Brisa Flow: “O que sustenta o corpo é a identidade. Me reconheço como mulher indígena desde criancinha”

A multiartista mineira com descendência chilena e indígena Brisa de la Cordillera, de 31 anos, conta sobre os porquês de ser “Selvagem Como o Vento”.

Brisa Flow no clipe de “Fique Viva”. (Crédito: Anna Catharina).

Inédito, ancestral, pujante, selvagem, indomesticável, urgente, feminista, incrível, minucioso, alerta, desperto, livre, revolucionário: transbordam adjetivos para “Selvagem Como O Vento”, o disco mais recente da multiartista mineira com descendência chilena e indígena Brisa de la Cordillera, de 31 anos. Sucessor do singelo “Newen” (2016), seu novo trabalho arrisca uma originalidade e um potencial criativo expansivo surpreendente.

A vivência indígena de uma mulher no contexto urbano é explanada nas 11 músicas que costuram com muito carinho e força o flow de Brisa. A mistura abarca hip hop, música brasileira, R&B e a sonoridade dos seus ancestrais pulsantes & presentes, para falar sobre afetos, desafetos, desafios, necessidades e a reverberação de uma identidade nunca adormecida, mas agora ainda mais ativa e fortalecida.

É evidente a sinceridade e o direcionamento reto do papo de Brisa para assuntos como o medo que pode paralisar os movimentos sociais, a maternidade como forma de resistência “porque parir não é parar”, a melancolia do desterro e a ousadia na hora de criar musicalmente um projeto tão lindo. Não à toa, ela é indiscutivelmente apontada como uma das artistas mais fantásticas da atualidade na cena musical brasileira.

Em entrevista à repórter Débora Stevaux, Brisa disseca seu processo criativo, conta sobre o sentimento de ter dado à luz e permanecer brilhando na vida de Davi Collío, de 6 anos, sobre sua expectativa para subir ao palco do YBY Festival — o primeiro festival de música contemporânea indígena idealizado pela Rádio Yandê e que rola na Unibes Cultural de 29/11 a 1/12 — , e sobre sua participação na edição 2019 do MECAInhotim. ❤

Como o Brasil e o Chile pulsam dentro de você hoje?
“O Chile pulsa dentro de mim através dos povos araucanos, andinos. É a minha ancestralidade, minha família, meus parentes. Trago comigo a música e a cultura de lá, que me foram apresentadas pelos meus pais. O artesanato, a cultura mapuche, as suas melodias, construções e toda a sua força, a sua luta. Tudo que faço está ligado à esta expressividade, à cultura e à vivência unida da Abya Yala [nome que, na língua Guna, significa ‘terra em plena maturidade’ ou ‘terra de sangue vital’ e é usado para definir a América antes da invasão de Colombo]. O que pulsa de Brasil em mim é a minha vivência, minha caminhada, porque foi onde eu nasci, então trago comigo tudo que absorvi durante esses 31 anos.”

“Trago comigo a música e a cultura de lá que me foram apresentadas pelos meus pais. O artesanato, a cultura mapuche, as suas melodias, construções e toda a sua força, a sua luta. Tudo que faço está ligado à esta expressividade, à cultura e à vivência unida da Abya Yala.”

O que o rap nacional é pra você hoje?
“O rap nacional sempre foi pra mim um lugar de informação, onde aprendi muita coisa que não aprendi na escola, nem na televisão. Foi com o rap que pude aprender de forma dinâmica e agradável ouvindo a pessoa falar, através de um flow, várias ideias, vários papos-retos, que passaram visão de caminhada para mim. O rap nacional é um tráfico ou tráfego de informação, uma multiplicação de ideias poderosas. Espero que ele continue assim, principalmente no momento atual em que estamos, trocando tanta informação nessa era de internet. Que a música continue fazendo este papel de troca infinita de saberes.”

“O rap nacional é um tráfico ou tráfego de informação, uma multiplicação de ideias poderosas.”

Brisa Flow no seu showcase no MECAInhotim 2019. (Crédito: Fernanda Tiné/I Hate Flash)

Em “Newen”, de 2016, a gente percebe um mergulho seu mais intenso no rap. Já em “Selvagem Como o Vento”, é quase palpável a sua imersão em outros gêneros musicais como a música eletrônica, o R&B, além de uma reconexão ancestral intensa. Qual foi o pontapé para essa reconexão ancestral indígena e como ela norteou o processo criativo do novo disco?
“Em 2016, fiz meu primeiro disco-solo que se chama “Newen”, que significa força em Mapundungun. Então, a identidade indígena sempre existiu dentro de mim. Porque o que sustenta o corpo é a identidade e eu me reconheço como mulher indígena desde criancinha. Principalmente, por tudo que eu vivenciei com a minha família, por tudo que eu conheci, aprendi, por mais que fosse no contexto urbano, o corpo estava gritando ancestralidade. Quando comecei a cantar, já sentia muito esta referência com o canto de músicas andinas, principalmente, as que fazem referência ao povo mapuche, ao povo ameríndio, ao povo araucano. E a ideia do “Newen” era colocar esse idioma para manter a língua do meu povo viva. Depois, mudei as linhas de rap que eu tinha construído e fui construindo o flow.

Já em “Selvagem Como O Vento”, as referências musicais ampliaram porque eu me senti livre pra fazer isso, porque já tinha construído uma caminhada até aqui. Então, queria colocar o nome em Mapundungun para manter viva esta tradição. Mas como o meu nome é Brisa de La Cordilera Collío, ‘Collío’ significa, em Mapundungun, “gavião colorido”. Então, o meu novo projeto representa o vento da Cordillera que leva o gavião colorido. De uma forma geral, tem tudo a ver com a minha música, que tem um flow indomesticável, livre, em que se constrói, — ora mais rápido e forte, ora mais lento e leve — , assim como o vento. Esse disco materializa uma fase que me senti mais livre e segura para fazer experimentos musicais, para dirigir, de fato, um disco. Ele foi todo captado por mim mesma, gravado na minha casa e tratado em outro estúdio. O processo todinho foi feito por mim e pelo meu DJ. É um trabalho que tem uma autonomia imensa no processo de criação. A referência indígena, como eu disse, sempre existiu, mesmo que não tenha colocado o nome em Mapundungun. O disco conta a historia de uma mulher indígena no contexto urbano: a partir da primeira música ,“Violeta se Fue”, até a última, “Caboclo Foi Pra Selva”. As músicas abordam todos os sentimentos que permeiam essa situação que nos colocamos pra ir para o meio urbano e não sabemos se vamos voltar ou se vamos continuar com a identidade viva diante do embranquecimento das cidades.”

“Mas como o meu nome é Brisa de La Cordilera Collío, ‘Collío’ significa, em Mapundungun, “gavião colorido”. Então, o meu novo projeto representa o vento da Cordillera que leva o gavião colorido. De uma forma geral, tem tudo a ver com a minha música, que tem um flow indomesticável, livre, em que se constrói, — ora mais rápido e forte, ora mais lento e leve — , assim como o vento.”

Quais lugares por onde você passou têm “Câmara de Ecos”?
“Os lugares por onde passei que existem câmaras de ecos são os estúdios grandes e pequenos onde gravei, palcos grandes e pequenos em que me apresentei. São lugares onde me sinto livre para me expressar. Então, acredito que as ‘Câmaras de Ecos’ se materializam em pequenos palcos da quebrada ou em grandes palcos quando a minha mensagem pode ser reverberada. Esse processo começa no estúdio, uma câmara de eco mais intimista. Essa música é uma referência à poesia de Waly Salomão, chamada ‘Câmara de Ecos’, que fala que a linha de fronteira se rompeu. Acredito que é através da música que essas fronteiras são rompidas. Essas fronteiras que nos limitam. Assim, conseguimos chegar com nossa vibração e nossos versos em lugares que a gente nem imaginava. Esse é o grande poder da arte.”

“Essa música é uma referência à poesia de Waly Salomão, chamada ‘Câmara de Ecos’, que fala que a linha de fronteira se rompeu. Acredito que é através da música que essas fronteiras são rompidas. Essas fronteiras que nos limitam.”

Quando você percebeu que precisava ser “Selvagem Como o Vento”?
“Acho que sempre fui selvagem como o vento. Minha mãe sempre brincava que eu era um furacão e não uma brisa [ri]. Acredito que esse espírito veio juntamente com o meu nome, Brisa de La Cordillera.”

“Todo mundo está sempre atirando pedras e culpabilizando as mães. Acredito que parir não é parar e que as mães se transformam porque ao ver os filhos crescerem, elas se tornam mulheres maravilhosas.”

O que ser mãe representa hoje pra você?
“Ser mãe é uma coisa gostosa, maravilhosa, porque é ver de perto uma pessoinha gerada por você crescendo, criando raízes, dando sementes. É muito lindo acompanhar esse processo de perto. Pesado é o que a sociedade e a estrutura impõem para que mulheres mães não sejam livres, e para que elas carreguem culpas que não são delas, não são nossas. O processo em si é lindo, difícil é no contexto social, estrutural. As instituições implicam que a mãe tenha que ter uma responsabilidade enorme criando uma pessoa, sem dar estrutura ou apoio para isso. O Estado e a maioria das pessoas não têm empatia. Todo mundo está sempre atirando pedras e culpando as mães. Acredito que parir não é parar e que as mães se transformam porque ao ver os filhos crescerem, elas se tornam mulheres maravilhosas. Mas elas precisam ter muita autoestima, amor-próprio, certeza do que estão fazendo, para não deixar que a violência as prejudique. Porque é muito violento esse olhar que o mundo tem sobre as mães.”

“Quis trazer este ar moderno que o indígeno-futurismo — um movimento decolonialista que usa as transculturalidades embutidas. Trata-se de um movimento que traz essas diferentes culturas dos povos ancestrais para estarem presentes nas nossas vidas sem invisibilizar nenhuma. Esta é a nossa sociedade hoje, a nossa visão de futuro. Nós não estamos presos no passado, mas também não podemos esquecer o que foi a nossa cultura que é sempre invisibilizada.”

Sonia Barbosa, integrante & moradora da aldeia indígena Guarani do Jaraguá, em São Paulo, durante os bastidores do clipe “Fique Viva” de Brisa Flow. (Crédito: Anna Catharina).

Em “Câmara de Ecos”, a gente ouve um sample de “Um Girassol da Cor do Seu Cabelo” de Milton Nascimento. Que influências musicais te ajudaram a construir musicalmente seu novo trabalho?
“Tem sim um pouco da música ‘Um Girassol da Cor do Seu Cabelo’ do disco ‘Clube da Esquina’ em ‘Câmara de Ecos’ sim. Esse foi um disco que ouvi muito quando me mudei para São Paulo e sentia saudades de Minas. Acredito que o álbum [do Milton] foi construído de acordo com essas vivências, desde o processo instrumental, quanto o das letras. Então, como o rap é um gênero muito marcado pelo uso de samples em seus instrumentais, quis usar esse sample do ‘Clube da Esquina’ porque o processo todo instrumental do disco carrega referências de vivências e de coisas que fui experimentando.

Quis também voltar um pouco para a época da fita k7, antes de ‘Selvagem Como O Vento’, lancei um trabalho em fita k7 chamado ‘Lo-W Tape(2018), com uma outra cantora amiga, a B.Art, lá do Sul. Foi a partir desse momento que comecei a me aprofundar mais nesses instrumentos analógicos, neste som eletrônico de sintetizadores. Comecei a compor as músicas em casa, quando me dediquei mais em fazer instrumentais. Captei o som da chuva quando fiz ‘Caboclo Foi Pra Selva’, toquei teclado com plug-in de sintetizador…

Selvagem Como O Vento’ foi feito dentro de um aparelho um mini-sintetizador da KORG. A ‘Resistência Não Domesticada’ gravei as facas daqui de casa para colocar. Essa canção especificamente tem essa relação com a vida de mãe, de estar fazendo a janta para a cria e criando. Ao mesmo tempo, o facão representa uma imagem ancestral de anos que a cultura indígena usou para abrir caminhos e para cozinhar. O facão é esse símbolo de resistência, inclusive uma artista visual indígena que gosto muito, a Sallisa Rosa, tem uma série de fotos de facão pelas aldeias por onde ela vai passando. Quis trazer este ar moderno que o indígeno-futurismo — um movimento decolonialista que usa as transculturalidades embutidas. Trata-se de um movimento que traz essas diferentes culturas dos povos ancestrais para estarem presentes nas nossas vidas sem invisibilizar nenhuma. Esta é a nossa sociedade hoje, a nossa visão de futuro. Nós não estamos presos no passado, mas também não podemos esquecer o que foi a nossa cultura que é sempre invisibilizada.”

E como foi se apresentar no MECAInhotim 2019?
“Participar do MECAInhotim foi muito especial para mim e para os outros artistas indígenas que também estarão presentes no YBY Festival. Foi uma energia incrível fazer parte do toré que puxamos no final [a manifestação cultural de diversos povos indígenas que vivem no Nordeste une dança, religião, luta e brincadeira]. Muitas saudades de Minas sempre, lugar onde nasci e onde me sinto em casa. Mas antes de encerrar eu gostaria de fazer um convite para todas e todos: de 29 de novembro a 1 de dezembro a gente vai inundar São Paulo com toda a força da música contemporânea indígena. O YBY Festival acontece na Unibes Cultural, em São Paulo e eu conto com a presença de todo mundo porque vai ser maravilhoso!” ❤

Esta entrevista é uma versão na íntegra da edição #27 do MECAJournal. Segue a gente no Instagram? E no Twitter também?

--

--

Débora Stevaux
MECA // Informação, cultura, criatividade e festivais: um radar da cena cultural do Brasil e do mundo. @mecalovemeca

repórter de cultura & social media do @mecalovemeca que escreve porque acha que a arte é transformadora o suficiente para gerar impactos sociais positivos