Eu quero ser uma mulher fraca

Julia Borges
ColetivoPerseguidas
3 min readFeb 5, 2021

Eu quero ser uma mulher negra com fraquezas, com rasgos. Não porque quero ser ferida, não porque quero ser humilhada, tampouco renegada. Quero ser uma mulher fraca, porque antes de tudo, sou negra. Ou melhor, não sou mulher e sou negra, sou uma mulher negra em conjunto, sem separações, pois dessas condições de existência não me separo, não me divido. Sou uma mulher negra. Para além de mulher, sou negra.

Quero ser uma mulher fraca porque mulheres brancas podem culminar suas dores em suas lágrimas, podem gritar, podem demonstrar tristeza. Nós não.

Quando uma mulher negra chora, clamando pela cura de suas dores, pelo afastamento da humilhação racista, das marcas que queimam o âmago, precisamos “engolir o choro”. Quando estou ferida e cansada, sou obrigada a manter a postura de “mulher forte”. Eu nunca fui forte, não quero ser obrigada a ser forte quando me ferem, quando o racismo assombra, quando a misoginia queima na pele, nem mesmo quando estou triste por coisas pequenas.

Quero que a minha dor seja uma verdade aos outros olhos, eu não posso suportar sozinha. Quero que as minhas feridas — que não são nada pequenas — sejam encaradas como um fato, eu não posso pedir ajuda se ninguém acredita que estou sofrendo.

Nós, mulheres negras, somos colocadas no degrau mais baixo da existência, estamos condicionadas ao mais baixo nível de valorização, humanização. Estamos exaustas porque somos as filhas que engravidam cedo, frutos de um estupro, somos as mães pretas que perdem os filhos para o Estado, as escravizadas como corpo sexual, o depósito de hiperssexualização, somos consideradas menos capazes com a mente e mais capazes no sexo.

Estamos exaustas porque não somos nada. Para eles, dos degraus mais altos, não somos nada.

Isso não é motivo pra ser fraca? Não podemos chorar, nem nos cansar, nem pedir socorro.

Eu gostaria que minha dor fosse ao menos respeitada e humanizada, que pessoas brancas parassem de tokenizar meu sofrimento, usando-o como máscara de camuflagem para seus racismos incutidos, expondo nossas marcas como tentativa de afagar seu ego prepotente que lhes diz: você não é racista se fingir que se importa.

Brancos são racistas. E não podemos ser fortes com isso porque estamos nos vendo e vendo nossos irmãos e irmãs em situações como a agressão física e psicológica, a afromisoginia, o assassinato em massa, a criminalidade e marginalidade, a pobreza extrema, a prostituição, o suicídio.

Digam-me: COMO? POR QUE SUPORTAR E SER FORTE?

Como tolerar que sejamos vistos e tratados como coisas que apodrecem rápido?

A resposta, talvez, seja que devemos ser fortes para não sermos símbolos de denúncias. Não devemos abrir nossas bocas e pedir uma trégua de racismo, misoginia, lesbofobia, nada. Não devemos fazer isso porque estaremos expondo a desumanização e quem a comete.

A única “qualidade” que os brancos nos dizem que temos é sermos fortes. Essa “qualidade” só diz respeito ao quanto querem amansar nosso discurso, para que não deixemos evidente o roubo da sanidade que eles cometem com nossa existência.

Entretanto, eu não quero ouvir, por exemplo, que racismo é um erro, nunca um crime. Não quero perdoar quem me destruiu assim, por que eu deveria? Se isso é fraqueza, então serei. Não fingirei forças para suportar alguém que ousou achar que pode roubar a minha sanidade, que pode me reduzir ao lixo sem escrúpulos que, no fim, só diz respeito a inveja e ao ódio branco de um pensamento criminoso e desumano. Eu serei forte apenas para sobreviver, nunca para suportar quem tenta me tirar, direta ou indiretamente, a vida.

Eu não quero suportar tudo. Eu não quero enlouquecer aguentando tudo. Não quero me ver ferida em frente ao espelho. Quero o conforto de um abraço, quero a qualidade necessária para tratar meus problemas enquanto mulher negra, quero o carinho de ser amada e cuidada.

Eu quero que a revolução floresça com mulheres negras que se permitem cair para se curarem em meio aos processos.

Eu quero que a fraqueza possa ser vista, para que ela fortaleça o ódio coletivo necessário para revolucionar.

Eu quero ser uma mulher fraca.

Quero chorar escandalosamente.

Quero deitar no colo de outra mulher preta e receber o carinho que amenize meus rasgos.

Quero gritar.

Quero pedir socorro.

Eu estou, nesse momento, pedindo socorro.

Salvem mulheres pretas do limbo sufocante de suportarem a dor sozinhas.

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Julia Borges
ColetivoPerseguidas

Lésbica insubmissa, negra indomável, mulher incessante.