um workshop, uma homenagem

c.
matriz marketing
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5 min readFeb 6, 2015

Tive um lampejo tempos atrás e pensei — isso é sempre um perigo — em montar um curso a partir da experiência de criação editorial acumulada nos vários anos de trabalho conjunto que mantenho com meu parceiro de design Luciano Pessoa. Batizado de Entre e a Edição e o Design, o workshop, ou oficina, pra ficar no Português, é também uma homenagem ao Flávio Ficarelli, diagramador que conheci na redação do Diário do Grande ABC, priscas eras, e explico aqui os motivos.

O CURSO faz um diálogo entre texto e imagem, no trabalho orientado a uma produção editorial qualquer. Em geral, essa construção é realizada por profissionais de mundos diferentes, muitas vezes quase opostos: o “pessoal do texto” versus “os gráficos” ou os “caras da arte”, diagramadores, designers… bem, aqueles caras ali naquele canto ou mesão.

Mesmo em tempos de web, coisa inexistente no século passado nos níveis de agora, mesmo nesse ambiente fluido de hoje, essa distância existe. O curso visa minimizar isso, convidando a pensar com os olhos, a conversar com as imagens, além de agregar algumas ferramentinhas de planejamento e edição que criei pelo caminho. Pensando bem, já são uns bons 30 e tantos anos que faço produções editoriais, dá pra aprender algo.

Mas onde o Flávio entra? Bem, fui parar um dia na mesa de diagramação do tal DGABC. Ok, já tive meu nome cunhado no chumbo cuspido por uma máquina gigante chamada linotipo — e quem conhece esse tipo de máquina na infância dos seis anos ou tanto, e ganha um lingotinho de presente com supostamente seu nome escrito, dificilmente sai incólume: ter o nome impresso numa peça de chumbo impregna na pele da retina como o brasão da fazenda no couro da boiada. Sim, sou um cabra marcado pela tipografia.

Havia feito naquele momento até um curso de diagramação no Senac, desses profissionalizantes. Apesar dessas inegáveis qualidades, uma lembrança da infância e um curso sobre a regra de três, estar numa mesa de diagramação no entorno dos seus 20 e poucos anos não foi um acaso — acho que eu tinha um pistolão por lá…

O fato é que não tinha a menor ideia de como transformar numa página de jornal aqueles bloquinhos de textos datilografados em laudas dobradinhas, com fotos sempre coerentemente anexadas. Os editores preparavam suas coisas e sentavam-se à mesa da diagramação para saber qual espaço estava disponível e preencher com a informação do dia o espaço que sobrava.

Isso é velho: diagramar uma página. Isso não é velho: pensar um produto editorial e a forma de fazer isso. E isso aqui é até bem atual: saber gerenciar a informação daqui pra lá, a ser canalizada via um suporte qualquer. O workshop trata disso.

Naquela época, um dos suportes mais populares era o jornal impresso; por algum motivo que nunca descobri, as folhas de diagramação do DGABC eram no “tamanho natural” da página de jornal e o diagramador desenhava ali o que seria sua solução para acomodar aqueles textos e fotos. Descobri depois, os jornais e revistas da capital, a cidade grande São Paulo, já adotavam um diagrama reduzido em 50%, de forma que tudo ficava bem menor, quase do tamanho de um A4. Mais confortável, claro, mas isso obrigava a incluir uma conta a mais — a divisão por dois — na tarefa de prever quanto de texto caberia naquele tanto de espaço: se no tamanho original um texto ocuparia 10 cm de altura numa coluna, num diagrama reduzido à metade isso corresponderia a cinco centímetros. Bacana.

O mesão da diagramação no DGABC consistia em quatro mesas agrupadas no meio da redação. Sentado lá, eu tremia. Além de estar no centro de um mundo estranho, via aquela página gigante na minha frente. O editor sentava-se ao meu lado e esperava… E esperava… Olhava para os lados… Puxava um cigarro… E esperava. Eu simplesmente não tinha ideia do que fazer com aquilo: a página vazia na minha frente tornava-se um enorme latifúndio de papel. Olhava aquela folha clamando que ela mesma me apontasse, quase como uma esfinge condescendente, o caminho correto.

Claro que em pouquíssimo tempo os editores perceberam, e faziam fila para não sentar ao meu lado, preferindo disfarçar e aguardar vaga no trabalho dos outros três diagramadores da casa: além do Flávio, o Rubens Justo e o que era a reserva da história gráfica do jornal, Valdir Fumeni — aliás, se não me engano, foi esse mesmo Valdir que cunhou meu nome em chumbo, quando antes trabalhava datilografando originais no tal linotipo, para então alguém montar os lingotes de chumbo e formar páginas amarradas à mão. Visto assim, diagramar uma página na assepsia de uma redação foi, sim, um salto tecnológico e de processos, um dos muitos que a indústria jornalística passou desde que foi viabilizada pelos tipos móveis do velho Gutenberg.

Os editores me evitavam porque têm pressa: fechar um jornal é algo rápido e ninguém quer empacar no caminho de uma página. O trabalho da diagramação era ter essa ideia, encontrar esse caminho em segundos, logo após uma breve discussão sobre o que deveria ser destacado, o que poderia ser cortado, quais os principais textos do dia e o que poderia simplesmente cair. Papo de gente grande: muitas variáveis paralelas e o tempo passando.

Um dia, algo irritado com minha inépcia frente a isso, vendo eu olhar aquela folha vazia sem ter qualquer reação prática, Flávio olhou pra mim e disse: “Cassiano, a solução da página está na sua cabeça, não na página!!!” Grande Flávio, a língua mais ferina daquelas paisagens, tal qual um Valter Franco das artes gráficas, em outras palavras gritava pianinho: “é a cabeça, irmão”.

Demorei ainda uns anos para entender realmente o que ele estava querendo dizer. Mesmo depois de entrar na Folha de S.Paulo, nesta mesma função, ainda demorei um tempo para que essa orientação básica se transformasse em um pensamento, digamos, tangível, desses que a gente pega com a naturalidade de quem busca um copo de água.

Lá na Folha me atrapalhei muito tentando fechar as páginas da então editoria de Cidades, num ambiente já informatizado, no qual o tempo de fechamento era medido no relógio, literalmente aos segundos. Ao contrário do DGABC, na Folha cada editoria tinha seu próprio riscador de páginas, não havia um mesão central, embora isso talvez tenha também mudado com o tempo. A cada redação, uma solução industrial e de produção, mesmo sendo o básico sempre igual.

Grande Flávio. A ficha caiu depois de uns anos. E de certa forma virou agora um curso que, entre outras coisas, tenta mostrar que uma ideia nasce, sim, na nossa cabeça, por óbvio.

Conversar com imagens, imaginar com textos pode ser — e é — uma brincadeira sempre bacana. O objetivo do curso é ajudar o “pode” a “ser”. Se até eu aprendi a lição do meu colega, creio que é uma lição aprendível por quem queira de alguma forma aprimorar o que hoje chamamos meio pomposamente de gerenciamento da informação.

Sentados naquela mesa de diagramadores do século passado, nenhum de nós, Flávio, Rubens, Valdir, eu, imaginaria que aquilo tudo daria nisso: uma indústria em solvência e transformação. Mas os problemas continuam os mesmos: como fazer uma informação sair daqui e chegar lá, por qualquer meio. Grande Flávio, fica aqui minha lembrança de tempos bicudos. Eram bicudos; e continuam: pura diversão.

Um cordial abraço editorial,

Originally published at medium.com on February 6, 2015.

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Cassiano Polesi, mkt:vendas: marketing, marcas, vendas, agora com foco em gestão patrimonial imobiliária // || \\ 011 9 6929–8888 cassianopolesi@matrizmkt.com