Em entrevista ao jornalista Helder Ferreira, o psicanalista Christian Dunker reflete sobre o que o futuro reserva para a geração que carrega consigo as vantagens — e as pressões — de representar o novo

Nos últimos 20 anos, a geração millennial — grupo de pessoas nascidas entre 1981 e 1995 — tem estabelecido ‘novos normais’ para diferentes faixas etárias: os 20 viraram uma espécie de nova adolescência; os 30, uma ‘entrada-real-oficial’ na vida adulta; os 40 são os mais velhos, e por aí vai. Este parece ser só o começo.

Com os avanços da medicina e da farmacologia, a tendência é que essa geração e as próximas cheguem, em grande número e com melhor qualidade de vida, aos 70, 80, 90 e, até mesmo, aos 100 anos. Na entrevista abaixo, Christian Dunker, psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, nos ajuda a entender os caminhos e implicações deste futuro não tão distante, em que estamos prestes a redefinir o que significa ser idoso.

Falsa profecia

Os millennials formam uma geração nascida numa época em que a gente tinha uma grande esperança no futuro e havia um sentimento de que um novo mundo estava se abrindo. Entretanto, eles se viram confrontados com uma mudança de realidade. As promessas sociais não se cumpriram para todos os grupos, mas as pessoas dessa faixa etária representavam a mudança e estavam associadas ao novo. O novo que dá a sensação de nunca ter acontecido, de que a vida, o outro e o destino haviam prometido a elas e não lhes foi entregue. E isso, psiquicamente, é uma espécie de tragédia, de má profecia — faz com que a pessoa se sinta como uma impostora, alguém que está em déficit com seu glorioso destino prometido. Isso traz consigo uma outra maldição: é impossível envelhecer dessa forma. Como se vai envelhecer quando isso é, em certa medida, aceitar uma espécie de negociação do desejo com a realidade, aceitar que não deu muito certo?

Desejar e fracassar

Por isso, para essa geração também é difícil confessar o que quer. Quando eu anuncio o que desejo, antes preservado, anuncio também a condição do meu fracasso. Por exemplo: quero entrar na faculdade, mas não entro, e os outros estão vendo que não consegui. E esse olhar do outro, no fundo, é tão devastador porque confirma aquela experiência que o sujeito já está tendo. É muito ruim não poder envelhecer. É muito ruim não poder separar-se de um certo tipo de narcisismo, que a gente tem quando a vida é ainda um processo de aquisição e não de perdas, de saídas, de mais autocompreensão. Essa é uma lição de envelhecimento, é o que falta para os millennials, mas ainda dá tempo.

Novo velho

As expectativas para essa geração, que será mais longeva, são elevadas. É mais uma vez a maldição de representar o novo, mas agora o novo velho. O que isso significa? Uma velhice com a sexualidade ativa, dados os recursos e meios para isso. Mais uma fase produtiva na qual muitas pessoas que deixaram de lado os desejos primários para empreender trajetórias de sucesso talvez se reconciliem com isso e inventem formas de viver diferentes. Uma velhice menos solitária, que repare a própria experiência desta vida.

Morte do herói narcísico

A velhice é um momento de saneamento estrutural do narcisismo no qual passa­mos a nos importar menos com certas coisas, como a qualidade do nosso vestir, da nossa imagem. Isso acontece porque percebe­mos que vamos perder a batalha: as rugas aumentam, ficamos menos dinâmicos, perdemos força; algo no cor­po nos diz para aceitar que somos só esse ser — para o bem e para o mal. Isso pode gerar nos millennials um aumento de re­lações interpessoais, as quais foram impe­didas pela dinâmica do grande herói nar­císico, que consegue tudo sozinho na vida e está no topo de um pedestal en­quan­to os outros, os comuns, estão ba­ten­do palmas para ele. Essa narrativa deverá ser enterrada pra termos uma nova versão.

Tempo para o fim do mundo

É mais fácil a gente imaginar o fim do mundo do que uma mudança nos nossos modos de produção e consumo. E, de fato, é possível que exista uma confrontação forte dessa temática entre os millennials e a Gen Z. Ela já nasce e se estabelece ciente dos perigos, além de não ter uma promessa gloriosa de realização. Não. Ela nasce sabendo que a internet é perigosa, conhecendo os riscos do bullying digital, o caos das fake news, o problema da pós-verdade.

Do individual ao coletivo

Isso sugere conflitos geracionais. Pro­mete ser muito interessante esse futuro, porque vai, de um lado, puxar para estruturas de emancipação. Ima­gino que vão surgir lugares de encontro e paquera de idosos, além de comunidades, lares e clubes para esse grupo. Ou seja, uma vida social mais visível, mais organizada institucionalmente.

Sobre envelhecer

Acho que vão surgir novas narrativas sobre o envelhecimento, com as pessoas contando suas histórias de vida. E também vamos ter um público mais interessado nisso. Os filósofos estoicos, como Marco Aurélio e Sêneca, que voltaram à moda, diziam que a filosofia começa depois dos 60. Antes, o indivíduo precisa pagar contas, criar filhos, comprar coisas, se mostrar pro mundo. A hora em que o sujeito entende que isso aqui acaba, começa a conversa séria.

“Vão surgir novas narrativas sobre o envelhecimento, com as pessoas contando suas histórias de vida. Vamos ter um público mais interessado nisso” — Christian Dunker

Velho rico, velho pobre

Esse é outro aspecto que vai se tornar dramaticamente conflitivo. Quem tiver recursos para cirurgias plásticas, manutenção de medicação e de todos os sistemas de suporte, chamado de ‘enhanced’ — não só reparam o que a pessoa perdeu, mas aumentam a potência muscular, sexual, estética — vai envelhecer de outro modo. E isso vai produzir um incremento da divisão de classes. Então, o envelhecer pobre vai ser muito, mas muito diferente do envelhecer rico.

No divã

Freud dizia que não valia muito a pena fazer psicanálise na velhice. Eu discordo totalmente: adoro os meus velhinhos. Não é mais ‘psicanálise Nutella’ quando você quer saber o que fará com os 10 ou 15 anos de vida que lhe restam. O que é uma vida, do que ela foi feita, quais foram as escolhas que fizeram diferença, como quero contá-la e fazer ajustes com os fantasmas que ficaram pelo caminho? Os temas são os de sempre, mas levados mais a sério. Isso é fantástico! Quando não é só um processo rememorativo, mas, sim, um balanço comprimido para tomar decisões fundamentais, talvez as últimas. Quando a vida adquire uma relação de seriedade com o desejo. É isso mesmo que deveria ser desde sempre, mas aí a realidade está dando uma ajudinha pra gente chegar lá.

✍ Helder Ferreira

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