O Adapak possível em tempos de autoria digital

Mauro Amaral
SobreNós
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3 min readApr 8, 2013

Affonso Solano é corajoso. E com isso não quero falar das dificuldades de se publicar no país, bem menores em tempos digitais, mas ainda grandes em uma terra de poucos leitores. Minha intenção é outra.

Antes, deixem-me contar sobre minha reação ao ouvir os primeiros rumores sobre o lançamento de “O espadachim de carvão”. Na hora, deduzi que o “carvão” seria uma alusão ao crayon, ao lápis, enfim, a alguma técnica de desenho da qual o autor-ilustrador, com trabalhos publicados em canais de TV, portais e editoras nacionais, utilizaria como metáfora para contar sua história. Desde o começo, para mim, O Espadachim-Solano seria o retratado em sua obra.

E não é que a sensação se conformou ao terminar as 255 páginas do livro? Adapak não é outro senão o menino criado no interior do Brasil, com uma infância cercada de natureza e espécies exóticas que ao sair de sua caverna tem como única defesa sua própria inocência e, claro, seus círculos, alusão transparente aos movimentos manuais de um desenhista.

Mas será essa interpretação possível de ser replicada por outros leitores? Acredito que sim porque Solano é mais um autor guiado pela “mitologia da trupe”, efeito que já abordei por aqui, ao falar do “Independência ou Mortos”.

Isso porque Affonso é um dos criadores de um dos podcasts de maior sucesso do país, o Matando Robôs Gigantes. Escutar um episódio dessa franquia é viajar por uma peça metalinguística do início ao fim, onde o próprio áudio dialoga com os podcasters, enviando referências sobre filmes, quadrinhos e games, em formato de trilhas sonoras e frases bem colocadas. Foi nesse ambiente que Solano criou seu público durante alguns anos, em cozimento lento e com especiarias escolhidas cuidadosamente. Como legítimo representante dos autores vindos da WEB, seu público estava pronto antes da obra e, esta, por sua vez, saiu da gráfica com sucesso garantido.

Pareceu para mim que, como resposta a essa demanda, o personagem central do livro soa (forçosamente?) como o herói de si mesmo. Senão, vejamos. Em uma jornada sem tantos lugares comuns, Adapak é leitor voraz de obras fantásticas, hábil em uma arte secreta que o faz enxergar círculos invisíveis que o ajudam a resolver situações das mais intrincadas, inapto com as regras sociais mais banais. Na figura de um viajante sem rumo, enfrenta castelos, piratas, intrigas espirituais e acha graça da miudeza intelectual de seus “súditos” que depositam oferendas a um Deus ausente. Em uma palavra: “meldels”. (vejam só eu, como trupe, citando uma dos jargões do programa…)

É essa a coragem de Affonso, um Adapak possível e sucessor de autores como Eduardo Spohr e o próprio Rafael Dracon, seu editor. Mostrar-se de forma autobiográfica para seus iniciados é um segredo auto revelado e bastante inteligente. No herói cor de carvão, sem orelhas ou nariz, enxergamos suas limitações, seu apego por sua própria pessoa, sua mitologia, sua habilidade em contar histórias. Notem que não sou eu quem descubro isso sozinho: uma das principais discussões de fãs e leitores da redes social Skoob versa sobre a identificação de sócios e amigos de Solano na obra. Quem seriam Diogo Braga e Roberto Duque Estrada na trama? Não importa: cada fã é uma sentença.

E é incrível como isso se encaixa em uma obra aberta e própria para sua comunidade, criada a partir de sua própria linha narrativa, um “montando um robô” literário, enfim.

A trama de um tapete com infinitos fios

Nesse sentido, o que é elogio pode virar sugestão. Ao terminar a leitura, ficou claro para mim que “O espadachim de carvão” merecia alguns aprofundamentos. A necessidade de apresentar um Universo inteiro com descrições minuciosas de diversas espécies, sua história e relação com a mitologia dos Quatro que São Um, embora vigorosa, mostrou-se apressada.

Senti falta de um mapa de Kurgala, por exemplo, recurso utilizado desde as épocas de Tolkien. Por que não utilizar o poder das redes para montar esses descritivos, de forma colaborativa e como estratégia de lançamento? Por que não lançar concept arts?

Entenda, leitor e fã, esse sentimento é apenas prova de que a obra merece desdobramentos e tem qualidade inconteste. Estamos falando, afinal, do cartão de boas-vindas de um Universo Fantástico, editado pela Fantasy e que merece vida longa, pois não?

Concluindo

Filho e pai de um público auto-gerado, Affonso Solano tem em seu livro de estreia a chance de estender sua plataforma para além do virtual e do instantâneo. Fica a questão: terão os autores do século XXI intimidade com a posteridade?

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