Nós não somos flores, nós somos fogo.

Coletivo Perseguidas
ColetivoPerseguidas
16 min readMar 6, 2021
Você pode ler o texto em PDF AQUI

Esse arquivo apresenta a tradução do texto “The South Korean women’s movement: ‘We are not flowers, we are fire’” que pode ser lido em sua versão original no blog “Feminist Current”

Outras traduções do Coletivo Perseguidas pode ser encontrado em nosso Medium: medium.com/mcperseguidas.

Sumário

A violência masculina politiza e radicaliza……………………………………5

Necessidade de organização somente para mulheres……………………..…7

Tire o espartilho……………………………………………………………………….9

Uma base histórica para a cultura centrada na mulher…..………………..10

Marginalização inspira organização política……………………………….12

Mudar o idioma muda a cultura…………………………………………….14

Um modelo para o Ocidente………………………………………………………………………16

Jen Izaakson e Tae Kyung Kim relatam o crescimento do feminismo radical que inspira as mulheres na Coreia do Sul.

No outono passado, Jen Izaacson viajou para a Coreia do Sul para documentar a ascensão do movimento feminista radical como parte de um grupo de trabalho da universidade de Cambridge, depois de ganhar uma bolsa de estudos entrevistando mais de 40 mulheres ativistas. Ela foi coautora do artigo com Tae Kyung Kim, uma feminista radical coreana de Seul, que atualmente mora e estuda em Berlin.

As notícias do movimento feminista em ascensão na Coréia do Sul chegaram à mídia ocidental, mas as raízes desse levante radical são secretas. As principais reportagens da mídia no Ocidente geralmente cobrem os aspectos do feminismo sul coreano que refletem nossas próprias realizações, deixando as realizações particulares das mulheres coreanas e os aspectos mais radicais do movimento menos visíveis. Em setembro, mais de 40 mulheres do movimento feminista radical sul coreano foram entrevistadas como parte da pesquisa acadêmica. Os resultados dessas descobertas estão resumidos neste artigo.

Devido à brevidade desta peça, muitas informações não podem ser abordadas, mas tentamos incluir o material que melhor demonstrará como o movimento surgiu; seu contexto histórico; e que táticas, estratégias e formações políticas que constituem o feminismo radical na Coréia do Sul.

A violência masculina politiza e radicaliza

Em 2016, o infame “assassinato de Gangnam” provocou protestos entre as mulheres. Um homem de 34 anos chamado Kim Sung-min esfaqueou uma mulher de 23 anos (cujo nome permanece sob proibição de publicação) até a morte dentro de um banheiro unissex em um bar de karaokê. Kim Sung-min esperou dentro do banheiro, permitindo que vários homens entrassem e saíssem antes que uma mulher entrasse. No tribunal, ele explicou: “Fiz isso porque as mulheres sempre me ignoraram”. Esta é uma explicação semelhante à oferecida por outros “incels” (celibatários involuntários) que cometeram assassinatos violentos, mas na Coréia do Sul, as autoridades do governo negaram explicitamente o motivo misógino, apesar do testemunho de Kim Sung-min.

Em resposta ao assassinato, as mulheres inundaram as ruas em frente a Estação Gangnam e nos arredores de Seocho-dong em protesto. Muitas dessas mulheres não se consideravam feministas na época, mas a natureza do assassinato e a motivação misógina as politizaram.

Em 2018, “molka” (as filmagens secretas de mulheres em banheiros e vestiários públicos, ou gravações feitas por baixo de suas saias na rua) havia se tornado um problema generalizado na Coréia. As entrevistadas me disseram que isso ocorre em parte porque os homens coreanos não têm confiança para assediar sexualmente mulheres diretamente nas ruas, de modo que suas tentativas de assediar mulheres sexualmente ocorrem de maneiras mais “sorrateiras”. Embora existam leis contra essa forma de voyeurismo na Coréia do Sul, a polícia raramente as aplica. A situação chegou a um ponto crítico quando uma jovem aluna foi acusada de fotografar um modelo nu na sua escola de artes. De acordo com as mulheres que entrevistei, o homem costumava ir para a sala de aula nu, então os alunos eram forçados a ver seus órgãos genitais. Finalmente, uma aluna tirou uma foto do homem na sala de aula e a publicou online. Ela foi levada a julgamento, presa e forçada a pedir desculpas ao homem, que disse que as imagens dele expondo seus órgãos genitais publicamente haviam causado “danos psicológicos”. A mulher foi multada inicialmente no equivalente a 18mil euros, mas o homem insistiu no tribunal que a mulher fosse mandada para a prisão, e ela ficou presa por 10 meses.

Considerando que os homens usam câmeras espiãs com impunidade quase total, esse incidente provocou uma onda de protestos de molka. Centenas de milhares de mulheres, principalmente jovens, se uniram, indignadas com o fato de as leis sobre o voyeurismo serem usadas contra mulheres, não homens. Até o momento, 360mil mulheres participaram de protestos contra câmeras de espionagem. Essas manifestações consistem em processos altamente estruturados, cantos políticos digitados em panfletos e distribuídos entre as multidões e discursos animadores de palco que geralmente começam aos cantos, nos quais os manifestantes se juntam alcançando tons que soam como gritos de guerra. Em alguns comícios as mulheres sobem ao palco para cortar o cabelo publicamente; outras vezes, as coleções de maquiagem são cerimoniosamente destruídas e jogadas em sacos de lixo.

Necessidade de organização somente para mulheres.

Os eventos do mundo real do assassinato de Gangnam Station e dos protestos de molka tomaram forma contra um cenário crucial na Web. A partir de 2015, uma guerra de palavras se desenvolveu entre homens e mulheres online, uma grande disputa surgiu quando o MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio) chegou à Coréia do Sul. No DC Inside Gallery, um popular fórum da Internet com milhões de usuários em todo o país, os usuários do sexo masculino começaram a nomear uma mulher coreana como Paciente Zero, alegando que ela visitou o Oriente Médio como prostituta e depois voltou para casa infectada. Outros homens participaram, escrevendo comentários como: “As mulheres coreanas deveriam estar mortas”, “As mulheres coreanas gastam dinheiro em vão” e “As mulheres coreanas são estúpidas e espalharam esse vírus”. Em resposta, as mulheres iniciaram seus próprios tópicos no fórum, discutindo essa misoginia aberta. Eventualmente, descobriu-se que o MERS havia sido de fato trazido para o país por um homem e as mulheres receberam os quadros de mensagens dos homens se justificando. Mas a misoginia não foi esquecida.

Em resposta, as mulheres criaram Megalia, semelhante ao Reddit, mas livre de misoginia. Megalia se tornou um espaço on-line para criar camaradagem entre as mulheres, com amizade e humor direto do coração. Tornou-se comum que as mulheres se chamassem de “vulvas” no site, dizendo coisas como: “Muito bem! Você é a vulva mais forte” ou “Idéia brilhante! Você é uma ótima vulva.” No entanto, Megalia tinha usuários do sexo masculino, e muitos dos administradores do site eram gays. Esses homens ostensivamente simpatizavam com a experiência da misoginia das mulheres no começo, mas depois que os tópicos de conversa começaram a discutir a misoginia dos homens gays e da cultura masculina gay (como drags), os comentários das mulheres começaram a ser removidos.

A moderação pesada do discurso das mulheres não surpreende muitas feministas no Facebook, Mumsnet e Twitter. As mulheres perceberam que, para ter discussões livres e justas sobre a realidade de suas vidas e a misoginia que observavam, precisariam de um espaço moderado por elas mesmas, sem administradores do sexo masculino. Essa experiência demonstrou a necessidade de uma organização somente para mulheres. As mulheres começaram a deixar Megalia em massa e, em janeiro de 2016, milhares haviam se inscrito em um fórum on-line chamado Womad, descrito por minhas entrevistadas como um espaço “feminista lésbico radical”.

A surpreendente prevalência do lesbianismo no movimento sul-coreano é um dos aspectos mais marcantes e significativos. Todas as ativistas feministas com quem falei nas mais de 40 entrevistas realizadas foram identificadas como lésbicas.

Na Coréia do Sul, o feminismo radical e o feminismo lésbico estão muito ligados, gerando o movimento “4 비”/“4B” (4 비 é aproximadamente pronunciado ao ouvido anglófono como “4B”). 4B é baseado em quatro regras que orientam o movimento feminista radical e atuam como um guia que as mulheres podem adotar para interromper o patriarcado e viver vidas mais seguras longe dos homens. Os princípios são, de grosso modo, não casar com homens, namorar com homens, fazer sexo com homens ou engravidar. Hoje, o movimento 4B tem cerca de 50mil seguidores.

Um estudo de 2016 revelou que 50% da população feminina na Coréia do Sul não vê o casamento como necessário — as mulheres, em particular, perceberam que é um negócio cru, levando o governo a agir. Em resposta às preocupações sobre o aumento da idade média da população e o declínio da taxa de natalidade, o governo sul-coreano encomendou uma série de novelas promovendo uma visão idílica do amor heterossexual romântico. Uma série de reality shows — Sinal do Coração; Nós nos casamos; Mesma cama, sonhos diferentes; e O retorno do super homem — foram contratados para incentivar o casamento e a reprodução. Essas séries tendem a seguir uma narrativa em progresso, na qual os casais heterossexuais expressam primeiro o desejo de um bebê, depois a concepção, a gestação e o nascimento, cada passo documentado e apresentado sob uma luz positiva.

Tire o espartilho

Entre o ano de 2015–2016 e 2017–2018, as mulheres coreanas gastaram 53,5 bilhões a menos em produtos de beleza e cirurgias plásticas, investindo em carros, optando pela independência invés da objetificação. Parte dessa rejeição cultural das práticas de beleza feminina foi estimulada pelo movimento 4B, além de “Take Off the Corset”. Inspirado no livro Beleza e Misoginia, de Sheila Jeffreys (traduzido em coreano como Corset: Beauty and Misogyny), esse movimento descreve a remoção do “espartilho” moderno: práticas de beleza como depilação, maquiagem, sapatos de salto alto, cirurgias cosméticas, cabelos longos, alimentação restritiva, regimes e etc. A Coréia do Sul possui uma indústria massiva de cirurgia estética, a intervenção cosmética mais popular para as mulheres é o procedimento de “pálpebra dupla” — uma operação que altera as pálpebras para que pareçam mais “ocidentais”. Semelhante ao clareamento da pele, essa prática com fins lucrativos é informada pelo racismo e pode levar a infecções pós-operatórias, perda de pálpebras, comprometimento da visão e até cegueira.

Muitos entrevistados referem o movimento como ponto de partida em sua jornada para o feminismo radical, dizendo: “Tirei meu espartilho em janeiro passado” ou “estou sem espartilho há dois anos”. Para as mulheres coreanas, o termo “folga” está ligado a Take Off the Corset — não faz referência a uma folga externa, contra o feminismo (como no Ocidente), mas a uma folga pessoal, na qual uma mulher se desvia da feminilidade. Uma mulher me disse: “Minha melhor amiga e eu tiramos nossos espartilhos em 2017, mas ela sofreu uma reação negativa e começou a usar maquiagem novamente por causa da pressão da família”.

Outros slogans predominantes em todo o movimento tendem a girar em torno do poder e da determinação das mulheres. Um grupo de entrevistadas assinou um cartão para mim com algumas delas, escrevendo: “Nos encontraremos no topo”, “Seja ambiciosa” e “Somos a coragem uma da outra”. Eu reconheci esses slogans imediatamente porque eles frequentemente aparecem nos perfis de ativistas nas mídias sociais. Uma chamada à ação recorrente e proeminente é: “Se não eu, quem? Se não agora, quando?”. Este slogan é parafraseado, emprestado de Hillel, o Velho (Pirkei Avot 1:14), uma famosa figura babilônica na história judaica.

Uma base histórica para a cultura centrada na mulher

Parte da razão pela qual o feminismo se desenvolveu como na Coréia do Sul é histórica e cultural. As mulheres com quem falei explicaram que, historicamente, não existe a mesma cultura de “cavalheirismo” masculina (polidez masculina e proteção social das mulheres) que há no Ocidente, o que significa que há muito menos pretensão sobre a dominação masculina. Durante o início da década de 1950, os soldados que lutavam na guerra da Coréia fizeram as mulheres passarem por minas antes de procurarem caminhos seguros e limparem bombas com seus corpos. Não há vergonha histórica em torno dessa prática. Perguntei: se o Titanic fosse coreano, haveria uma política de “mulheres e crianças primeiro” determinando quem entrava nos botes salva-vidas? Isso foi recebido com risadas estridentes e negações fortes. Uma entrevistada viu a ausência do cavalheirismo como uma tradução para menos gentileza dos homens, em termos de como o patriarcado se desenrola. Ao mesmo tempo, é menos provável que as mulheres sejam suscetíveis ao casamento porque os homens são muito mais claros, mesmo antes do casamento, sobre como as coisas serão desiguais. Não é que os homens coreanos se comportem de forma mais opressiva em relação às mulheres do que as populações masculinas no Ocidente, é apenas mais evidente e sem desculpas. Dado que o domínio dos homens é menos oculto, algumas entrevistadas argumentaram que isso permitiu às mulheres detectar as armadilhas do casamento e da domesticação com mais facilidade. O que significa que escolher se casar é muito mais claro.

Outra entrevistada explicou que, historicamente, era esperado que as mulheres trabalhassem em campos, muitas vezes mais que os homens; portanto, os homens eram menos vistos como provedores de riqueza material do que poderiam ser em outros lugares. As mulheres faziam o trabalho em casa e fora dela. O benefício econômico de um marido, mesmo que tenha um emprego, foi muito menor do que em outras sociedades em que as mulheres tradicionalmente não têm permissão para trabalhar ou têm acesso limitado ao mercado de trabalho. Historicamente, na Coréia, havia um sistema de classes muito rigoroso, e as mulheres não tinham oportunidades de se casar fora de sua classe, acessando assim maior riqueza material, como as mulheres de outros países. Com essa vantagem perdida, havia uma razão a menos para as mulheres verem o casamento em termos aspiracionais. Essas condições históricas combinam-se para produzir um conjunto particular de políticas sexuais na Coréia do Sul, o que significa que é comum as mulheres rejeitarem o casamento, pois há um benefício mais claro do que o cálculo de custos.

Outra razão pela qual houve espaço propício para um movimento de mulheres radicais prosperar, é porque há espaço um literal para isso. As universidades femininas foram criadas em todo o país ao longo do século passado, e a maioria das cidades abriga várias instituições somente para mulheres (algumas têm professores do sexo masculino e, às vezes, estudantes do sexo masculino de outras universidades podem fazer um curso no campus, mas há toques de recolher à noite, quando todos os homens devem sair). Nos prédios da união dos estudantes, não é permitido o ingresso de professores e familiares homens. Essas são uma zona de 24 horas apenas para mulheres.

Algumas universidades femininas foram protestadas por ativistas dos direitos dos homens (MRAs) segurando cartazes dizendo coisas como: “Mulheres, desistam de suas bolsas de luxo!”. Aparentemente, o feminismo se desenvolveu tão longe dos homens na Coréia do Sul que alguns homens não sabem ao certo o que as feministas estão exigindo, com os MRAs pedindo ironicamente que as mulheres parem de desperdiçar dinheiro com itens femininos caros. Enquanto isso, o movimento feminista radical está pedindo boicotes a qualquer negócio que use publicidade sexista e incentivando as mulheres a comer apenas em restaurantes pertencentes a mulheres, beber em bares pertencentes a mulheres e fazer compras em lojas pertencentes a mulheres, para que o dinheiro das mulheres vá para os bolsos de outras mulheres.

Enquanto as universidades femininas, elas emergiram de um sentimento cristão que considerava impróprio que mulheres solteiras se misturassem com homens, eles proporcionaram um terreno fértil para o feminismo florescer. Muitos desses campos são cercados por ruas que somente as mulheres frequentam, com lojas e cafés quase exclusivamente só de mulheres. Como resultado dessa norma cultural, a maioria das cidades possui pelo menos um ou vários bares exclusivos para mulheres (A Coréia do Sul ainda não foi capturada pela política de identidade de gênero, o que significa genuinamente somente para mulheres biológicas).

Marginalização inspira organização política.

O movimento 4B e as ideias feministas radicais se espalharam por toda a Coréia do Sul durante a última meia década, ocorrendo em diferentes cidades, apesar das diferenças de cultura e política.

Daegu, a quarta maior cidade do país, existe em forte contraste com sua capital, Seul. Daegu é, sem dúvidas, a cidade mais conservadora da Coréia do Sul, e apenas três em cada sete pessoas são do sexo feminino, devido ao aborto seletivo por sexo. Em Daegu, os filhos são tão desejados que, se uma família tem duas filhas seguidas, a segunda filha recebe frequentemente um nome que significa aproximadamente “Desejando um filho” ou “Por favor, um menino a seguir”. À medida que os homens superam as mulheres de quatro a três, a política sexual segue o exemplo. As mulheres que moram em Daegu me explicaram que, embora as mulheres em Seul possam chamar a polícia para denunciar violência doméstica, as mulheres em Daegu temem que a polícia fique do lado do agressor e até perpetue mais violência contra ela.

Apesar disso, as mulheres em Daegu são firmes. Elas falaram em se recusar a usar maquiagem, apesar de quase certamente resultar em falta de emprego. A cidade é mais pobre que sua vizinha Busan e Seul, ao norte, mas a maneira como as feministas de Daegu abordam o problema do desemprego devido à recusa de feminilidade é organizando-se. Eles formaram os “cartéis” das mulheres, reunindo recursos, vivendo juntas em moradias baratas e fazendo campanhas coletivas nas ruas para alcançar novas mulheres. Esses “cartéis” foram descritos para mim como grupos organizados, mas com estruturas flexíveis, abertas e focados no alcance. Isso contrasta com o que vemos no Ocidente, onde o feminismo radical tende a florescer por meio de pequenos grupos de amigas/amantes que operam juntas como uma rede privada, invés de se organizar principalmente em torno de alianças políticas e se engajar em campanhas e recrutamento público.

A Coréia do Sul tem a maior disparidade salarial entre homens e mulheres de todos os países da OCDE (os 37 países mais ricos) em todo o mundo (segundo o PIB), com as mulheres ganhando, em média, um terço a menos que os homens. Enquanto feministas no Ocidente que têm empregos, propriedades e famílias que as apoiam, e que não enfrentam discriminação direta por recusar práticas femininas, dirão que não podem ser abertamente feministas radicais devido à precariedade financeira e ao medo de represálias, mulheres em Daegu — cujo a renda é precária, que vive em uma cultura dominada por homens, persistem. A experiência de conhecer feministas em Daegu enfatizou que a insegurança social e econômica não precisa prejudicar nossa disposição de falar sobre questões feministas. Possivelmente, o status econômico mais elevado das “feministas radicais” no Ocidente — que têm mais a perder (carreiras profissionais, respeitabilidade, status, dinheiro) — impulsiona o anonimato online e o silêncio na vida pública.

Na Coréia do Sul, a legislação atual permite que uma mulher faça um aborto somente se tiver consentimento de um parente masculino ou de seu namorado, marido ou parceiro. Se uma mulher consegue obter um aborto sem a permissão de um homem (por ter o aborto no exterior ou por ter um amigo homem que se passou por seu namorado, por exemplo), ela enfrenta um julgamento e uma prisão ou uma multa de quase 2mil doláres.

As feministas lutaram muito para mudar essa lei e, em abril, o Tribunal Constitucional da Coréia do Sul decidiu que a lei torna o aborto um crime inconstitucional. O tribunal deu ao Parlamento até o final de 2020 a implementação da nova lei, uma vitória óbvia para o movimento.

Em fevereiro, o Partido das Mulheres se formou, conquistando 8mil membros até março — número que agora aumentou para 10mil. O partido tem como objetivo representar o interesse de todas as gerações, e possui cinco líderes, cada um de uma década diferente: uma adolescente, depois uma mulher de 20, 30, 40 e 50 anos. Embora o partido tenha conseguido mais de 200mil votos, não conseguiu ganhar nenhum assento. No entanto, o Partido das Mulheres conta com grande apoio de mulheres jovens em particular, que, diferentemente do Ocidente, são as maiores defensoras do feminismo radical. Teoricamente, estima-se que 60mil meninas poderiam ter votado no Partido das Mulheres, se não fossem menores de 18 anos.

Mudar o idioma muda a cultura

Em resposta aos recentes ganhos feministas, os ativistas dos direitos dos homens sul-coreanos que se opõem ao novo movimento feminista mudaram de tática e começaram a afirmar que simplesmente querem “igualdade”, em vez da exclusão “violenta” e do preconceito que eles dizem que o feminismo radical exige. Essa adoção da retórica liberal é notavelmente semelhante à dos ativistas trans no Ocidente que se opõem à priorização das mulheres no feminismo. Os homens na Coréia do Sul são relativamente organizados e às vezes agem. Jae-gi foi um homem que criou um site da MRA. Ele pulou de uma ponte para demonstrar a situação dos homens devido ao feminismo, acidentalmente acabou se empalando pelo ânus em uma espiga sob a água e morrendo. Jae-gi tornou-se um verbo que significa suicídio masculino, e as feministas dizem aos ARMs: “vá você mesmo Jae-gi”, significando basicamente “foda-se e morra”.

Isso pode parecer duro, mas é um exemplo de “espelhamento”, uma tática em que as mulheres empregam reversões de linguagem e jogo de palavras exclusivo do idioma coreano. A criação de verbos como “Jae-gi” é uma resposta direta aos abusos verbais e físicos que as mulheres sofrem online e na vida real nas mãos dos homens.

Com mais de um milhão de palavras, o vocabulário coreano é duas vezes maior que ao inglês. As regras gramaticais coreanas permitem a fácil criação de novas palavras e expõem como a linguagem é usada para reprimir as mulheres. A palavra “pais” em coreano é ‘부모님’ (bu-mo-nim) — “bu” significa pai e “mo” significa mãe, colocando o pai em primeiro lugar porque o homem é considerado mais importante. As feministas coreanas começaram a usar o termo ‘mo-bu-nim’, mudando a ordem, de modo que “mãe” vem em primeiro lugar. A palavra “carrinho de bebê” em coreano é ‘유모차’ (yu-mo-cha) — “yu” significa criança, e “mo” significa mãe e “cha” significa cadeira de rodas, que comunica que cuidar de crianças é reservado para mães. As feministas mudaram a palavra para “유아 차” (yu-ah-cha) — “yu-ah” significa criança pequena, então a palavra “mãe” é removida e a palavra agora significa “cadeira de rodas infantil” (aproximadamente semelhante à termo britânico “carrinho de bebê”). Ajustes como esse são possíveis para muitas palavras, permitindo que os significados sejam alterados.

O termo “6.9” (literalmente os números 6.9) é outro exemplo de mulheres espelhando e respondendo a uma cultura que valoriza as mulheres de acordo com o tamanho de seus corpos. “6.9” refere-se ao comprimento médio do pênis (em cm) de um homem coreano. Usar o termo nos perfis de mídia social ou ao responder a discussões com homens é uma maneira de os envergonhar, pois as mulheres se envergonham quando os homens discutem o tamanho de seus seios ou outras partes do corpo e menosprezam o poder que acreditam ter devido ao pênis.

Infelizmente, também existem novas adições misóginas ao idioma, graças a comunidades on-line masculinas como o ILBE, onde homens compartilham fotos de mulheres de suas famílias nuas, para obter uma “moral” social e “likes”. Os usuários criaram expressões como “As mulheres devem ser atingidas a cada três dias como peixe seco para torná-las mais deliciosas” e “Coloque uma lâmpada dentro da vagina e quebre”, que desde então entrou no vernáculo popular.

Esse tipo de expressão é considerado banal na Coréia do Sul; portanto, jovens feministas coreanas desenvolveram uma nova linguagem em resposta, redefinindo termos anteriormente sexistas.

Feministas radicais reimplantaram estrategicamente o termo “feminino” para significar mulheres fortes, poderosas e ambiciosas. Elas também redefiniram “masculino” para implicar ciúme, magreza, juventude e desejo de se decorar. O espelhamento lembra às pessoas quantos termos sexistas eles usam diariamente, mesmo sem perceber, mas também gera uma forte percepção negativa das expressões sádicas em relação às mulheres e as reverte através do humor. Com a “feminilidade” redefinida, as mulheres coreanas buscam características como força e excelência, se concentrando no auto desenvolvimento para alcançar suas próprias ambições. O espelhamento é uma maneira pela qual as mulheres usam a linguagem para tirar o controle dos homens.

Um modelo para o Ocidente.

O movimento feminista sul coreano se desenvolveu a partir de condições particularmente misóginas, em comparação com o Ocidente, combinado com melhores oportunidades de organização política, criando uma situação em que uma ação radical era necessária e viável. Essas circunstâncias contraditórias únicas produziram condições sociais em que a ação radical das mulheres era possível e urgente.

Não há um acordo total dentro do movimento feminista sul-coreano, mas o que o distingue do Ocidente é que as diferenças são discutidas — não apenas online, mas na vida real — o debate direto não é considerado uma força destrutiva a ser evitada a todo custo, mas é aceito como uma parte necessária da política. Por causa da presença desse movimento real e próspero, existe maior compartilhamento e cooperação.

As mulheres do Ocidente podiam aprender muito com nossas irmãs coreanas: sua capacidade de se organizar coletivamente; seu foco crucial na política, inventividade e engenhosidade; e, talvez mais significativamente, a prática de levar a política às ruas.

--

--