Inovação e colaboração são os amuletos na maré agitada da Onda Mundial

A plataforma mexicana lança a terceira coletânea da série “Desorden y Progreso”, que navega pelas veias abertas da América Latina com nomes cintilantes da cena musica independente

O DJ e produtor baiano Telefunksoul, que está na coletânea "Desorden y Progreso” da plataforma Onda Mundial. (Crédito: Jefferson Photo).

Na física, a onda é uma perturbação oscilante de alguma grandeza no espaço e periódica no tempo. E, seja na ciência ou na vida, a palavra de quatro letras onda é sinônimo de movimento absoluto e constante. É provavelmente por isso que a plataforma Onda Mundial existe e carrega no nome a possibilidade catalisadora de mudanças, ao passo que promove o caminhar junto de inúmeros artistas independentes – num compasso que soma e amplifica. Quem já cantou essa bola para a gente foi Chico Science: “um passo à frente, e você não está mais no mesmo lugar”.

Pelas veias abertas & pulsantes da América Latina, ora numa maresia mais calma, ora intensa, a plataforma navega pela musicalidade transcendente. Desde 2019 na ativa e com uma residência artística destinada a artistas independentes na cidade do México, a Onda Mundial desenvolve um trabalho conectivo de suma importância num cenário em que a cultura sobrevive aos suspiros.
O ecossistema cuidadosamente construído contempla conteúdo audiovisual, workshops, debates, produção musical e novas histórias musicadas.

Se os caminhos se cruzam e se aproximam pelas semelhanças históricas, sociais, políticas e econômicas, a solução pode ser única e coletiva, conforme acredita o fundador da Onda, Gregorio Hernandez. “Após analisar os países latino-americanos e suas experiências com a resistência cultural, percebe-se processos paralelos que funcionaram de maneira semelhante em contextos muito diferentes. Um exemplo muito claro é aquele entre reggaeton e funk”, analisa. “Ambas são músicas criadas no coração de comunidades marginalizadas, que convidam as pessoas a dançarem muito e são cercadas por um conteúdo lírico muito sexualizado”, conta Gregorio.

“O estigma que carregavam também é muito parecido. Uma resistência de uma classe da ‘cultura superior’ de gostar, enquanto as pessoas em todo o país se interessavam muito pelos ritmos a ponto de se tornarem novos modelos para a música pop. Quando a indústria aceita, elas são aceitas. Isso diz muito sobre como nossa sociedade pensa. Você pode ver o mesmo processo hoje em dia com güaracha ou aleteo na Colômbia, e cumbia villera na Argentina”, completa.

As quatro compilações da Onda Mundial exaltam o caráter revolucionário e progressista da união de artistas tão incríveis. “Desorden y Progreso” traz a cintilância de expoentes como Malka — que compõe a banda que ilumina o palco com MC Tha –, Saskia, L’Homme Statue, JZL, EXZ, Raiany Sinara e muito mais.

Cantora e compositora gaúcha apontada como revelação pelas suas rimas dilacerantes e precisas, Saskia conta como foi participar deste processo coletivo de trocas preciosas. “Foi muito foda ter me conectado com essa galera, tanto por ser um pessoal que está trabalhando para que a música brasileira se espalhe, quanto por me juntar com todos os produtores que eu já conhecia, mas não tinha trocado ideia ainda. Foi uma junção de todo mundo que eu já acompanhava. É massa reconhecer e se sentir parte da cena musical brasileira, sentir que ela resiste e é forte”, explica a porto-alegrense.

A cantora, produtora, compositora e DJ porto-alegrense Saskia. (Crédito: Manuela Falcão).

Vibra o bass na Bahia do meu ❤

Nesta última semana de maio, o terceiro volume da compilação ganha o mundo — em algumas das marés mais agitadas que já passamos como planeta por conta da pandemia mundial que assolou a Terra através do invisível e letal coronavírus — totalizando três preciosidades musicais. A quarta e última tem previsão para agitar as ondas sonoras na primeira semana de junho.

Quem integra a terceira coletânea é o DJ e produtor musical baiano TelefunkSoul. Quando o convite aconteceu, a surpresa e a expectativa foram grandes, conforme ele nos conta: “Estava numa rápida turnê em São Paulo, quando o querido Béco Branoff me ligou contando que um selo novo muito legal do México tinha o procurado para pedir ajuda na curadoria de artistas brasileiros. Ele me pediu algumas faixas inéditas e mandei três. Uma delas foi escolhida. O ‘Bahia Bass’ vem crescendo e somando com a musicalidade contemporânea. A Bahia é um celeiro de coisas boas, a música está entranhada em cada ser que reside aqui na Boa Terra. E essa coletânea é uma forma de somarmos ainda mais e de unir estilos pelo mundão.”

O alto astral é o sentimento que norteia o trabalho de Telefunksoul, há 27 anos agitando as pistas mais quentes por onde passou. “Quando estou tocando sinto as boas energias vibrando comigo e com os que dançam. O groove é uma porção de vibes positivas que nos arrepiam dos pés à cabeça”, explica. O resultado é a música “Momento”, feita em parceria com o DJ, produtor musical e pianista Fernando TRZ, que dá um toque solar à produção.

O ‘bahia bass’ envolve pela malemolência e pela conexão com a ancestralidade para se projetar no amanhã, onde a única regra é o grave do tambor. Criador do estilo musical retado preparado no dendê que, há pelo menos dez anos faz até o mais rígido dos corpos dançar e o mais enferrujado dos sorrisos se abrir, o DJ e produtor baiano acredita que o surgimento do gênero, esculpido pelas suas mãos e notas, fomentou uma busca maior pela sonoridade baiana — principalmente nas inúmeras maneiras de agregar à música eletrônica brasileira e mundial. “Hoje, é visível o crescimento de artistas que adoram mesclar a sonoridade baiana com seus projetos, seja pelo samba reggae, pelo pagodão, pelo samba de roda, enfim. O mundo inteiro ‘mete dança’ ao som dos tambores. E esse movimento tende a crescer. Podemos relembrar o começo de toda essa história há duas décadas atrás com as músicas de Paul Simon e Michael Jackson. Eles foram os primeiros a pegar essa visão”, complementa.

Liberdade intrínseca em expansão

A terceira edição da coletânea abunda em liberdade pelos discursos consonantes presentes nas 5 faixas. Além de Saskia, participam a DJ e produtora paulistana BADSISTA, a multiartista mineira com descendência chilena e indígena Brisa de la Cordillera. Na quarta, o multiartista francês radicado no Brasil, L’Homme Statue, a banda TETO PRETO e mais uma porção de gente brilhante, fecha com chave de ouro essa primeira parte do projeto que anseia por novos mergulhos.

Para o fundador da Onda Mundial, os nossos amuletos da sorte pelo curso úmido dos dias mais tempestuosos permanecem como a inovação e a colaboração. E criar expressões culturais contribuem — em maior ou menor grau — para a nossa sobrevivência: “Essa criação desencadeia cruzamentos impensáveis entre disciplinas e remove fronteiras que, normalmente, teriam na indústria cultural. Em menos palavras, todo esse processo nos convida para a geração de uma indústria auto-produtiva, que precisa inovar e colaborar para sobreviver.”

Registros do lançamento da plataforma no espaço Galera, na cidade do México, antes da pandemia. (Crédito: Oscar Villanueva).

Por fim, a sinergia total é traduzida nas palavras de Saskia, que leva o lema da liberdade consigo em tudo que toca e faz brilhar por aí. “Quero passar liberdade pra todos. Quero que digam o que querem dizer, sintam o que precisam sentir, sem rédeas, nem jogos. Sinto que, com meu trabalho, mais pessoas se libertam para serem o máximo que elas podem ser”, finaliza. Não à toa, a última música da quarta edição leva o nome “Tu Cuerpo Es Una Armada”, que em livre tradução para a língua portuguesa crava: “Seu Corpo É Um Exército”.

Se puder #FiqueEmCasa e dê o play em algumas das playlists chiquérrimas da plataforma:

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Débora Stevaux
MECA // Informação, cultura, criatividade e festivais: um radar da cena cultural do Brasil e do mundo. @mecalovemeca

repórter de cultura & social media do @mecalovemeca que escreve porque acha que a arte é transformadora o suficiente para gerar impactos sociais positivos