Feminismo radical abre caminho para um movimento de mulheres sul-coreanas ressurgir.

Coletivo Perseguidas
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11 min readJan 7, 2021

As feministas radicais da Coreia do Sul estão usando uma infinidade de táticas ousadas para desafiar a atual misoginia e cultura da pornografia no país.

Em 6 de outubro, o quinto comício anti-molka foi realizado em Seul, perto da estação de metrô Hyehwa. Sessenta mil mulheres coreanas foram às ruas da capital para protestar contra a inação policial a respeito do movimento molka — a tendência em que os homens gravam vídeos de mulheres por meio de câmeras escondidas em banheiros públicos e gravam vídeos debaixo das saias de mulheres em locais públicos, e depois publicam as imagens em sites pornográficos. Jornalistas de todo o mundo vêm registrando esses protestos de larga escala sobre os direitos de mulheres que ocorreram em todos os meses desde maio. Ônibus fretados transportam mulheres de todas as partes do sul da península coreana para comparecer às manifestações.

Em meio ao momento do #MeToo, é fácil perder de vista o trabalho político subjacente a esses tipos de ações de massa e o contexto político que torna essas revoltas — que podem parecer espontâneas — possíveis. As feministas radicais coreanas (que se organizaram online principalmente) estavam em campanha contra o molka há três anos antes da primeira manifestação.

Embora os comícios anti-molka sejam organizados online por indivíduos (ninguém assume responsabilidade por eles na mídia e nenhum comitê organizador os patrocina), uma unidade política básica é aparente.

Significativamente, os comícios conseguiram se sustentar como eventos somente para mulheres — as barreiras à participação são tão altas que mesmo fotógrafos e jornalistas do sexo masculino não são permitidos nas barricadas dos comícios. Essa característica importante (e até agora não reportada) dos protestos sugere que não são demonstrações espontâneas de raiva e indignação por um grupo aleatório de mulheres, mas parte de um movimento político e histórico mais amplo em direção à libertação das mulheres. Certamente o assédio sofrido pelas mulheres nos protestos à luz de velas que derrubaram o governo da Coreia do Sul em 2017 levou, em parte, à decisão de excluir homens desses comícios, mas a ousadia das feministas coreanas também é fundamental.

Parodiando a misoginia para combater a violência contra as mulheres.

Irreverência e paródia são características centrais das campanhas feministas na Coreia. No início deste ano (2018), uma coreana foi presa após postar uma foto de um modelo nu que posava para estudantes de artes da Universidade Hongik. Logo depois, outra mulher postou online um aviso falso de que câmeras de espionagem haviam sido plantadas nos banheiros de todos os homens na Universidade Hongik e que as imagens seriam publicadas em sites pornográficos. Esse aviso levou a uma rápida busca policial na universidade, que não resultou em nada. A ironia dessa resposta imediata se tornou óbvia quando comparada com a contínua falta de resposta às reclamações das mulheres sobre o site SoraNet, que hospedava ilegalmente imagens pornográficas de mulheres coreanas enviadas por namorados vingativos, assediadores e financiadores de prostituição, além de fornecer um fórum para esses homens discutirem, entre outras coisas, como organizar grupos coletivos para estuprar mulheres em quartos de hotel. O SoraNet foi fechado em 2016 depois que a polícia prendeu seus proprietários, mas o site funcionou por 16 anos sem interrupção e levou uma década de mulheres denunciando antes que a polícia finalmente tivesse uma ação.

A fim de chamar mais atenção para essa hipocrisia, feministas coreanas divulgaram notícias falsas dizendo que homens usavam drogas compradas online para facilitar o estupro de outros homens nas forças armadas coreana. Os sites que vendem esses medicamentos na Coreia operam há anos, apesar das queixas de muitas mulheres (inclusive de vítimas de estupro facilitado por essas drogas), mas depois que os artigos falsos foram divulgados, a polícia coreana fechou esses sites em um dia.

As feministas coreanas começaram a usar a paródia como uma tática depois que uma notícia falsa circulou durante a epidemia global de “MERS” (Síndrome Respiratória do Oriente Médio) de 2015, alegando que duas mulheres coreanas que viajavam para o exterior haviam sido infectadas pelo vírus, mas recusaram o tratamento para poder ir às compras. Os homens coreanos responderam a esta notícia com uma série de discursos de ódio online. Quando ficou claro que a história não era verdadeira, as mulheres se rebelaram criando um site chamado Megalia — uma combinação de “MERS” e Filhas de Egalia, o título de um livro feminista satírico sobre a terra de Egalia, na qual os papéis sexuais são invertidos e “menwin (homens)” começam a protestar contra a classe dominante “wim (mulheres)”. Ao usar a paródia como tática, as usuárias do site (chamadas de “megalianas”) conseguiram disseminar ideias feministas e aumentar a consciência, atraindo a atenção das jovens coreanas online. Isso teve um efeito radicalizador — elas competiram entre si para criar cada vez mais paródias ultrajantes.

Em outro exemplo de irreverência entre as feministas coreanas, a faixa de Megalia mostra uma imagem parodiando a preocupação dos homens com o tamanho do pênis: um gesto com a mão sugerindo que o tamanho do pênis está sendo medido entre o dedo indicador e o polegar. As feministas realizaram intencionalmente o comício de junho em 9 de junho, um dia que escolheram expressar oficialmente (e sarcasticamente) simpatia por homens com pênis pequenos (chamados 소추 절), referenciando uma pesquisa, amplamente compartilhada online, mostrando que o pênis masculino coreano médio é 6,9 cm de comprimento, mais curto que o padrão internacional.

Organização feminista radical muda a conversa

No meio do ativismo contínuo de Megalia, em 17 de maio de 2016, uma mulher de 23 anos foi esfaqueada até a morte por um homem em um banheiro público unissex perto da estação de trem de Gangnam, em Seul. A mídia classificou o assassinato como um assassinato “aleatório”, mas as megalianas insistiram que o agressor tinha como alvo específico uma mulher, concluindo que o assassinato era outro crime de ódio alimentado pela misoginia. O homem de 34 anos acusado de seu assassinato se escondeu no banheiro e deixou passar alguns homens até que uma mulher entrasse. Em resposta a uma pergunta sobre o que o havia motivado a matar a mulher, ele disse: “As mulheres me ignoravam.” Após essa admissão, as feministas intensificaram suas atividades e as mulheres se reuniram na estação de trem de Gangnam, perto da cena do crime, para deixar mensagens em memória e realizar vigílias.

A atividade feminista radical online levou a um foco público sem precedentes na cultura sexista do país. No início deste ano, o presidente coreano, Moon Jae-in, anunciou que “a violência de gênero é uma questão de estrutura social que permite aos poderosos oprimir sexualmente ou facilmente exercer violência contra as fracas”. Perante esse anúncio, os livros feministas inundaram o mercado editorial coreano, e a ação pública em apoio às antigas “mulheres de conforto” da época da guerra aumentou. Em comparação, nenhum sucesso semelhante foi alcançado no vizinho Japão, onde as feministas agora lamentam o fracasso do movimento #MeToo no país, enquanto as sobreviventes que tentaram falar publicamente foram silenciadas online e na grande mídia, uma das líderes do movimento foi forçada a fugir para Londres.

Uma reação chamada feminismo.

Como já era previsto, com os avanços do movimento veio reação. Apenas seis meses após o lançamento do site Megalia, “megal” passou a ter uma conotação semelhante a “feminazi”. Como movimento online, Megalia havia sido radicalmente feminista em sua defesa do espaço e separatismo somente para mulheres, sua análise da política de gênero e sua promoção de resistência pessoal e social à misoginia cultural. Os desafios vieram de dentro e de fora dos círculos feministas.

Os problemas começaram na comunidade megaliana em resposta a esforços para discutir a misoginia no movimento queer, especialmente a linguagem usada por homens gays — frases como “cadela com bolhas de ar” (um termo que ridiculariza os corpos curvilíneos das mulheres) e “vagina traseira”, que homens gays usam para se referir ao ânus, referenciando sexo anal. Muitas mulheres ficaram chocadas quando confrontadas com evidências de que homens gays usavam essas frases, porque acreditavam que os homens gays sofriam a mesma opressão patriarcal que as mulheres e que eram aliados das feministas. Essas críticas levaram a cismas em Megalia, pois alguns membros acreditavam que deveriam ser livres para dizer qualquer coisa contra misóginos, e outros achavam que essas críticas eram homofóbicas.

As mulheres que queriam um espaço onde também pudessem criticar a misoginia dos gays criaram um novo fórum online chamado Womad, onde feministas poderiam discutir, compartilhar ideias e informações de forma anônima, e depois disseminá-las por várias plataformas de mídia social. Womad funciona como uma estação de recarga para feministas radicais coreanas — uma força energizante e unificadora. O site adota a ideia de serem “odiadoras de homens” e oferece às mulheres um fórum para expressar livremente sua aversão aos homens. Homens não têm permissão para usar o fórum, e os usuários podem relatar comentários que suspeitam serem publicados por homens. Na Womad não há nenhum limite ao discurso feminista em busca do politicamente correto. Essas regras básicas possibilitam que as mulheres falem sem se censurar. Hoje, o termo “Womad” passou a se referir a feministas radicais em geral na Coreia do Sul.

Como em muitos países, a academia e o movimento queer também se tornaram locais de reação contra o feminismo radical na Coreia. Ativistas e acadêmicos LGBT promovem o libertarianismo sexual, o comércio sexual e a auto-objetificação como algo potencialmente empoderador. Um ativista gay chamado Matsu, que frequentemente fala em eventos LGBT e é membro do grupo de Seul, “Real Perverts”, defende a prostituição masculina como um aspecto necessário da identidade masculina e, em outubro de 2016, a Queer Women’s Network realizou um evento sobre minorias sexuais femininas, com Siyeun Lyu, uma “prostituta lésbica transgênero”, que criticou o movimento antiprostituição da Coreia, acusando feministas de prejudicar e estigmatizar “prostitutas”.

Nesse mesmo ano, os membros da Womad lançaram um blog e uma página no Facebook chamada “Lolita Busters”, criticando a objetificação de meninas na mídia coreana. (Não são apenas as cantoras pop da Coreia que se vestem com uniformes de alunas e fazem danças sexualmente sugestivas, há uma tendência de moda chamada “estilo lolita” em que as mulheres adultas se vestem e se comportam como se fossem crianças.) Uma feminista liberal palestrante, Hee-jung Son, que entrou no mainstream aparecendo em programas de TV coreanos, apresentou um artigo no ano passado, intitulado “A Era da Rebelião e a Guerra do Sexo”, rebatendo a posição dos Lolita Busters argumentando que as crianças devem ser reconhecidos como seres sexuais que podem ser participantes do “erotismo intergeracional”.

Os ataques liberais aos membros da Womad surgiram mais recentemente em resposta à publicação do Feminismo Sem Raiz: De Megalia a Womad, um livro sobre ativismo feminista online na Coreia do Sul. Várias acadêmicas feministas coreanas conhecidas ligaram para a editora dias antes do lançamento do livro, em março, acusando-as de publicar “discurso de ódio”. Depois de Ziihiion, uma cantora feminista, se apresentar no lançamento do livro em janeiro, ela recebeu dezenas de comentários em sua página no Facebook, criticando sua decisão de apoiar os “haters”. Uma performance beneficente que ela tinha agendada em favor de mulheres com deficiência foi cancelada como resultado.

Embora a política de somente mulheres nos comícios contra a pornografia com câmeras de espionagem tenha sido bem sucedida, tentativas semelhantes de preservar espaços políticos para mulheres não foram bem sucedidas nas universidades da Coreia. Em 2017, um grupo de estudantes feministas da Universidade de Ewha Women e da Universidade de Sookmyung Women tentou realizar um seminário intitulado “Invasão de homens nos espaços femininos”. Nos dois campi, havia relatos de homens entrando nas bibliotecas somente para mulheres e instalando câmeras escondidas nos banheiros, e de homens vestindo roupas femininas para acessar dormitórios e atacar estudantes do sexo feminino. As alunas queriam falar sobre esses incidentes, mas o seminário foi cancelado depois que grupos queer se queixaram de que o evento era apenas para mulheres.

De frente para a folga.

As tentativas de frustrar o ativismo feminista radical e a teoria que apoiaram a ascensão do movimento de mulheres sul-coreanas continuam sendo resistidas — principalmente pelas sobreviventes de violência masculina. Uma dessas resistentes é a membro do Womad que foi presa depois de postar online a foto do modelo nu na Universidade Hongik. Em 13 de agosto, ela foi condenada a 10 meses de prisão. A mídia a descreveu como uma perpetradora, mas, na verdade, a foto do homem foi tirada por outro modelo durante uma pausa em uma aula de arte. Embora seja habitual que modelos nus cubram seus corpos durante os intervalos, o homem se esparramou sobre a mesa, expondo seus órgãos genitais, deixando as modelos nuas femininas desconfortáveis. As mulheres de Womad exigiram que a polícia investigasse o modelo masculino por expor inadequadamente seus órgãos genitais, mas eles se recusaram.

Uma sentença de 10 meses de prisão é excepcionalmente dura para esse tipo de ofensa. (Por exemplo, no dia da decisão, o tribunal do distrito de Busan impôs uma sentença suspensa e uma multa de US $ 2.000 a um homem que enviou fotos nuas da namorada online sem o consentimento dela.) A polícia recentemente emitiu um mandado de prisão para a proprietária do site Womad por esse incidente também.

A contínua misoginia e a hipocrisia demonstradas pelos funcionários que cercam esses casos não mostram sinais de acabar.

Recentemente, vazaram imagens de vídeo, mostrando o CEO da empresa de TI, WeDisk, Yang Jin-ho, batendo em um de seus funcionários e forçando outros a matar galinhas com uma besta e uma espada. O vídeo provocou indignação pública online, irritando feministas coreanas que exigem as autoridades investiguem e que punam empresas de TI como Yang Jin-ho há anos, enquanto lucram com a venda de vídeos ilegais de molka, baixados por usuários em sites de compartilhamento de arquivos como Webhard. O fato de o público e as autoridades ignorarem a exploração sexual de mulheres, mas reagirem imediatamente ao comportamento de Jin-ho aos funcionários demonstrou, mais uma vez, o quão pouco as mulheres são importantes neste país.

Em uma coletiva de imprensa, a Associação de Mulheres Coreanas dos Estados Unidos e o Centro de Ajuda à Violência Sexual da Coreia (KSVRC) chamaram Jin-ho de “líder da indústria pornográfica de spycam na Coreia”, mas também lembraram o público de que os funcionários dessas empresas de TI não eram apenas “vítimas inocentes” , pois eles vendiam vídeos molka sabendo do que se tratava. Alguns desses funcionários até se gabaram nas redes que podiam acessar gratuitamente milhões de vídeos molka, que funcionava como uma espécie de benefício empregatício.

Essas organizações de mulheres argumentam que empresas como a de Jin-ho fazem parte de um “cartel da indústria de exploração sexual online” que não apenas lucra com a venda de vídeos molka, mas também tem vínculos com empresas ilegais de filtragem de conteúdo, como a Mureka, que acusam as vítimas de remover vídeos delas desses sites.

Apesar de desafios tão intensos, as feministas radicais coreanas não mostram sinais de desaceleração.

O livro “The Backlash Called Feminism”, de Jihye Kuk e Hyejung Park, está agendado para publicação no início de 2019. O livro aborda a luta contra o apagamento queer do feminismo lésbico nas tentativas de organização política e as tentativas de feministas liberais de silenciar feministas radicais. Park discute sua experiência de décadas na vanguarda do movimento abolicionista da Coreia do Sul, e Kuk descreve como as feministas da Womad tornaram possível o ressurgimento do feminismo na Coreia do Sul.

As feministas radicais sul-coreanas enfrentam a mesma reação antirradical que suas irmãs enfrentam atualmente no exterior. Somente teremos sucesso fortalecendo nossos laços internacionais e reafirmando nosso apoio às irmãs na linha de frente política, onde quer que estejamos no mundo.

  • Hyejung Park é uma feminista lésbica e uma tradutora freelancer que mora em Seul.
  • Jihye Kuk é a diretora da editora feminista de livros Yeolda Books e uma ativista feminista contra a violência masculina.
  • Caroline Norma é uma abolicionista feminista e uma acadêmica da RMIT University. Seu novo livro, Comfort Women e Post-Occupation Corporate Japan, estará disponível em outubro de 2018, publicado pela Routledge.

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