Livestreaming — o direto e instantâneo da web

José Soares
MCTW_TDW
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9 min readJul 25, 2022

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Exemplo de uma livestream e do setup da mesma (fonte: foto de Jesus Loves AustinUnsplash)

Consumir algo em tempo real é claramente uma experiência única e singular, como ver uma peça de teatro ao vivo e não uma gravação dessa mesma peça. O instantâneo, a imprevisibilidade, o improviso, e principalmente a audiência, todos estes aspetos constituem a magia real, do que está vivo, do que está a acontecer em direto, naquele preciso momento.

O consumo de conteúdo instantâneo foi sempre a norma para a humanidade, o teatro, o debate, a música, a narrativa de uma história de adormecer e muitos outros exemplos, são nos familiar e aconteceram durante séculos. Ora com a evolução tecnológica que foi ocorrendo durante o passar dos séculos, principalmente no século XX, a forma como passamos a consumir conteúdos mudou drasticamente. As histórias passaram a ser imprimidas nos livros, o teatro passou para dentro da tela do cinema ou da televisão de casa, as notícias eram narradas na rádio, a música foi encapsulada em cassetes ou discos, entre tantos outros exemplos. Quer sejam educativos, performáticos ou até jornalísticos, os diferentes conteúdos são transformados em vídeos que podem ser visualizados a qualquer hora e lugar graças a todas as tecnologias que existem atualmente.

Pintura demonstrativa de várias peças de teatro de Shakespeare (fonte: Wikipedia — The Plays of William Shakespeare, John Gilbert)

Todas estas tecnologias, quer seja o hardware dos nossos dispositivos que permitem o armazenamento e processamento de todos bites necessários para gravar estes conteúdos ou toda a rede da internet, onde a web reside, que permite toda a propagação destes vídeos, transformaram completamente como consumimos estes conteúdos.

Claro, continua e continuará sempre a existir o conteúdo ao vivo, quer seja o teatro, a música, a performance artística ao vivo, entre outros. Porém, também este conteúdo vivo está a mudar, pois acabamos por consumi-lo ao vivo a partir dos nossos dispositivos, na web, a partir de diferentes plataformas e aplicações.

Refiro-me ao conceito de livestream, a transmissão de uma performance a partir da internet, da web que ocorre nas telas de todos os nossos dispositivos tão familiares, como o nosso telemóvel, o computador ou até a própria televisão. Tendo em conta a evolução da internet, seria de esperar a transição do direto da nossa televisão e do rádio a partir das ondas hertzianas passar para os nossos telemóveis ou computador graças ao movimento de bytes que ocorre em toda a infraestrutura que torna a internet possível. Inicialmente, o conceito começou a ser teorizado no final do século XX.

Já no início do seculo XXI foi quando o conceito ganhou mais tração e foi experimentado em diferentes contextos e plataformas na internet. As primeiras experiências focaram-se, quase exclusivamente em concertos de bandas de música. Foi um grupo de cientistas, em 1993, que pertenciam à PARC — uma empresa de desenvolvimento e investigação em Palo Alto, California, pertence à empresa Xeroc — que plantaram as sementes para estas transmissões. Um dos membros deste grupo era baterista da banda Severe Tire Damage e, por este motivo, o grupo decidiu experimentar tentar transmitir ao vivo, vídeo com áudio, uma performance da banda com a nova rede, Mbone, que desenvolveram. Resultado, para transmitir uma performance era usada metade da bandwidth de toda a internet naquele momento. A partir desta experiência o grupo fez mais transmissões ao vivo de performances da Severe Tire Damage, mas, também chegaram a fazer uma livestream de um concerto dos Rolling Stones.

Deixo aqui um vídeo abaixo que explica com mais detalhe toda esta história com alguns destes cientistas.

Documentário a retratar a história de livestreaming na internet (fonte: InterWorking Labs via vimeo)

Mais tarde, nos finais do século XX (1995–2000), a empresa RealNetworks investiu neste tipo de transmissões ao vivo e desenvolveu um player, de áudio e de vídeo, para transmitir este tipo de conteúdo. A empresa chegou a a fazer uma livestream de um jogo de baseball e, mais tarde, acabou por lançar um programa, RealVideo, cujo objetivo era comercializar livestreams. Contudo, apesar desta aposta as transmissões ao vivo na internet não conseguiram tornar-se mainstream, eram sempre vistas como algo novo e como um nicho.

Outro marco importante foi a primeira livestream presidencial de 1999, onde Bill Clinton falou para o país na universidade de George Washington, sendo que esta transmissão pressupunha já um algum tipo de interação visto que a audiência podia submeter questões online podendo receber respostas das mesmas a partir do presidente.

Foi só a partir de 2008, sim, só passado vários anos, que livestreaming começou a ganhar tração e mais adoção pelos navegadores da web. Mas o que aconteceu em 2008? Inicialmente, o lançamento do Youtube Live, o investimento do Youtube neste universo. A empresa fez um grande e extenso evento com imensas celebridades, música, dança, humor, competições etc. Ainda é possível visualizar a totalidade do evento, agora em arquivo, a partir do seguinte link. A verdade é que o Youtube não permitia qualquer utilizador realizar uma livestream, era o próprio Youtube que fazia hosting de eventos específicos, como um concerto dos U2 em 2009 ou então uma sessão de Q&A com o presidente dos EUA Barack Obama em 2010. Apesar de não existir uma concorrência gigante no setor, o Youtube acabou por ser ultrapassado visto que demorou ainda alguns anos até desenvolver todo o modelo de negócio e a tecnologia de livestreaming na sua plataforma.

É verdade, ainda não abordei como funciona uma livestream, como, tecnologicamente acontece este fenómeno. Bem, nesta altura a internet e as capacidades da mesma já permitiam um maior processamento de informação e transmissão dessa mesma informação para os seus navegadores. Para explicar melhor como tudo funciona, desde a compressão, encoding de vídeo e áudio e decoding dos mesmos, até ao player que aparece no nosso browser, vejam este artigo detalhado publicado pela Cloudflare.

Mas voltando ao raciocínio anterior, entretanto, nestes lentos anos de transição e investimento (e um pouco antes), surgiu a Justin.tv, o projeto de um jovem entrepeneur, Justin Kan e os seus colegas de quarto. A plataforma teve os seus altos e baixos no que toca ao seu sucesso, problemas legais, segurança e reveneue, mas, a plataforma estava a estagnar (deixo um artigo que conta detalhadamente todo este percurso abaixo).

Foi só, em 2011, com a criação do Twitch.tv, um local dedicado a livestreams de videojogos e aos esports, que Justin Kan e os seus colegas começaram o boom do livestreaming que hoje conhecemos. O Twitch demonstrou ser o caminho certo para o sucesso das transmissões ao vivo, com um modelo de user-generated content e um modelo de negócio acertado, a plataforma cresceu exponencialmente nos seus primeiros anos, batendo imensos recordes ao longo dos anos. Com todo este sucesso e, principalmente dinheiro e tráfego, o setor de livestream começou a ganhar muita tração. Várias empresas começaram a investir e entrar na corrida neste setor (como por exemplo o Yotube ou o Facebook) e outras tantas investiram em formas de marketing diretamente com as plataformas ou com os criadores de conteúdos, deixo alguns exemplos abaixo, só para perceberem do que estou a falar.

Voltando ao Twitch, todo este sucesso num curto período de tempo acabou por levar a colossal Amazon a adquirir a empresa, criando uma nova jornada para o Twitch e para o setor de livestreaming.

Nos dias de hoje as livestreams já fazem parte do dia-a-dia de qualquer utilizador da web, está a acontecer uma em todas as redes sociais que conhecemos e não é muito difícil encontrá-las. O panorama de oferta é muito vasto, existindo plataformas para necessidades e públicos-alvo específicos. Quer sejam as redes socias que já conhecemos o Youtube, Facebook, LinkedIn, Reddit etc. ou plataformas concebidas para nichos como o Twitch, a Steam ou o Discord, para os gamers, Behance ou Picarto (potencialmente NSFW) para os artistas transmitirem ao vivo a sua arte e o processo de criação da mesma, o Mixcloud para os músicos poderem, em direto e sem preocupações, mostrar a sua música. Claro, também é de referir ainda algumas plataformas pornográficas que tornaram o conceito de webcaming relevante como o Chaturbate ou o Onlyfans (NSFW). Aqui em Portugal convém destacar o RTP Play, a plataforma de livestreaming e de arquivo do canal público português.

Três das maiores plataformas de livestreaming atuais. Da esquerda para a direita: Yotube, Twitch.tv, Facebook Live Gaming (fonte: streamscheme)

O que não faltou também foi um crescimento no leque de empresas que oferecem soluções de livestreaming, desde o pacote completo com software, hardware e recursos humanos ou então só uma API ou o software para fazer uma destas transmissões ao vivo.

Vários estudos estimam que este setor continuará a crescer (atualmente está a a crescer) cada vez mais nos próximos anos sem sinais de abrandamento. Claro, convém referir que a pandemia Covid-19 teve um papel crucial ao alimentar e criar números astronómicos e nunca antes vistos nestas plataformas desde 2020. Dito tudo isto, não é de admirar que, atualmente, as transmissões ao vivo na internet já causaram um grande impacto nos seus hosts e audiências e, claro, consequentemente nas nossas sociedades. As livestreams podem tornar sonhos realidades, vender produtos, providenciar empregos, ajudar empresas, dar horas infindáveis de todo o tipo de entretenimento, ensinar novas competências às audiências, criar relações virtuais saudáveis ou parassociais e tantas outras coisas, criar comunidades etc.. Existem imensos artigos e documentários que abordam todo as complexidades, nuances e novidades deste universo e as implicações do mesmo nas nossas vidas, deixo aqui alguns dos exemplos com os quais me deparei e adorei:

A partir só dos títulos e temáticas dos itens da lista acima, livestreaming nos dias de hoje, é realmente algo único, bizarro para uns, fantástico para outros mas sobretudo algo em constante mutação, algo vivo.

Concluindo, espero que o artigo tenha sido relativamente interessante e esclarecedor e, quem sabe, não nos encontremos por aí algures no chatroom de uma livestream algures na web. 👋

Fontes utilizadas, pesquisadas e usadas como inspiração para escrever este artigo:

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José Soares
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A Communication and Web Technologies master’s student in University of Aveiro — know more about me at https://josepsoares.vercel.app