“Bacurau”, película-prima de Kleber Mendonça Filho, alça o voo mais alto e resistente no cinema nacional

Premiado em Cannes, Munique e Lima, o filme dos diretores pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles estreia no circuito brasileiro como um dos lançamentos mais aguardados do ano

Uma das cenas do longa “Bacurau”. (Crédito: Divulgação/Vitrine Filmes).

“Uma das maiores armas da população de ‘Bacurau’ é a identidade e o respeito às diferenças, o reconhecimento de que estamos caminhando para a mesma direção, que é a nossa maior riqueza do Brasil. O longa é sobre reconhecer as dificuldades e ver os semelhantes da sua população como parceiros de uma caminhada, de uma grande jornada. Para mim, a maior arma de Bacurau é a identidade”, disparou em coletiva de imprensa Wilson Rabelo, que dá vida a Plínio no premiado longa-metragem dos diretores pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, “Bacurau”.

Professor Plínio, interpretado por Wilson Rabelo. (Crédito: Divulgação/Vitrine Filmes).

Se você gosta de títulos, aliás, é importante dizer que a obra venceu o prêmio do júri no prestigiadíssimo Festival de Cannes deste ano e o prêmio de melhor filme na principal mostra do Festival de Cinema de Munique, na Alemanha.

Elenco de “Bacurau” em Cannes. (Crédito: Reuters/Stephane Mahe).

É indiscutível: a película com Sônia Braga como Domingas, Udo Kier como Michael, Bárbara Colen como Teresa, Karine Teles como forasteira de moto, Silvero Pereira como Lunga e mais uma porção de gente talentosíssima é, coincidentemente — por causa do seu ano de lançamento — , uma das produções mais políticas que já se viu no cinema nacional e entra em cartaz nas telonas brasileiras nesta quinta-feira (29/8).

“Uma das maiores armas da população de ‘Bacurau’ é a identidade e o respeito às diferenças, o reconhecimento de que estamos caminhando para a mesma direção, que é a nossa maior riqueza do Brasil.”

O filme é uma produção franco-brasileira que mescla drama, faroeste, terror gore, fantasia, suspense e ficção científica. A trama premonitória é cuidadosamente costurada a partir da morte de Dona Carmelita. Dias depois, os habitantes percebem que a comunidade desapareceu da maioria dos mapas e uma série de acontecimentos estranhos começa a assustá-los.

Um adendo: a matriarca é interpretada pela rainha Lia de Itamaracá — que recebeu recentemente o título de doutora honoris causa por ter dedicado sua vida ao desenvolvimento da educação e da cultura de Pernambuco no meio do sertão brasileiro.

A gente saiu do mapa

As precariedades da vivência dos habitantes da comunidade de Barra, em Parelhas, Rio Grande do Norte, onde o filme foi rodado há pouco mais de um ano, vão da crise hídrica à falta de sinal de internet. O desaparecimento dos habitantes dos mapas digitais coincide com a dos habitantes na visita do prefeito à cidade, mas mesmo com todas essas instabilidades econômicas, sociais e políticas, Bacurau existe ainda num mapa de lousa do professor Plínio,(r)ex(s)iste e se mantém unida. Ah, é importante ressaltar aqui que os habitantes da comunidade de Barra atuam com a excelência de atrizes e atores — até mesmo os mirins — de longa data. Isso aconteceu porque a generosidade, a troca e a preparação corporal dos atores foram maiores que os 800 empregos, diretos e indiretos gerados com a sua produção.

“O lugar que a gente foi é assim. Bacurau existe. O nome Bacurau é nosso, mas aquele lugar existe. Pra você ter ideia, a gente rodou aproximadamente 11 mil km fazendo pesquisa de locação para achar o lugar perfeito pro filme”, conta o diretor Juliano Dornelles. Bacurau significa um pássaro com hábitos noturnos conhecida como curiango, ju-jau, amanhã-eu-vou, mede-léguas ou acuranã, que habita o nordeste e outras regiões brasileiras, o sul do México e o norte da Argentina. Também é uma forma de se chamar os últimos ônibus da madrugada ou pessoas que gostam (e saem) na noite. Quando Karine Teles, que interpreta a Forasteira, diz ‘passarinho’, ela é repreendida por uma das moradoras que insiste em dizer pássaro, num diálogo bem direto e avassalador.

É tudo sobre história

As referências históricas, culturais e sociais usadas na construção do roteiro vibram pelas telas. Não é spoiler dizer que uma analogia com a última foto de Lampião, Maria Bonita e Corisco e seu bando é feita num tom premonitório e sentencial; que o museu da comunidade localizado dentro da casa de uma senhora é filmado várias vezes pela sua infinidade de riquezas como recortes de jornal, fotos, pequenos armamentos; que onde os armamentos mais pesados são guardados é num esconderijo como no Gueto de Varsóvia. Isso sem contar uma série de outras indiretas que o espectador captará durante as 2h12 de filme.

Funeral de Dona Carmelita. (Crédito: Victor Jucá/Vitrine Filmes).

Sobre o mergulho cultural feito pelos diretores, Juliano é enfático: “‘Bacurau’ é um filme sobre histórias, nunca conseguiu deixar de pensar e de falar sobre história. Não só a história Nordestina ou a história do cangaço, mas a história dos conflitos dessa cidade que as vezes o ser humano pensa em julgar o outro. Essa iconografia é a nossa iconografia.”

O ator Silvero Pereira protesta montado de drag contra a censura em premiére de lançamento de “Bacurau” no Rio de Janeiro.

Juliano também conta sobre os acontecimentos que provaram aos diretores estarem no caminho certo. “Numa dessas viagens a gente foi convidado por uma senhora, em um lugarzinho como aquele, a conhecer um museu, e espertamente a gente topou. E a gente entrou, mas essa cena já tinha sido escrita no roteiro. Só que o museu era dentro da casa dela, numa de suas paredes da sala, com recortes de jornal e objetos antigos. Estava lá a iconografia daquela senhora sertaneja. Mas vou te contar uma história que vai responder tudo. A gente estava num povoado oito vezes maior que Barra, mas ainda sim minúscula. Lá tinha uma praça bem organizada, com árvores e bancos e um busto. Aí a gente já imagina que deva ser um coronel ou prefeito ou um fazendeiro qualquer, um homem… buchudo. Quando nos aproximamos vimos que era uma mulher de óculos. Lemos a placa e era uma professora. Não vou lembrar o nome, mas era uma professora. Por isso Bacurau não é uma invenção, Bacurau é uma confirmação”, enfatiza.

A parceria dentro da arte e a arte como ferramenta de transformação social

Sônia Braga como a médica Domingas, Udo Kier como Michael. (Crédito: Divulgação/Vitrine Filmes).

Mesmo sem o protagonismo de Sônia Braga como aconteceu no filme “Aquarius” com a personagem Clara — a dobradinha da atriz com o diretor Kleber Mendonça Filho permanece impecável. “Lembro que fiz o convite e logo depois que a Sônia leu o roteiro, me mandou um áudio com a voz da médica Domingas. A gente tava dando um rolê no Instituto Moreira Salles da Paulista. Tava todo mundo [conta olhando para a produtora Emilie Lesclaux e para Juliano] junto e vibrou muito”, acrescenta Kleber. É a segunda vez que ele e Juliano trabalham juntos aliás, a primeira também foi no longa com Sônia, que marcou o retorno retumbante da atriz paranaense ao cinema nacional.

Sônia reitera a importância da arte como catalisadora de transformações sociais necessárias na sociedade. “Até hoje recebo mensagens da galera falando que a estrada foi consertada, que está todo mundo doido para ver o filme, enfim. Foi uma relação muito bonita, muito generosa que conseguimos estabelecer. Nós não fomos lá só para gravar o filme, a gente quis gravar e fazer com eles”, conta. No último dia 22 de Agosto, uma sessão reuniu 2 mil pessoas, além do elenco com e os diretores no povoado de Barra, em Parelhas, onde o filme foi rodado. “O filme foi pra Cannes, mas ele precisa voltar pro seu lugar de origem também, porque a gente trocou muito lá. E quando falamos que ia ser exibido, recebemos um monte de mensagens das pessoas muito felizes, querendo se ver na tela”, conta a atriz.

Ainda na coletiva de imprensa, Sônia disse que a obra ambientada no calor do sertão vem para umedecer os debates. “Quando chegamos com ‘Aquarius’ depois de Cannes [festival], o Brasil estava completamente dividido. ‘Bacurau’ vem para abrir uma discussão. Para que a gente volte a conversar. Para que a gente encontre um caminho. Rápido. Porque se não encontrar, o mundo acaba em dez anos”, clama.

“A mudança acontece a partir do ponto que as pessoas decidam deixar de ser indivíduos, passam para o lado e percebe que vivem em sociedade. O Brasil é muito maior do que os opressores. Nós somos um país de oprimidos e merecemos respeito.”

A crítica ao governo e ao sistema

A preciosidade cinematográfica vem para reacender a chama de um faroeste brasileiro e na construção complexa e contundente dos personagens. Um deles e talvez o mais expressivo é Lunga, interpretado por Silvero Pereira, que transita entre o bem e o mal e representa com a transgressão de gênero e a bravura o que seria o movimento cangaceiro do século 21.

O ator Silvero Pereira em cena como Lunga. (Crédito: Divulgação/Vitrine Filmes).

“É muito importante que tiremos a responsabilidade dos artistas de transformar. A nossa questão é de ampliar o pensamento, questionar, provocar. A mudança acontece a partir do ponto que as pessoas decidam deixar de ser indivíduos, passam para o lado e percebam que vivem em sociedade. O Brasil é muito maior do que os opressores. Nós somos um país de oprimidos e merecemos respeito”, comentou Silvero Pereira.

A fotografia também cumpre o papel de ambientar e mostrar o que caracteriza aquele ambiente para além dos cactos imensos. A primeira vez que Lunga aparece nas telonas, ele está fitando seus próprios olhos através de um espelho, num gesto simples e extremamente observador de si mesmo – como se questionasse sempre a identidade e a forma de seu corpo. Silvero ainda disse que vê em Lunga um herói, mas um herói justificado por todo sofrimento e precariedade. Um herói que não teve outra escolha a não sê-lo.

Apesar de todas as críticas sociais permearem a narrativa e saltarem aos olhos de quem vê, em nenhum momento o sertanejo é colocado como vítima, reafirmando a máxima do jornalista e escritor Euclides da Cunha em “Os Sertões” de que “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”.

A atriz Bárbara Colen dá vida à Teresa. (Crédito: Divulgação/Vitrine Filmes).

A atriz carioca Karine Teles classifica “Bacurau” como um dos milagres da arte, primeiro por ter sido pensado e gestado num mundo e num país que se transformou completamente. “Não tinha como prever o que ia acontecer, mas a arte tem essa dádiva, essa coisa incrível de fomentar uma relação com o que estamos assistindo para chegarmos a conclusões, perceber coisas, aprender, desmistificar conceitos enfiados na sua cabeça e que não concordamos.”

Karine acredita que a crítica está na gente e que nos apoiamos nas nossas referências para reafirmarmos a revolta imensa de perder direitos. “Não podemos perder direitos construídos ao longo de tanto tempo e às custas da vida de tantas pessoas. Temos esse privilégio de estarmos aqui podendo lançar um filme feito dentro de um sistema lindo de apoio à cultura. Sem o apoio do Estado a cultura acontece, mas com muito mais dificuldade. A cultura é essencial, ela não é luxo ou supérflua, sem cultura a gente não é ser humano”, defende Karine.

Kleber disse explicitamente que não faz filmes com mensagens, talvez seja porque as mensagens, juntas já são o próprio filme. É por isso que “Bacurau” é um catalisador de mudanças, é uma faísca revolucionária. “Esse processo de evolução é longo. E vai ser bonito presenciar esse encontro de estar numa sala de cinema com outras pessoas e sentir essa energia que faz você ver um filme que te movimenta, que te faz pensar. Sinto que isso já está acontecendo e acredito que vai ganhar força quando o filme entrar nas salas de cinema. Isso que a gente mais espera na arte, a gente faz pro outro, pro outro pensar, sentir”, completa Karine.

O som ao redor é o mesmo som de dentro

Assim como em “O Som Ao Redor”, de 2013, a música aqui também possui um papel fundamental — inclusive conta com um personagem músico que, com o poder de sua música, expulsa os forasteiros da cidade. Quando questionado sobre o papel das canções como pontos na costura narrativa, Kleber exalta seu companheiro de trabalho, Juliano Dornelles. “Ele não dirigiu ‘O Som Ao Redor’, mas ‘Charles Anjo 45’, do Caetano Veloso e do Jorge Ben, foi uma sugestão dele quando estávamos numa van indo para as filmagens. A música às vezes entra no roteiro direto, mas às vezes aparece durante a filmagem e no processos de montagem, principalmente”, conta o diretor.

A ideia de colocar a música “Objeto Não Identificado”, de Gal Costa, no início do filme, floresceu de tarde, quando Kleber estava criando playlists em casa — sua principal ferramenta de pesquisas musicais. “Ela encerra ‘Brasil Anos 2000’ do Valter Lima Junior e é muito interessante reparar nisso, porque está tudo interligado. A gente tinha pensado em colocar ‘Night’, do John Carpenter, na abertura. Mas preferimos colocar uma música muito brasileira, até mesmo da Tropicália, para se contrapor com esse efeito super bem feito, geralmente usado e associado ao cinema estrangeiro que, aliás foi o mais caro de todo o filme. Só que não é um zoom na Califórnia, mas é na América do Sul, no Brasil, no Nordeste. Aí ‘Night’ foi parar no processo de filmagem da capoeira, que se transformou completamente. Mas é difícil falar de música, é tudo muito orgânico”, conta ele.

Não tem muito o que dizer, a gente se apaixonou completamente pela força dos personagens e pela contundência fantástica da trama. “Bacurau” nos ganhou de primeira, talvez de segunda e de terceira, porque uma certeza que temos é que veremos o filme de novo, tamanha a necessidade de repensar tudo a partir do longa-metragem.

Esta matéria foi escrita pela repórter e social media Débora Stevaux e pelo curador musical Dimas Henkes. Segue o MECA no Instagram? E no Twitter também?

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MECA // Informação, cultura, criatividade e festivais: um radar da cena cultural do Brasil e do mundo. @mecalovemeca

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