O dia em que um lepidóptero me contou uma fábula sobre lagartixas

Mauro Amaral
SobreNós
2 min readOct 8, 2015

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Minha intenção era aproveitar o jato quente no pescoço dolorido depois de um dia que fora tão difícil quanto a tarefa de explicar para uma criança de seis anos que a vida, bem, não é essa coca-cola toda. Você tenta não destruir os sonhos infantis, certo de que sua função é adubá-los. E, cuidadosamente, mostra que, no fundo, é só adubo o que sobra.

A água cumpria seu papel quando, me dei conta que não estava sozinho no banheiro, carente de reformas que lhe devolvessem o prazer de estar a li e a tampa do vaso sanitário. Era uma Mariposa que tentava, cabeçada após cabeçada de sua cabeça de inseto, passar pelo basculhante. Era hiperativa. Era cinza. Mas tinha tanta determinação, acreditava tanto em seu único propósito de vida que desperdiçava sua energia em vão esquecendo-se (ou nunca sabendo, feliz e ignorante) de que, 1) pela lei natural da conservação das massas, será sempre impossível passar pelo vidro; 2) se conseguisse eu a mataria.

Veja você, em sua frivolidade e fugacidade, o mais sem graça dos lepidópteros, certo de uma missão que transcenderia sua semgracisse cinza, julgava-se a mais garbosa borboleta. E voava para o nada. Cabeçada após cabeçada de sua cabeça de lepidóptero.

Notem que sua suposta transcendência não era nada mais do que a resultante dos conturbados instintos do inseto porque, alheia a tanto show, não percebia um terceiro personagem nessa fábula que calhou de me ocorrer ontem a noite, enquanto, como já disse, tentava em vão relaxar o pescoço. Uma lagartixa.

Essa, a folha de papel mais em branco que poderia existir na terra dos contos ainda não criados, pulsava lentamente. Era toda estratégia, tática, ações e objetivos. Era científica. Testava milimetricamente o esgarçar de sua língua, em idas e vindas ritimadas. Se a mariposa pensava no impossível, a lagartixa planejava o sustento. Tentou uma, tentou duas, e fuga após fuga de sua presa, não desistia.

As lagartixas podem sobreviver se lhes tiramos um pedaço da cauda ou até mesmo uma perna, que vai regenerar. Desconfio que, o que não conseguimos retirar seja pela maceração provocada por um objeto pesado ou a laceração de um bisturi, é seu talento para a paciência e o planejamento. E, então, uma voou e a outra correu. E sumiram.

Tentei em vão olhar pra fora, abri o basculhante, fechei novamente, mudei o ângulo. Bati uma, duas, três vezes com a cabeça em vão. Até que percebi algo lento e metódico vindo em minha direção.

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Mauro Amaral
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