: são padrões, modos-de-interagir (sic). Se há uma mensagem (. . .), esses padrões é que são a mensagem. (. . .) O social passa ser o modo de ser humano nas redes com alta tramatura dos mundos interativos que estão emergindo. Em outras palavras, passamos a constituir um organismo humano “maior” do que nós.

* nodos, no contexto acima, são os nós da rede, ou seja, as pessoas — quem está integrado ou efetivamente interagindo numa rede, num dado instante.

Por esse entendimento, a configuração de uma rede, sua topografia ou seu fluxo propriamente dito, é que rege a interação das pessoas entre elas mesmas e não os conteúdos que essas pessoas carregam para essa interação — pela teorização da ciência das redes, esses conteúdos não têm valor ou influência no resultado do relacionamento, ou seja, no próprio resultado da rede e de como ela se manifesta. A partir daí, a teoria das redes identifica quatro padrões que “não têm a ver com conteúdo”: clustering, swarming, cloning e crunching, termos aplicados assim mesmo, em inglês, talvez por ainda não estarem devidamente agasalhados nas nossas conversas tupiniquins.

Não questiono as pesquisas e trabalhos que permitiram identificar esses padrões, o ponto é propor uma teorização que descarta a existência do processo decisório individual nas equações. Ainda não descobri exatamente o motivo para esse viés (que é por si só uma… decisão dos pesquisadores), pelo andar das conversas parece que o problema imbrica-se com a questão da hierarquia, uma característica nefasta que simplesmente não existiria no mundo encantado das redes ideais, aquelas que renderão um novo amanhã para a humanidade. Talvez os artigos aqui ajudem a esclarecer a questão. O papo vai longe, e será retomado nos demais textos complementares aqui.

hierarquia no tribunal: poder ou noção de prioridade?

Não bastasse a briga entre discernimento pessoal versus padrão de interação, outra polêmica que entrou na conversa foi a ideia de hierarquia vista como uma expressão de poder, enquanto prefiro ver na palavra uma descrição para o simples ato de classificar e priorizar—o embate entre atribuir um valor negativo, feio, sujo e malvado ao significado de hierarquia contra minha opção por aplicar uma visão neutra ao seu sentido foi mais uma confusão conceitual em que não houve acordo, ao ponto de se sugerir que era melhor não adotar a palavra para o propósito de se analisar as redes sociais e seus mitos. Não vale essa palavra? Como assim??

Como se verá nesta série, o entendimento “neutro” de hierarquia, despido da pecha de traduzir a existência de poder como força opressora, é o que define o trabalho editorial em qualquer redação, um fundamento descrito pelo antigo conceito de gatekeeping, uma teoria implícita no livro acima e explícita na tese citada abaixo. Aplicar hierarquia exclusivamente sob o manto do poder pode ser um imperativo da teoria de lá, mas é uma imposição algo acima da linha da cintura. O argumento calçado nas origens do termo coloca na mesa um contexto interessante, mesmo assim contestável, pois fica a dúvida se hierarquia deu origem à ideia de ordenamento imposto ou se foi o contrário: a inerente mente classificatória e analítica dos humanos é que cunhou um termo que lhe traduzisse, e cuja aplicação migrou para a ideia de poder, ordem, coisas talvez próximas ao processo mental de atribuir valor prioritário de uma coisa sobre outra, e isso vale para informações também.

Ora, poder é também o poder de criar, ter uma ideia, encontrar uma razão ou solução para as dúvidas e isso inclui estabelecer prioridades e relevâncias. Se as pessoas tendem a ser tiranas, bem, isso *também* é um dado da realidade civilizatória; negar esse problema não necessariamente irá contribuir para fazer uma rede melhor, muito menos para construir uma.

Neil pousou essa tranqueira no muque: a decisão deu certo, mas poderia der dado tudo errado; aliviado, o seu colega Buzz Aldrin, acima, finge que está tudo bem, embora estivesse àquela altura bem mordido pelo fato de ter sido apenas o segundo a pisar na Lua…

O tema gera uma vertente ampla porque existe um poder legítimo ao se tomar uma decisão soberana sobre qualquer coisa e isso não significa necessariamente um poder ruim de ser exercido, até porque incontáveis ações ao longo da história humana foram fruto do simples poder de querer algo assim ao invés de assado. Pra ilustrar, basta lembrar que o pouso da Apollo 11 na Lua foi precedido pela decisão de Neil Armstrong de assumir totalmente o comando da nave e procurar um local melhor para descer do que aquele sugerido pelo sagaz computador de bordo — que operou muito bem, pelo visto; no entanto, computador não sua e não tem filhos. A decisão soberana do piloto, de buscar um local mais plano e livre de pedras, chegou a ser um risco considerável em função do tempo de combustível. Deu certo. Poderia ter dado tudo errado, mas os caras mandaram bem, e tiveram a boa sorte ao lado.

Essa série retomará esses assuntos e uso este Medium porque ele permite uma interação maior, via uma interface talvez mais adequada que o Disqus, como foi no caso do curso em questão. Trazer pra cá é também uma forma de descolar o assunto daquela conversa específica, evitando que fique para sempre confinada àquele ambiente interno, mediante login e senha. Algo como abrir a porta e ir conversar na calçada. Ou criar um novo fluxo. A ver.

sem acordo? então vamos tomar uma gelada!

Os organizadores do módulo de estudo (seis ao todo) são pesquisadores totalmente alinhados a esse outro lado, o lado que delega à topografia da rede toda a força dela mesma. O assunto é vasto e entra em várias vertentes sobre o entendimento de sistemas complexos, o que envolve “desde a cibernética, a teoria do caos, teoria dos sistemas complexos e dos sistemas auto-organizados, e todas as suas interfaces com a epistemologia”, nas palavras de um dos mais atuantes criadores do programa. Não questiono a importância e profundidade desse debate, para quem tem gana por isso.

Meu assunto, porém, é muito mais prosaico e rente ao chão: tendo a considerar que as questões tratadas aqui, e também no livro e na tese, simplesmente ajudam qualquer um a se organizar melhor, principalmente um grupo de pessoas, uma empresa ou uma entidade qualquer. Ou por outra, não dá pra negar que a humanidade decide — portanto, não dá pra construir uma teoria que desconsidere essa realidade inerente. “Ah… mas você não entendeu…” Então tá. Bem, se toda essa conversação e pesquisas sobre as redes servem para polir textos algo esotéricos, então não é questão de não entender, mas de não ver sentido num papo pra lá de Marrakesh.

Voltando à topografia das redes, conhecendo outros estudiosos, e passeando um pouco sobre esse campo do conhecimento, fica bastante evidente de que essa é uma ideia forte nos tempos atuais, a noção, enfim, de que o próprio padrão se sobrepõe às pessoas. Eles concluem, por exemplo, que, sob determinadas condições, a interação propiciada por uma rede transcende quem dela participa, como visto na citação anterior. Essa é uma aposta interessante, que vislumbro também, porém por motivos diferentes ou, ao menos, sem descartar uma questão fundamental: o tal discernimento pessoal, a cognição que é própria das gentes, portanto, da humanidade e suas civilizações. Para o bem e para o mal: hierarquia na veia.

we are all gatekeepers. ou: somos todos editores

Bisões como esse acima, nas cavernas de Altamira, na Espanha, e outros desenhos dos tempos em que só existiam redes sociais feitas pelas pessoas que habitavam esses locais, talvez ao redor do fogo, interagindo sobre como seria o dia seguinte: a manchete daqueles tempos usa uma parede como tela, mas poderia ser uma tevê, uma folha de jornal ou um iPad. Se a tecnologia mudou muito em 15, 30, 40 mil anos, nada indica que os caminhos mentais tenham mudado. Ou por outra: a humanidade saiu das cavernas, mas a caverna não saiu da humanidade. Há pouco a fazer sobre isso — mas muito a escrever!

A conversa com os organizadores tomou um rumo insanável porque, basicamente, adoto um princípio: somos todos editores. E fundamento essa assertiva com a imagem dos bisões desenhados nas cavernas de Altamira e outras tantas. Por que bisões? Um pouco dessa argumentação está subliminar no meu livro identificado no topo desse texto. Um pouco de teorização sobre o assunto está nas preliminares da minha tese de mestrado pela Universidade da Flórida Gatekeeping Applied to Public Relations: How a Newsroom Behavior Improves Knowledge Management, disponível no academia.edu ou na própria UF, para quem se interessar, e cuja principal inspiração é o livro Gatekeeping Theory (detalhes a seguir). Uma prévia de alguns dos próximos textos está na legenda do bisão, na imagem acima. Como aperitivo do tema, e ligando com a questão do poder tratada antes, o processo de decidir qual é a manchete do dia seguinte também é uma forma de extrair sentido do entorno — bisões, portanto, é uma “manchete” evidente frente ao que é prioritário para um grupo de humanos paleolíticos: comer e sobreviver. Faz sentido? Pra mim, faz: destacar bisões é pura hierarquia de sentido e decisão editorial; onde o poder da hierarquia com viés negativo se manifesta aqui?

Papo longo. O fato é que aproveito a experiência para detalhar esse tema, uma lateralidade importante no Matriz de Marketing, um estudo que basicamente usa esses fundamentos para propor formas de organizar a comunicação corporativa. O curso Redes valeu por esse empurrão, não apenas por isso: foi proveitoso por outras conversas interessantes e descobertas no seu decorrer — daí, o que for oriundo das minhas lavras e pertinente a esta série será publicado aqui. Já as conversas de outros integrantes poderão entrar nessa meada como citações, quando for o caso, mas continuarão a princípio restritas ao ambiente interno do curso, pois fazem parte daquele acervo. Também estou evitando citações pessoais, pois isso pode implicar em fulanizar a conversa pra cá e não é esse o caso. Talvez as pessoas não gostem de serem citadas, então ficamos assim…

No mais, siga os próximos textos, atalhos serão publicados aqui sempre que houver. E, se quiser, entre nas referências abaixo, elas apontam novos rumos.

referências

Para quem gosta do assunto e quer se aprofundar nos temas tratados pelos organizadores do curso, comece procurando pela relativamente nova ciência das redes; a bibliografia básica listada pelos organizadores dessas conversas envolve as referências abaixo (link nos títulos); outras serão incluídas aqui à medida em que os textos forem publicados. Segue também referências sobre discernimento editorial, o trabalho implícito em qualquer redação de qualquer veículo de comunicação em qualquer tempo ou lugar do planeta, sob qualquer tecnologia — ou, como já cantou um dia um tal Walter Franco, “que é que tem nessa cabeça, irmão?”

Mas a principal inspiração ainda está nas cavernas paleolíticas, um insight pinçado em algum instante em 2007 e posteriormente amparado em grande parte pelas ideias contidas no livro Gatekeeping Theory, de Pamela Shoemaker e Timothy Vos; Pamela atua na Syracuse University, NY; Timothy leciona na escola de jornalismo da University of Missouri, ambas nos EUA. Existem várias visões teorizando o trabalho das redações e do processo editorial; gatekeeping é apenas uma delas e tem como ponto positivo sua simplicidade auto evidente.

referências em torno do curso Redes

gatekeeping, edição e comunicação

Algumas referências usadas na tese:

Abbott, E. A., & Brassfield, L. T. (1989). Comparing Decisions on Releases By TV and Newspaper Gatekeepers. [Article]. Journalism Quarterly, 66(4), 853–856.

Berkowitz, D. (1990). Refining the gatekeeping metaphor for local television news. In D. Berkowitz (Ed.), Social meanings of news — A text-reader. Thousand Oaks: Sage Publications.

Bleske, G. L. (1991). Ms. Gates takes over. In D. Berkowitz (Ed.), Social meanings of news — A text-reader. Thousand Oaks: Sage Publications.

Hausman, C. D., Jr. (1990). The decision-making process in journalism. Chicago, IL: Nelson-Hall.

Shoemaker, P. J. (1991). Communication Concepts 3: Gatekeeping. Newbury Park, CA: Sage.

Shoemaker, P. J. (1996). Hardwired for News: Using Biological and Cultural Evolution to Explain the Surveillance Function. Journal of Communication, 46(3), 32–47.

Shoemaker, P. J., & Reese, S. D. (1991). Mediating the message: Theories of influences on mass media content. New York: Longman.

Shoemaker, P. J., & Vos, T. P. (2009). Gatekeeping Theory. New York and London: Routledge.

Smith, R. F., Tumlin, S.-A., & Henning, V. (1988). A Gatekeeping Study of Gannett’s All-Local Newspaper Experiment. [Article]. Journalism Quarterly, 65(3), 740–744.

Snider, P. (1967). Mr. Gates Revisited: A 1966 version of the 1949 case study. Journalism Quarterly, 42, 419–427.

Stempel III, G. H. (1985). Gatekeeping: The Mix of Topics And the Selection of Stories. Journalism Quarterly, 62(4), 791–815.

White, D. M. (1950). The “gate keeper” — A case study in the selection of news. In D. Berkowitz (Ed.), Social meanings of news — A text-reader. Thousand Oaks: Sage Publications.

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— Cp, dezembro, 2015 (última atualização dezembro, 2017)

Pausa. Esta série não tem hora para terminar, nem tenho compromisso de publicar tudo de uma vez. Na medida do possível, isso ficará completo no fim de janeiro ou fevereiro, após uma pauta em dezembro e um pouco mais. O que estiver disponível antes desse recesso estará aberto a comentários, que não serão mediados por absoluta impossibilidade. Quando for possível, retomarei. Já as revisões serão constantes; sempre haverá um caco ou outro, ou uma ideia que talvez não tenha ficado realmente clara, embora esse sempre seja o objetivo de saída. Bom 2016 (e 2017, 2018…)!

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Cassiano Polesi, mkt:vendas: marketing, marcas, vendas, agora com foco em gestão patrimonial imobiliária // || \\ 011 9 6929–8888 cassianopolesi@matrizmkt.com